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2.3 O gênero HC e a tipologia narrativa

2.3.3 Tipologia narrativa e o processo

Nas palavras de Valverde, Fetzner e Tavares Júnior (2013), a narrativa jurídica não se limita a expor sucintamente o que ocorreu; pelo contrário, ela pretende também persuadir a respeito da pretensa verdade dos fatos, o que implica considerar que a argumentação, por si só, é insuficiente para compreendermos a abrangência do texto jurídico, em seus aspectos linguísticos, cognitivos e sociais.

Nesta subseção, apresentamos a narrativa enquanto tipologia textual, a fim de esclarecer o modo como ela se acopla ao gênero textual jurídico (seja ele qual for) e contribui para a reconstituição dos fatos que ensejaram o processo. Gibbons (2003) considera que existem estruturas de gêneros tanto na realidade imediata do domínio jurídico (por exemplo, o gênero depoimento) quanto gêneros de uma realidade que precisa ser reconstituída e moldada de acordo com os princípios legais.

Conforme dissemos anteriormente, os gêneros textuais são flexíveis e estão à mercê das condições sócio-históricas de determinada comunidade. Isso quer dizer que os sujeitos, em especial os que detêm o poder, manipulam as estruturas genéricas, a fim de que fique evidente que “estamos imersos numa sociedade que nos molda sob vários aspectos e nos conduz a determinadas ações” (MARCUSCHI, 2008, p. 162).

Logo, em qualquer julgamento, há sequências previsíveis de fases, conforme antecipamos na subseção anterior. O depoimento prestado ao delegado e o resumo feito pelo juiz antes de proferir sua sentença representam etapas distintas, assim como a conclusão do depoimento com a reconstrução das evidências confirmadas pelas testemunhas. O que permeia todas essas fases, na visão de Gibbons (2003), é a tentativa de construção de narrativas principais, que trarão para dentro do processo uma realidade externa, projetada, acerca dos fatos em análise. Nessa perspectiva, há narrativas explícitas, como aquelas esperadas em um depoimento e, portanto, simples de ser identificadas. O grande desafio é enxergar o processo como uma grande narrativa, o que contribui para afastar o processo da tipologia clássica de

narrativa enquanto contação de história criativa, sem fins de convencimento, aproximando-o da narração-argumentação.

Em outras palavras, numa perspectiva sociocognitiva, o que está em nossa mente são modelos de narrativas, que, após a nossa experiência com o mundo, serão remodeladas em exposição, argumentação, depoimento etc. Essa perspectiva sociocognitiva da narrativa se dá em virtude de as primeiras coisas que notamos no mundo serem os seres físicos e, posteriormente, as relações de causa e consequência que se estabelecem entre eles (o que está diretamente atrelado também à noção que defendemos sobre a transitividade). As narrativas constroem, num primeiro momento, um mundo aparentemente linear, que funciona cronologicamente; depois, percebemos que existem coisas abstratas que derivam de coisas concretas. É o caso, por exemplo, do ordenamento jurídico que visa atribuir conceitos abstratos a situações concretas.

Assim, conforme nos mostra Gibbons (2003), a lei se preocupa com a prescrição de comportamentos, dividindo o mundo entre o que deve ou não ser feito, o que é permitido ou proibido por determinados grupos sociais em determinadas situações. Esse conjunto de comportamentos deônticos deriva de uma abstração acerca dos eventos do mundo concreto.

Ainda segundo Gibbons (2003), compete ao processo legal decidir sobre a representação mais adequada da realidade trazida pelos fatos; moldar a realidade conforme a representação legal; e delimitar o nível de diferença entre os fatos narrados no caso concreto e as categorias propostas pelo ordenamento jurídico, a fim de que se possa determinar uma punição ou uma reparação. Em outras palavras, o processo visa esclarecer e decidir acerca do que efetivamente aconteceu na realidade dos fatos narrados. Dois lados opostos disputam essa veracidade que, de certo modo, será determinada pelo magistrado.

Assim, os fatos narrados, que estão fora do contexto imediato dos tribunais, dos escritórios de advogados ou das delegacias de polícia, precisam ser reconstruídos nesses lugares ao mesmo tempo em que se dá a eles uma interpretação pretensamente legal. Na perspectiva adotada por Gibbons (2003), esses dois contextos acabam interagindo de algum modo: por um lado, temos o que as pessoas dizem ou escrevem sobre os eventos e as circunstâncias em que os fatos se deram; por outro, temos as coisas que são transferidas do mundo dos fatos sem um filtro aparente para o mundo do julgamento (uma gravação de uma conversa telefônica, uma faca ensanguentada, uma impressão digital).

Nas palavras de Gibbons (2003, p. 149), “os processos legais envolvem ‘ajustes’ dos eventos reconstruídos a uma noção legal de classes de tais eventos na legislação, um processo às vezes referido como aplicação da lei. (...) Algumas vezes o ajuste é claro, mas em outras

ocasiões, não37”. Portanto, nem mesmo quando alguém assume a culpa integralmente por um crime ocorrido, o embate para a reconstrução da realidade dos fatos narrados está a salvo. Outros aspectos, como a gravidade dos acontecimentos, a pena a ser aplicada etc., acabarão sendo colocados em discussão.

Nessa tentativa de reconstrução dos fatos, a narrativa desempenha papel fundamental, principalmente pelo fato de prever a ordenação cronológica dos acontecimentos. Labov & Waletzky (1967), citados por Gibbons (2003), apresentam a estrutura da tipologia narrativa mais aceita atualmente:

1) Orientação: apresentação de conhecimentos prévios para o ouvinte/leitor; geralmente, são as informações sobre lugar, tempo e participantes;

2) Eventos: apresentação de como as coisas aconteceram por meio de relações de causa e consequência;

3) Complicação: a quebra das expectativas iniciais; 4) Resolução: como o conflito foi resolvido; e 5) Coda: conclusões e lições da história.

A orientação e a coda limitam o alcance do frame da narrativa e não chegam a fazer parte obrigatória da sequência de eventos dela. As outras partes costumam aparecer em ordem cronológica, embora, a depender do contexto, por exemplo, uma delegacia da polícia, podem ser feitas algumas inversões dessa ordem para desestabilizar a testemunha.

Uma marca linguística típica que permeia toda a narrativa é o verbo de ação no tempo passado, à exceção da coda, em que os verbos costumam estar no presente para reforçar o caráter universal, atemporal, da conclusão.

É claro que a estrutura da narrativa apresenta limitações cognitivas, na medida em que nem tudo é dito explicitamente. O empacotamento de uma realidade complexa e multifacetada dentro dessa limitação deixa espaço para perigos evidentes, como a distorção/simplificação dos fatos. Daí a importância de estarmos atentos à transitividade da narrativa, em especial aos seus

frames, estruturas argumentais e valências, os quais nos mostram quem foi colocado em

destaque na cena, quem foi omitido, e as razões por que esse jogo destaque-omissão foi utilizado em determinado gênero.

Retomando o que foi dito no início deste capítulo, uma das preocupações das narrativas jurídicas é atribuir responsabilidades pelos eventos, o que implica desdobrar a estrutura

37 No original: “The legal process involves ‘fitting’ the reconstructed events to a legal notion of classes of such

tipológica narrativa de modo a captar as reações dos participantes diante de uma transgressão legal. Assim, os objetivos legais costumam figurar na complicação, que pode constituir o assunto que está sendo decidido (quebra de contrato, roubo etc.) (GIBBONS, 2003).

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