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2 TRAMAS DESTA HISTÓRIA APONTAMENTOS SOBRE MODA, GÊNERO,

2.1 A moda, o vestuário e suas “marcas” na história

2.1.1 O que é a moda afinal ou como ela pode ser entendida

Nas últimas décadas do século XX, pesquisadores fizeram grandes e diferentes análises sobre a moda. Para o sociólogo Pierre Bourdieu45 (2007, 2008), o

cerne da moda estava na distinção de classes e no capital simbólico. Para ele, as criações de moda funcionam como instrumentos de distinção dentro das classes e entre elas. Segundo essa ideia, seria a necessidade dos grupos dominantes se distinguirem de outras parcelas da população que faria com que as roupas se transformassem de tempos em tempos. A detenção do capital simbólico sobre a produção da moda está diretamente relacionada à transubstanciação simbólica do costureiro para seus produtos46. Essa transubstanciação está relacionada à

produção de valor do produto, atrelada a uma marca/nome. O valor de uma roupa de grife ou uma moda estariam diretamente relacionamentos com o poder simbólico daquele que a criou47. O filósofo francês Gilles Lipovetsky (2009), por sua vez,

possui uma visão diferente do sistema. Para Lipovetsky, a moda seria

uma forma especifica da mudança social, ela não está ligada a um objeto determinado, mas é, em primeiro lugar, um dispositivo social caracterizado por uma temporalidade particularmente breve, por reviravoltas mais ou menos fantasiosas, podendo, por isso, afetar esferas muito diversas da vida coletiva48.

Para ele, o fato de o tempo presente regular o eixo temporal da vida na modernidade, a concepção do homem de que ele tem poder de criar seu mundo e adotar a mudança como regra de vida, faz com que ele adote o sistema de mudanças cíclicas no vestir e no portar-se. Lipovetsky não vê a moda como uma estratégia de distinção de classes, conforme Bourdieu, mas como uma maneira de afirmar a própria personalidade e a relação de si com os outros. A socióloga americana Diana Crane (2010), no estudo “A moda e seu papel social”, faz uma análise deste sistema, que parece englobar essas duas teorias. Para Crane, o vestuário é uma das primeiras marcas de status social e de gênero de um indivíduo,

45 Duas obras do autor são utilizadas como base teórica para o entendimento da moda, são elas: “A

Distinção” e “O costureiro e sua grife”.

46 BOURDIEU, Pierre; DELSAUT, Yvette. O costureiro e sua Grife: contribuição para uma teoria da

magia. In: BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre, RS: Zouk, 2008, p. 168.

47 O tema da transubstanciação simbólica de Bourdieu será discutido de forma mais aprofundada nos

próximos capítulos, quando discutirmos os costureiros da década de 1960.

e indica como as pessoas, em diferentes épocas, “veem sua posição nas estruturas sociais e negociam suas fronteiras de status”49. Segundo sua interpretação, as

roupas são reservatórios de significados, que podem ser manipulados. Além disso, “as modificações no vestuário e nos discursos acerca dele indicam mudanças nas relações sociais e tensões entre os diferentes grupos sociais que se apresentam de forma diferente no espaço público”50. A partir de observações das transformações no

vestir seria possível, então, identificar as transformações nos tempos históricos. Após nos debruçarmos sobre os trabalhos destes autores chegamos à conclusão de que nenhuma dessas teorias, de forma isolada, era capaz de englobar todas as questões que a moda nos permite observar e analisar. Reduzir a moda à distinção social seria ignorar que em muitos momentos foram criadas roupas inspiradas no que os trabalhadores utilizavam e essas estiveram em voga entre os mais moderninhos51. Por sua vez, creditar as mudanças no vestuário apenas ao

gosto pelo novo e pela identificação pessoal seria ignorar, por exemplo, o poder da alta-costura francesa. Por estes motivos, nesta dissertação, vamos nos valer de dois conceitos diferentes, baseados no que esses teóricos já escreveram sobre a temática.

Identificamos como “sistema da moda”52 as mudanças cíclicas e constantes

relacionadas às roupas e à aparência53, que são influenciadas pelas transformações

sociais, políticas, culturais e econômicas; impulsionadas pela indústria para incentivar o consumo. Por sua vez, não basta que sejam produzidas roupas se elas não estiverem revestidas de uma significação. Conforme destaca Malcom Barnard (2003), o que torna possível identificar se uma peça faz parte ou não da moda é que ela precisa ser indicada como tal.

49 CRANE, Diana. A moda e seu papel social: Classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo:

Editora Senac, 2006, p. 21.

50 CRANE, 2006, p. 24.

51 Pensar na apropriação que foi feita do blue jeans, que havia sido criada para ser usada por

operários e que foi resignificada pelos jovens como uma forma de contestação através do vestuário. Zimmermann, 2009, p. 44.

52 Aproximamo-nos do que Barthes sugere como proposta de análise histórica e sociológica da

indumentária: “o historiador ou sociólogo não têm de estudar apenas gostos, modas ou comodidades; precisam recensear, coordenar e explicar regras de disposição ou uso, imposições e proibições, tolerâncias e transgressões; não devem recensear “imagens” ou traços consuetudinários, mas relações e valores; essa é a condição preliminar de toda relação entre vestuário e história, pois precisamente essas correlações normativas são, em última instância, veículos de significação” (BARTHES, 2005, p. 266).

53 Autores como Lipovetsky (2009), Crane (2006) e Wilsom (1989) são alguns dos que podem ser

citados por pontuarem essas mudanças constantes, ainda que os motivos por eles identificados sejam divergentes.

Pode não ser possível definir uma peça de roupa específica, ou um traje, como um item de moda, mas deve ser possível assegurar se uma peça determinada de roupa está funcionando como moda. Do mesmo modo que um saco plástico, por exemplo, não representa um item de vestuário até o momento que alguém o use, assim uma roupa ou acessório não constitui um item de moda até que alguém o use para indicar o seu lugar real ou ideal numa estrutura social. Não existe qualquer ponto essencial que uma peça de vestuário deva partilhar com outra para que seja considerada moda; [...]. Só o contexto permite a identificação de uma peça de roupa como moda ou não-moda54.

Nesse sentido, para que um item faça parte do sistema da moda e esteja em voga, sendo apropriado e copiado, ele precisa ser assim indicado. Isso se refere a roupas, maquiagens, penteados, entre outros. Determinada peça estaria então, “na moda”, “em voga”, “em alta”. Ao fazer uso dos dispositivos da “moda”, por sua vez, os indivíduos podem manifestar diversos posicionamentos55, tais como: para se

distinguir socialmente de outros grupos e classes sociais ou como forma de buscar inserção nesses espaços; como uma forma de construção de suas identidades56,

buscando refletir seus gostos pessoais e posicionamentos políticos; para demarcar seus espaços geográficos e para definir o seu gênero. Por meio de suas constantes alterações no vestuário e no parecer, a moda é também um meio de expressão individual e coletiva.

2.2 O corpo, o gênero e a moda: apontamentos de teoria e metodologia de