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Quebra da quarta parede e escuta dos acasos

Capítulo 2: Elementos técnico-estilísticos

2.2. Quebra da quarta parede e escuta dos acasos

A quarta parede é a que separa atores e público, tendo como referência um tipo de teatro italiano (caixa preta), formado por três paredes concretas e uma quarta invisível, aberta para o público, o qual assiste a encenação.

O palhaço quebra esta quarta parede, tirando a encenação de um lugar intocável e, numa espécie de desmistificação, abre a mesma para a relação direta com a platéia. Esta

quebra da quarta parede se evidencia na linguagem do palhaço pela técnica da triangulação, que consiste em comentar com o público, de forma direta, aquilo que se passa na cena. Ao mesmo tempo em que encena, o palhaço conta para o público o que está acontecendo, relacionando-se com ele. Por conta de não trabalhar com uma delimitação taxativa entre atores e público, o campo teatral do palhaço abre a cena para a interlocução a partir de uma variação de estímulos que ocorram durante a apresentação, sejam estímulos de dentro do teatro ou de fora dele, como o barulho de um avião passando ou o espirro de alguém do público. A cena do palhaço fica diretamente ligada ao que se passa e se faz acontecimento de um espaço imprevisível.

Assim, também dentro de suas próprias rotinas de apresentação, muito do vigor de um palhaço aparece nos lances improvisados, quando ele se surpreende com sua própria rotina, como que num exercício de quebrar o tédio. Conforme coloca o palhaço Avner, o tempo de cumprimento das coisas que vem a fazer no palco é de 40 minutos, mas seu show tem em média 1 hora e 45 minutos, com acréscimo do material improvisado no momento.

Vejamos o exemplo de uma cena do palhaço Adão (Paulo Federal) no espetáculo

Jogando no quintal57. Adão escolhe uma pessoa da platéia para pedir um tema para a

improvisação, e diz: “Olá, qual a sua graça?” “Karen”, é a resposta. Adão diz: “Abre a boca, fecha os olhos...” (olha para dentro da boca da moça). “Não, não to vendo nenhuma Karen aqui.” Um simples trocadilho com Karen/ cárie, que se faz a partir da similaridade sonora das duas palavras, desconcerta a cena.

Neste exemplo, só possível porque o palhaço está na relação direta com a platéia, a piada se cria no bate-volta de uma apresentação aparentemente corriqueira. Por isso mesmo a surpresa aparece de forma tão contundente. É justamente nos lugares onde menos se espera, onde o público está mais tranqüilo na relação, que se abrem buracos na cotidianidade e se instaura a bagunça no mapa onde todos transitavam até então com segurança. Uma cárie.

57 Esta cena aconteceu durante a temporada 2007 do espetáculo Jogando no Quintal no teatro do colégio Santa Cruz, em São Paulo/SP.

Esse é o elemento da incongruência58, ou a constatação compartilhada de uma possibilidade inusitada dentro de um campo de respostas esperadas. Então o público se deixa levar por esse jogo que o palhaço parece dominar tão bem. E quanto mais ele domina o jogo das desarticulações de sentidos, mais o público fica refém de sua abordagem.

Há um tipo particular de riso aqui: houve uma surpresa, uma confusão e uma aceitação desta transgressão do mapa usual pelo riso. Instaura-se uma estranha qualidade de confiança neste ser que só faz nos puxar o tapete. Tudo isso acaba formando um entendimento de que se você não se entregar como público, não haverá como rir. O público não pode ser mais esperto que o palhaço, ele não pode antecipar as piadas59. O público faz uma aposta, literalmente. Esta é a condição da surpresa e do riso, mesmo sabendo que pode vir uma piada dali, ele nunca pode ter absoluta certeza, deve permanecer no seu plano de referência, que entrega, feliz, para o palhaço esburacar. Os próprios palhaços do Jogando no quintal parecem entender bem isso quando apresentam uma caixa e pedem para a pessoa sortear um dos papéis que se encontram em seu interior:

“Fecha os olhos e confia no palhaço...” O público ri.

Numa boa palhaçaria, o próprio palhaço se coloca numa ação de investigação livre sobre as interações, podendo mudar o rumo da conversa por puro prazer de investigar as possibilidades de riso peculiares àquele encontro. Se a platéia domina um jogo, o palhaço precisa ter um outro que ela não domine, a fim de operar a traição das certezas que, nesse jogo, são coletivamente explicitadas.

Neste aspecto, é impossível “representar” um palhaço. O teatrólogo italiano Dario Fo60 coloca que ser um palhaço demanda tempo de prática, e que o palhaço não se

58 O paradigma da incongruência é um dos três paradigmas sobre o riso. Este tema se encontra no trabalho de diversos filósofos, inclusive Kant, que defendia a idéia de que o riso era provocado pela constatação de um elementos surpresa numa resposta esperada, e pelo alívio que causava a constatação dessa surpresa. Os três paradigmas sobre o riso serão apresentados na parte 2 da tese.

59 É interessante observar como algumas crianças tem um prazer imenso em corrigir os erros do palhaço durante a cena. Presenciei algo assim com o palhaço Jesus durante sua apresentação no Anjos do Picadeiro 7 (dezembro 2008). Seu espetáculo é recheado de enganos, e uma criança na platéia avisava o palhaço o tempo todo sobre seus esquecimentos, como que querendo lhe ajudar, o corrigindo. O público ria da maneira como a criança se relacionava de forma pura com os supostos erros do palhaço, e o palhaço Jesus passou a aproveitar as intervenções da criança para justamente trair a obviedade de suas especulações. Ele voltava atrás nos erros que ela corrigia e mostrava que mesmo seguindo a indicação dela, a coisa continuava dando erro...

improvisa. Implica a apropriação de um tempo e uma lógica próprias, que vão se refletir nas ações executadas em cena. Mesmo numa cena formalizada e ensaiada, a qualidade de presença “viva” a qual se refere Nani Colombaioni, precisa acompanhar a ação. Fazer tudo como se fosse pela primeira vez. Estar vivo em cena é saber ouvir a reação e a respiração

do público para que as ações sejam comunicadas de forma eficiente, ou seja, no tempo justo.61

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