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O que estamos a compreender por “fazer cotidiano” no interior da práxis/prática

ALFASOL na sala de aula em Cortês?

Partindo do pressuposto da educação como uma das alavancas fundamentais para a transformação social e para o desenvolvimento humano no cotidiano de suas relações locais e globais, torna-se necessário uma breve discussão sobre esse termo “cotidiano” e mais especificamente “cotidiano escolar”, para que possamos compreender e inventariar as intenções e tipos de prática docente desenvolvida no exercício da sala de aula na ALFASOL.

Procurando o significado, vimos no Dicionário da Língua Portuguesa (Aurélio), a concepção de cotidiano como “de todos os dias; que se faz todos os dias; que sucede e se pratica todos os dias”. Assim, entendemos que todos os nossos atos, atitudes, iniciativas, realizações, automatismo, hábito, costumes, enfim, tudo o que fazemos a cada dia, assume a dimensão da cotidianidade. As ações que desenvolvemos no espaço doméstico junto aos nossos familiares; no campo de trabalho, como profissionais; no clube, junto aos amigos; na igreja, na vizinhança, nos movimento sociais dos quais participamos; todas essas são ações que, fazendo parte da nossa vida, constituem nossa cotidianidade. Todos os seres humanos historicamente constroem atos e atitudes que compõem o seu cotidiano. Uns, sem muitas intenções, outros, intencionalmente; uns, de forma planejada, outros, improvisadamente; uns, de forma elaborada, outros, espontaneamente; uns, de forma efetiva, outros, racionalmente; uns, de forma moderada, outros, exageradamente; uns, de forma sacrificada, outros, muito facilmente.

E, assim, de acordo com as suas situações sociais, com suas idiossincrasias, cada pessoa, cada grupo, vai forjando o seu cotidiano e compondo sua vida. Ninguém pode fugir ou viver fora do cotidiano, mesmo porque já nascemos inseridos neste contexto e, querendo ou não, nele nos situamos. Vimos, ainda, em Maffesoli (1995, s/d) que:

A existência social... é animada por um pluralismo cuja exposição e exame devem ser a tarefa da sociologia do cotidiano. Além das racionalizações e legitimidade a que nos acostumamos, a existência social é formada por sentimentos e emoções maldefinidos, pelos momentos nebulosos que não podemos ignorar e, cujo impacto sobre nossas vidas cresce de maneira palpável.

O autor mostra o significado da vida cotidiana através de condutas que racionalizamos e legitimamos, de sentimentos, emoções e momentos que compõem nossa existência e fazem do cotidiano um lugar de possibilidades a ser explorado. Fazendo as leituras dos referendos teóricos, encontramos em Teixeira (1991), três correntes importantes que estudam o cotidiano: as correntes marxistas, as fenomenológicas e as sócio-antropológicas.

Diz Maffesoli (1995) que os teóricos marxistas, tendo como principais representantes Luckács, Lefébvre e Heller, “consideram a alienação como o fator central da cotidianidade. Nesse sentido, a crítica da vida cotidiana contribui para a transformação social” (p. 11). As correntes fenomenológicas, representadas por Goffman, Luckman e Garfinkel, entre outros, “partem da concepção de que a sociedade é uma construção em círculos concêntricos a partir das interações simples, e consideram a vida cotidiana como o âmbito no qual se cria e se compreende o sentido do social” (ibid.).

E as correntes sócio-antropológicas, tendo como representantes, Maffesoli, Javeau, Balandier e J. C. de Paula Carvalho “consideram que a vida cotidiana é o lugar

privilegiado da análise social, porque é nela que se apresentam de forma minúscula todas as características de vida em sociedade” (MAFFESOLI, 1995).

O teórico Marx defende a idéia de que o desenvolvimento histórico e econômico se dá através do trabalho e de sua exploração, provocando, assim, um processo de alienação das classes dominadas pelos dominantes. O trabalho, como ação cotidiana, aliena de forma coletiva e ideológica os dominados levando-os, muitas vezes, à conformação e aliena os dominadores porque, a partir de sua condição ambiciosa e ávida pela exploração da mais valia, da força de trabalho, só vêem o lucro à sua frente, não enxergam nada além da possibilidade de tirar proveito da classe trabalhadora.

Os dominados vivem um cotidiano de alienação porque, pelas suas condições de trabalho, são submetidos e automatizados acriticamente através de rotinas que obscurecem todas as suas capacidades de percepção e de reconhecimento da sua condição de sujeitos históricos. Sem dúvida, é o trabalho que lhes confere a experiência cotidiana da alienação (LEFÉBVRE apud TEIXEIRA, 1991). Noutra dimensão, noutra ótica também os dominadores vivem esta experiência, a partir da sua condição de mentores, exploradores, manipuladores da força de trabalho. Suas intenções somente funcionam na direção da concentração da renda, do capital e do poder nas mãos e no domínio de uns poucos privilegiados, de uma elite especializada em submeter a classe trabalhadora à condição de coisa, de objeto.

Essa é uma prática costumeira, diuturna, que compõe o cotidiano dos dominantes anulando, sufocando e ferindo a dignidade dos homens (dominados) entrevando a sua autopercepção, como seres históricos e culturais. Essa prática, ao reduzir sujeitos à condição de objeto, de massa de manobra, é profundamente alienante/alienadora. Segundo Teixeira (1991, p. 11), é importante que se façam “análises que desvelem e denunciem as facetas da realidade” que muitas vezes não são

consideradas e “que são importantes para a compreensão do social”. É nesse sentido que a crítica sobre a vida cotidiana “contribui para a transformação social”.

Já os teóricos da corrente fenomenológica citados acima procuram estudar e analisar o sentido, o significado, a essência nas interações sociais na realidade; consideram a supremacia do sujeito, valorizam a sua subjetividade. É na vida cotidiana que se dão as interações; é no cotidiano que se analisam as relações intersubjetivas, que se cria e se compreende o sentido dessas relações e da vida em sociedade. No entanto, é importante ressaltar que esta corrente, preocupada com a análise da subjetividade e com o sentido das interações, com a descrição pura dos fenômenos, busca analisar a historicidade dos fenômenos, as suas relações com as estruturas não se aprofundam e omite-se nas discussões e análises crítica sobre as questões de poder, dominação, força e estratificação social. Tendo como preocupação, a “vida cotidiana”, onde o homem se situa com suas angústias e preocupações em intersubjetividade com seus semelhantes (MINAYO, 2000), a fenomenologia detém-se no plano da descrição e não no da explicação e da análise. A realidade é, assim, descrita a partir das interpretações do sujeito, que procura seu sentido, sua essência, mas não suas articulações históricas, políticas, sociais e econômicas.

Os teóricos sócio-antropológicos citados anteriormente estão preocupados com a experiência coletiva, com os grupos na sociedade e quando colocam que “é na vida cotidiana que se apresentam de forma minúscula todas as características da vida em sociedade” (TEIXEIRA, 1991), vão além das correntes marxistas que destacam o processo de alienação a partir das condições de trabalho. Os teóricos da antropologia social afirmam o estado de alienação que se manifesta na vida cotidiana em todos os momentos e não somente em situação de trabalho e produção.

Esses teóricos estão preocupados com as “micro” questões, com os “micro” aspectos que acontecem no cotidiano e dizem que este se caracteriza pela duplicidade, pela ambigüidade, no sentido de que os grupos em sociedade tanto convivem com a alienação como com “a apropriação/reapropriação da vida” (TEIXEIRA, 1991). Encontram-se, assim, na sociedade, pessoas e grupos alienados como também pessoas e grupos críticos e atentos em relação ao processo de transformação social.

É importante, ainda, neste trabalho, fazermos uma reflexão sobre alguns conceitos que nos fazem entender melhor o pensamento de Agnes Heller, uma teórica do cotidiano. Esta autora apresenta os conceitos de genericidade, de heterogeneidade e de humano-genérico para a compreensão da cotidianidade e para a análise entre o indivíduo e a totalidade. A genericidade como totalidade histórica está contida em todo homem, por mais isolado que esteja, por mais insignificante que se perceba. O homem individual, na sua singularidade, exercendo as mais invisíveis ou simples tarefas no seu cotidiano, está inserido na e participa da totalidade histórica. Heller nos mostra que

O genérico está contido em todo homem e, mais precisamente em toda atividade que tenha caráter genérico, embora seus motivos sejam particulares.Assim, por exemplo, o trabalho tem, freqüentemente, motivações particulares, mas a atividade do trabalho quando se trata do trabalho socialmente necessário é sempre atividade do gênero humano (HELLER, 1972, p. 21).

Significa dizer que através de ações e condutas as mais simples do nosso cotidiano, estamos participando, somos parte da totalidade histórica da nossa contemporaneidade. Vale dizer que somos ao mesmo tempo seres individuais, singulares, particulares e seres coletivos, plurais, genéricos.

Vimos que o indivíduo singular, particular, que não percebe ou não reconhece sua vinculação com o coletivo, com a genericidade, contempla o que Heller (1972) chama de heterogeneidade. O indivíduo que exerce ao longo de sua vida ações as mais

variadas a partir de condutas diversas no seu dia-a-dia, no seu cotidiano e não se dá conta de que através de suas “micro” ações e condutas, está imerso na história do seu tempo, interferindo, consciente ou inconscientemente na sua manutenção, este indivíduo está contemplado na dimensão da heterogeneidade – o professorado da ALFASOL na sua grande maioria incorpora esse tipo de indivíduo, quando se propõe a atuar na EJA por ser a única opção de trabalho que aparece, a ver como “bico”, como “biscate” e não como possibilidade de transformação, de mudança do status quo, e só está caracterizado na dimensão do humano-genérico quando reconhece, de modo consciente, sua vinculação, como ser particular, à totalidade, à realidade social; quando percebe que suas micro-ações e intenções interferem na história e no projeto social e político do seu tempo. A esse processo de passagem, de transição – assemelha-se ao sentido de transitividade na perspectiva freireana - de rearticulação dos atos do cotidiano com a genericidade, que caracteriza o humano-genérico, Heller denomina “homo-geneização”. São considerações como estas que nos fazem refletir sobre a força do cotidiano na vida das pessoas e na história da humanidade. Deduzimos, assim, que na vivência do cotidiano, seja no espaço da escola, do sindicato, dos assentamentos, da igreja, da família, ações e pensamentos tanto se cristalizam de forma conservadora, como se transformam provocando revoluções. É a instância do cotidiano em suas manifestações de poder, de possibilidades. É o modo cotidiano de ver o mundo.

Na escola também se vive cotidianamente. As relações e a prática pedagógica docente, as falas, os gestos, os hábitos e atitudes, as posturas, o expresso e o oculto nos componentes curriculares constituem o cotidiano escolar que, sem dúvida, sofre todas as influências do contexto social mais amplo. O mais interessante é que, nessa vivência do cotidiano, nas ações do dia-a-dia, não nos apercebemos de fatos e situações que exigem de nós um espírito crítico e reflexivo. É a dimensão do mecânico, do automático, do

corriqueiro, do costumeiro, do aligeirado sob pressão do tempo em relação aos conteúdos a serem “ensinados”, do natural, do normal, que nos envolvem de tal modo que, em geral, não paramos para refletir sobre a essência das falas, do olhar, das práticas/práxis, das condutas e momentos vividos no cotidiano escolar. Estamos tão envolvidos na rotina dos trabalhos escolares que, muitas vezes, consideramos tudo muito normal/natural; perdemos a sensibilidade, a perplexidade e a capacidade de nos espantar/admirar e de nos indignarmos diante dos instantes inéditos e únicos da prática e das relações que se travam entre os sujeitos no espaço pedagógico e no contexto geral.

Diante das obviedades, a nossa tendência, às vezes inconsciente (outras vezes até consciente), é a da manutenção em nome da harmonia e da tradição - time que está ganhando não se mexe, não importa a que custo tenha-se a vitória – preservação de um cotidiano sem maiores problemas, sem maiores conflitos. É trabalhoso, é difícil questionar verdades impostas, absolutas e cristalizadas; é uma ousadia questionar o inquestionável, problematizar idéias dominantes; é perigoso denunciar e criticar blocos institucionais sólidos, programas, grupos e projetos de renome e megalomaníacos sem vislumbrar alternativas possíveis para determinados problemas ou situações. O cotidiano, em geral, nos convida à acomodação e às ações repetidas. É, então, o olhar diferente, apurado, indignado e aguçado para as ações e relações do dia-a-dia, da rotina escolar e não escolar, a disposição para o enfrentamento dos conflitos, do gritar para anunciar e denunciar (FREIRE, 1987), que nos mostra a riqueza e a essência da cotidianidade.

Considerando o teórico Marx, podemos lembrar que ao modo das relações de exploração e alienação no mundo do trabalho, também as relações professor-aluno- conhecimento e educador/alfabetizador-educando-conhecimento e a maioria dos programas e campanhas destinados a erradicar o analfabetismo no país, juntamente com

algumas instituições formadoras de formadores passam por um processo alienador. Temos observado algumas salas de aula, alguns momentos de capacitação/formação onde professores ligeiramente capacitados, desestimulados, mal remunerados, apáticos, passivos expropriados identitariamente, expropriam dos sujeitos em processo de formação (educandos e educadores) a sua capacidade e seu desejo de aprendizagem. Conteúdos vazios de sentido e significado, metodologias desanimadoras, critérios de avaliação perversos e arbitrários fazem parte do cotidiano das salas de aula de muitas das nossas escolas – e em outros espaços educativos não formal - entravando o processo de apropriação crítica e reflexiva do conhecimento.

Percebemos mesmo, em muitos casos, a situação típica de dominante-dominado nas relações entre professor e alunos. O mais sério é que vemos profissionais, como também aqueles que são chamados de educador, que dificilmente reconhecem que o seu cotidiano é o da exploração, o da alienação no que se refere ao desenvolvimento da sua prática pedagógica docente e que, através dessas práticas, em nada contribuem para efetivas transformações sociais. Eis o vislumbrar de nossa pesquisa no contexto da ALFASOL em Cortês para análises e reflexão crítica “do que fazemos” e “como fazemos” na perspectiva de práxis transformadora e humanizante.

As perspectivas fenomenológicas nos ajudam a destacar a importância das interações entre alfabetizador, educador, professor, instituições formadoras e educandos/as no cotidiano dos espaços de formação e da sala de aula, considerando que quando esses sujeitos interagem em clima de diálogo e discussões produtivas é porque vêem sentido e significado em suas relações. Em decorrência deste fato os resultados da aprendizagem e do ensino tendem a ser os melhores.

Também considerando as contribuições sócio-antropológicas, podemos entender que na vida cotidiana da sala de aula acontecem, em outras proporções, alguns eventos

da vida em sociedade, alienada ou criticamente. Alunos e professores realizam nas salas de aulas acordos, contratos, relações de convivência, práticas, costumes que traduzem os efeitos da sociedade maior. Assim, como na perspectiva foucaultiana dos micropoderes, os teóricos da sócio-antropologia valorizam os micro-aspectos da vida cotidiana que conduzem tanto à alienação como à apropriação e reapropriação da vida.