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2.3 O gênero HC e a tipologia narrativa

2.3.1 Quatro conceitos básicos: tipo textual, gênero textual, domínio discursivo e modelo

O tipo textual se refere à natureza linguística dos textos: seus aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas e estilo. O tipo textual é limitado basicamente a cinco categorias (narração, argumentação/dissertação, exposição, descrição e injunção), cujo predomínio num texto concreto permite classificá-lo como narrativo, argumentativo/dissertativo, expositivo, descritivo ou injuntivo. Dada a diversidade de escolhas lexicogramaticais que um mesmo texto pode apresentar, é mais comum que se diga que ele é predominantemente narrativo, argumentativo etc.

Essa classificação de predominância nem sempre é clara. Ela pode se limitar ao aspecto quantitativo das ocorrências tipológicas no texto ou, como preferimos nesta tese, referir-se ao

aspecto qualitativo delas no que tange à função social que será desempenhada pelo texto. No hipergênero HC, por exemplo, em termos quantitativos, ele pode apresentar um número maior de ocorrências tipológicas argumentativas e expositivas. Contudo, como vimos na seção anterior, é a narrativa que dita o ritmo da argumentação e da exposição, pois, de acordo com Gibbons (2003), em qualquer processo legal, alternam-se com frequência a busca pela reconstrução do caso (narrativa) e o enquadramento à legislação, à jurisprudência e à doutrina (exposição e argumentação). Assim, ainda de acordo com Gibbons (2003), nada é tão forte nas decisões judiciais (injunção) quanto as narrativas.

O gênero textual, assim como a estrutura argumental e a transitividade de que abordamos no capítulo anterior, pode ser definido em termos de protótipo, ou seja, como modelos que são permanentemente modificados e adaptados pelos sujeitos e pelas sociedades para melhor atingir seus objetivos comunicativos. Os gêneros são os textos materializados em situações comunicativas recorrentes, que apresentam padrões sociocomunicativos próprios, definidos em conformidade com a funcionalidade no mundo real, os objetivos enunciativos e os estilos (MARCUSCHI, 2008). Os gêneros são entidades dinâmicas, que, pelo seu caráter sócio-histórico, sofrem mudanças para acompanhar as novas demandas sociais. Eles moldam a forma como nos comportamos socialmente, seja por meio da fala ou da escrita; e, pelo fato de representarem demandas sociais, são infinitos na medida em que infinitas são as possibilidades de interagirmos socialmente.

O próprio HC35 evidencia o caráter dinâmico e sócio-histórico do conceito de gênero. Atualmente, o Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), em seu artigo 654, faculta a qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, com ou sem advogado, entrar com pedido de HC. Historicamente, no entanto, nem sempre foi assim. Em 1832, o Código de Processo Criminal, em seu artigo 340, determinava que somente o cidadão poderia ingressar com pedido de HC. Em 1871, os estrangeiros, desde que em seu benefício próprio, também puderam pleitear o remédio heroico. Nos primeiros anos da República, o Decreto n. 848/1890 autorizou qualquer pessoa a solicitar o HC em seu nome ou em nome de outrem (ISHIDA, 2015).

Apesar da importância das características gerais que envolvem a criação e a produção dos gêneros, a análise destes deve se expandir ao modo como os sujeitos manipulam os gêneros para atingir seus propósitos comunicativos. De acordo com Marcuschi (2008), determinados gêneros – como ensaios, teses e artigos científicos – gozam de grande prestígio social, ao ponto

35 Para mais discussões sobre a origem do termo Habeas Corpus, sugerimos a leitura do HC 42.697/STF,

disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=58576 – acesso em 8 de agosto de 2017.

de legitimarem e imporem como as pessoas devem pensar e agir. Por esse prisma, os gêneros nos lembram, todos os dias, de que somos permanentemente constrangidos por determinada sociedade e que as relações sociais se manifestam sob certas condições.

Para exemplificar o aspecto social e o caráter manipulativo dos gêneros, retomemos novamente o processo de HC. Como afirmamos anteriormente, uma característica essencial desse processo – e dos processos da esfera jurídica como um todo –, é a narrativa de fatos, algo que fazemos de maneira trivial em diversos momentos da nossa vida diária. Contudo, dentro do HC, a narrativa deve seguir ritos específicos, como a ordem cronológica dos fatos e a conclusão lógica desses fatos, que evidenciem por que o réu pode responder ao processo em liberdade. Apesar de o HC poder ser redigido por qualquer pessoa, somente o juiz pode julgá-lo, o que confere a esse profissional do Direito bastante prestígio social.

Atrelado às relações de poder e ao prestígio social, o domínio discursivo abrange, conforme Marcuschi (2008, p. 155), as instâncias discursivas nas quais os gêneros ocorrem. O domínio discursivo, marcado institucionalmente, não se restringe a um gênero específico, mas origina vários deles, o que implica considerar esse domínio como “práticas discursivas nas quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que às vezes lhe são próprios ou específicos como rotinas comunicativas institucionalizadas e instauradoras de relações de poder”. Ou seja, o domínio discursivo estabelece quem são as instituições e as pessoas socialmente empoderadas para fazer parte dele. Dentro do domínio discursivo do Direito, por exemplo, temos defensores, promotores, delegados, juízes, desembargadores etc. As funções deles, dentro desse domínio, estarão definidas pelos gêneros textuais que eles podem produzir (por exemplo, o defensor, a petição inicial de HC; o delegado, o boletim de ocorrência; o juiz, a sentença etc.).

De acordo com Sparano et al. (2012), existe um processo contínuo de diálogo entre os textos, podendo ocorrer inclusive o fenômeno da intergenericidade, que é a configuração híbrida entre os gêneros. Nesse sentido, os domínios discursivos serão marcados pelo diálogo permanente entre os diversos gêneros. O processo de HC, por exemplo, é composto por petição, contestação, boletim de ocorrência, citação, sentenças etc.

Por fim, o modelo cognitivo de contexto evidencia os parâmetros mais significativos para a interação comunicativa e para o contexto social. Na medida em que esse modelo é dinâmico, isto é, se molda a cada interação comunicativa, os parâmetros vão variar conforme os participantes envolvidos e os objetivos deles no momento da interação. Nas palavras de Koch (2009, p. 162), “são estes modelos que definem a relevância de cada discurso nos vários

contextos e, portanto, também a atenção que lhe deve ser dada e o modo como a informação deve ser processada”.

Ainda de acordo com Koch (2009, p. 162), os modelos são sociocognitivamente construídos com base na vivência social e, por essa razão, representam “os conhecimentos, propósitos, objetivos, perspectivas, expectativas, opiniões e outras crenças dos interlocutores sobre a interação em curso e sobre o texto que está sendo lido ou escrito, bem como propriedades do contexto” (tempo, lugar, circunstâncias, condições etc.). Por meio dos modelos cognitivos do contexto, os interagentes reconhecem os diversos gêneros textuais e os adaptam aos variados tipos de situações sociais.

No processo de HC, por exemplo, reconhecemos que um texto está materializado no gênero boletim de ocorrência ou sentença. No boletim de ocorrência, a expectativa é que sejam informados os fatos que ajudem a reconstruir o momento do delito, com ênfase na narrativa apresentada pela vítima. Na sentença, por sua vez, a expectativa é que seja decidido sobre a libertação ou não do réu, com ênfase maior na legislação que embasa a decisão. À medida que lemos o processo, no entanto, identificamos, em outros gêneros, parâmetros diferentes para a análise deles. Na petição inicial escrita pela defesa, o boletim de ocorrência pode ser mencionado para mostrar a ilegalidade dos procedimentos de decretação de voz de prisão, ou a sentença pode ser evocada para justificar a desnecessidade de se manter o réu na prisão.

Em suma, o modelo cognitivo de contexto comprova, nos termos de van Dijk (2012), que os usuários da língua estão engajados tanto no processamento do discurso quanto na construção dinâmica da sua análise e interpretação subjetiva on-line.

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