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Segundo Kuhlmann (1998, p. 31), as crianças participam das relações sociais, e este não é um processo apenas psicológico, mas social, cultural e histórico. As crianças buscam essa participação, apropriam-se de valores e comportamentos próprios de seu tempo e lugar, porque as relações sociais são partes integrantes de suas vidas, de seu desenvolvimento. Mas como dar voz e vez a este sujeito? Como ouvir, reunir e registrar as falas das crianças que trafegam diariamente pelos cotidianos sociais? De que forma explicar suas ações e reações?

Estas questões talvez sejam os principais dilemas que pesquisadores/as e estudiosos da infância encontram, quando apontam as crianças que circulam pelos espaços sociais como sujeitos centrais de investigação. Não é tarefa fácil, diante de uma realidade emaranhada e

20 Segundo Perrotti (1982), a visão adultocêntrico e redutora em relação à infância apresenta-se quando o adulto

se coloca numa relação de poder sobre a criança, concebendo-a como um vir-a-ser, como um adulto em miniatura, preocupado em transforma-lo naquilo que ele é e em que acredita, partindo de seu próprio referencial – um referencial centrado no “paradigma da saciedade centrada no adulto”. É importante salientar que Rosemberg (1976: 1470) já fazia uma critica a postura adultocêntrica nos estudos sobre a criança na psicologia.

complexa como é o cotidiano social, chegar a esses sujeitos, ou seja, as crianças. Mais complicado ainda é quando enfocamos a escola para chegarmos ao aluno ou aluna que está dentro da criança, principalmente quando temos a compreensão de que essas crianças se constituem como atores sociais, capazes de criar e modificar culturas, embora inseridas no mundo adulto.

Se tivermos o entendimento de que as crianças interagem no mundo adulto, pois negociam, compartilham e criam culturas, necessitamos pensar em metodologias que efetivamente tenham como foco: suas vozes, seus olhares, suas experiências, suas atitudes e seus pontos de vistas, enfim, suas manifestações. A partir dessas reflexões, ouvir as crianças é a possibilidade de defender e perceber a sua capacidade de representar a si mesma e o seu contexto social. Mas quais são as implicações metodológicas que envolvem pesquisas com crianças, quando estas se constituem como sujeito central da pesquisa?

No sentido de “dar voz” a esse sujeito tirando-o do silenciamento, Quinteiro (2000) indica-nos alguns argumentos quanto à utilização de procedimentos e instrumentos que devem ser bem analisados, quando utilizados para desvendar os segredos que envolvem as crianças quando tomadas como sujeito da pesquisa, e afirma que:

Questões referentes aos problemas metodológicos de pesquisa com criança, fundamentalmente, as relações: sujeito-criança-escola; infância-criança- escola; criança-adulta; criança-aluno; aluno-professor; além dos problemas relativos aos instrumentos e procedimentos metodológicos, tais como: o uso da entrevista, da enquête, produção iconográfica das crianças, enfim, mediações que ultrapassam as tradicionais, expressas em jogo, brinquedo e brincadeiras, formam um feixe que não esgota e que apresenta inúmeras dificuldades para serem vencidas pelo pesquisador (2000, p. 112).

Para desvendar esses segredos, nada melhor do que partir da própria criança, para estudar as realidades que as envolvem e consequentemente a infância enquanto categoria social que está vinculada a criança. Nesta perspectiva a criança que tomo neste estudo é sujeito, é ator, produtora de cultura - é cidadã. Olhar a criança como sujeito central da pesquisa requer considerá-la como co-participante de processo, reconhecendo sua voz como expressão da capacidade de compreender sua peculiaridade e de construir um conhecimento sobre ela.

As dificuldades em ter a criança como informante legítimo acontece justamente em algumas áreas do conhecimento que não reconhecem a legitimidade na ordem discursiva da sua voz, enquanto sujeito de direito, principalmente no contexto social na qual está inserida cotidianamente, neste caso, a escola.

No que diz respeito ao ponto de vista metodológico sobre a infância e criança, nas Ciências Humanas e Sociais, os recursos a serem utilizados para ouvir e registrar as falas das crianças, ainda apresenta-se indefinidos. Essas áreas resistem em considerar a fala das crianças como parte confiável de uma pesquisa. Isto se deve talvez, pelo fato de que a maioria das/os pesquisadoras/es ainda desconsidera a criança como um sujeito histórico, cultural e social, capaz de produzir cultura, influenciar e ser influenciado pelo contexto social no qual está inserido, constituindo-se como ator social.

De acordo com Quinteiro (2002), essas áreas demoraram muito para visualizar as crianças como categoria social em suas pesquisas, e mais tardio ainda, foi centrar suas análises na complexa relação existente entre infância e escola. Para esta pesquisadora da infância, são raros os estudos que centralizam as investigações do “ouvir as crianças” da escola pública, cuja intenção é entender como estas, criam ou recriam, representam ou modificam o contexto social no qual estão inseridas. Neste sentido afirma (2000, p. 108, grifo do autor):

Pouco se ouve pouco se pergunta às crianças, e, ainda assim, quando isto acontece, a fala fica solta, intacta, à margem das interpretações e análises dos pesquisadores. Estes perecem ficar prisioneiros de seus próprios referenciais de análise. Faltam trabalhos sobre quem é a criança, aluno do ensino fundamental, como vivem essas crianças, quem são seus pais, o que a escola deve fazer para cumprir com o seu papel histórico de formar o homem novo, o sujeito que pensa, produz e é capaz de transformar as coisas e o mundo.

Para superar essa aparente divergência metodológica, a pesquisa etnográfica com crianças surge como uma das possibilidades de dar voz a estes sujeitos, entretanto, ainda carece de um conjunto integrado de métodos e técnicas que possibilitem subsidiar as pesquisas e que centralizem a infância e a criança no campo da educação. Para tanto é necessário pensar as crianças em contextos específicos, com suas experiências reais e concretas, principalmente em situações da sua vida real e cotidiana21. Ainda assim, são poucos os trabalhos que buscam considerar as “vozes” infantis22. Entretanto, representam a intenção e a necessidade por parte de alguns(mas) pesquisadores(as) em construir novos olhares de análises cuja intencionalidade é desvendar e compreender as representações sociais interpretadas pelas crianças, por meio do seu olhar.

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Estudar o cotidiano não é tarefa fácil e ainda é pouco utilizada por pesquisadoras e pesquisadores. José Azanha (1992) nos chama a atenção para sua importância; segundo ele, essa dimensão da realidade tem estado quase ausente das preocupações acadêmicas. O autor argumenta que a nossa ignorância sobre o cotidiano nas instituições de educação representa uma lacuna e que pode estar aí parte dos desacertos e dos equívocos que compõe o nosso saber pedagógico.

22 Pesquisas como: Martins (1993); Quinteiro (2000); Sarmento (2000); Silva (2000), Reis (2000); Oliveira

(2001); Ferreira (2002); Pinto (2003); Becker (2006) representa uma grande contribuição na compreensão da criança como sujeito de direitos.

Algumas(ns) pesquisadoras(es) como; Sarmento (2000), Quinteiro (2000; 2002), Alves (2001), Demartini (2002), Ferreira (2002), Pinto (2003), Schneider (2003), Costa (2004), entre outros, vêm pesquisando e discutindo questões teóricas e metodológicas relacionadas a trabalhos e pesquisas que buscam observar, ouvir, registrar, filmar e interpretar as representações sociais e culturais das crianças no cotidiano escolar.

Essas pesquisas nos apontam sobre a importância de escutar e interpretar suas vozes que ecoam pelos espaços escolares23 e sociais, no sentido de visualizar pistas que possibilitem entender e talvez modificar a realidade desses sujeitos que circulam nesses espaços, em especial as escolas públicas.

Trabalhar com crianças implica em algumas dificuldades que vão desde as indefinições de quais recursos que podem ser utilizados, para melhor reunir e registrar suas vozes, até as questões éticas envolvidas nas pesquisas com esses sujeitos nos diversos contextos no qual estão inseridas.

Kramer, em seu artigo publicado nos Cadernos de Pesquisa nº 116 (jul. 2002), intitulado: “Autoria ou autorização éticas na pesquisa com crianças”, nos faz uma interessante e oportuna reflexão sobre a explicitação ou não, na apresentação das pesquisas, dos nomes de crianças entrevistadas ou observadas; utilização e autorização de uso de imagens; a possibilidade de devolver o resultado da pesquisa, impedindo que os sujeitos que fizeram parte, sofram com as repercussões desse retorno para as instituições educacionais que estão inseridas e que foram estudadas.

Em um trecho de seu artigo, a autora explicita o quanto essas questões necessitam de uma discussão mais profunda e reflexiva, e ao longo de todo texto ela vai delineando suas reflexões, afirmando que: “a sua principal intenção é compartilhar perguntas mais do que oferecer respostas.” (p. 43).

No Brasil os estudos sobre a Infância e Educação apresentam uma produção variada e ampla, porém, alguns desses estudos ainda estão centrados numa visão adultocêntrica Em sua tese de Doutorado intitulada “Infância e escola: uma relação marcada por preconceitos”, Quinteiro já detectou este adultocentrismo24, nas suas análises sobre as representações sociais das crianças como aluno(a) das séries iniciais do Ensino Fundamental da escola pública.

23 Estudos recentes têm procurado ouvir e levar em conta os conhecimentos produzidos pelas crianças no

contexto coletivo de instituições educativas. Entre eles: Búfalo (1997), Gobbi (1997), Leite (1997), Prado (1998), Batista (1997), Delgado (1998), Oliveira (2001), Coutinho (2002), Agostinho (2003).

24 Márcia Gobbi (1997: 26) faz uma relação deste termo, que significa uma visão de mundo que considera o

adulto como o centro de tudo, tudo passa a ser visto e sentido segundo a ótica do adulto, com o termo etnocentrismo, que se caracteriza por uma visão de mundo segundo a qual o grupo a que pertencemos é tomado como centro de tudo.

Por essas razões, tentei analisar as relações de gênero nas brincadeiras entre as crianças considerando-as como atores sociais, capazes de múltiplas relações. Levando em consideração que nem sempre elas estão fazendo aquilo que queremos ou esperamos, propus- me a tratar o tema das relações de gênero a partir de uma perspectiva diferenciada, na tentativa de um olhar não do adulto, mas observando e interpretando atentamente suas manifestações. Entretanto, é preciso que o pesquisador se coloque no ponto de vista da criança e percebendo o mundo com os olhos dela, como se tudo estivesse sendo visto pela primeira vez.

Esta perspectiva permeia as análises deste estudo, possibilitando uma forma diferenciada de reflexão sobre as relações de gênero, apontando para novas possibilidades de ser menino ou menina. Sendo assim, as manifestações da criança possibilitam “ser diferente” e este “ser diferente” fica descarregado de uma conotação negativa e preocupante sob a mira do adulto.