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Capítulo 2: Elementos técnico-estilísticos

2.4. Tempo e erro

Nosso quarto ponto de análise é a escuta do tempo, outra característica da arte do palhaço; este se desdobra em três perspectivas: 1) errar duas vezes e acertar na terceira (técnica matemática da comédia); 2) desenvolver um tempo interno pessoal do palhaço diferente dos demais; e 3) escutar o tempo interno da realização da piada. O timming é uma das forças motrizes da potência risível da comédia, basta mudar os tempos de realização de uma ação para transformá-la de cômica em dramática.

O palhaço é rápido para perceber o lugar onde se pode furar o caminho usual; ao mesmo tempo é lento quando apresenta sua inaptidão para fazer as coisas como os outros. Há um tempo de demora para perceber um erro ou um desacerto: se fracassa duas vezes e

se acerta na terceira. O erro deve ser bem pontuado, incorporando na ação cênica os tempos de comentário da cena, os tempos do pensamento do palhaço na ação, os tempos do pensamento do público.

Além da matemática da comédia, um bom palhaço tampouco prolonga o tempo de uma cena além do necessário e deve estar disposto a mudar de idéia e de gag caso não esteja funcionando. É o que dizem os palhaços Alberto Vitali e Carlo Colombaioni64. Ambos, com as figuras bem marcadas do palhaço Branco (o que manda) e do Augusto (o que é mandado) colocam que: Fazemos o espetáculo para o público. Se uma gag não

funciona, imediatamente partimos para outra.65

Woody Allen coloca:

Quando eu escrevia, sempre começava com um monólogo mais longo – mas não era de propósito; eu só pensava: Isto aqui vai ser

fantástico. Aí, ia para o palco e me dava conta: Ah, meu Deus, se eu

falar isso agora, sinto que eles não vão dar risada, nem mesmo depois de terem dado risada das últimas seis piadas, não é por aí. Quando a gente está na linha de fogo, o corpo diz para onde ir. Você simplesmente sabe o que vai te matar. (...) Você sabe o que fazer e o que cortar, de alguma forma sente uma eletricidade no ar. Num teatro da Broadway, com a platéia ali, rindo baixo ou cochichando, dá para saber com absoluta precisão o que vai funcionar e o que não vai. Você sente a realidade do momento, é infalível – bom, infalível não, mas raramente falha. Ainda é possível se dar mal. Claro, perceber isso quando você está na frente do público e não em casa escrevendo quer dizer que sempre é tarde demais.66

A simpatia do palhaço por vezes se forja na relação inocente que ele tem com o mundo dos outros, e isto aparece especialmente quando se comparam os tempos de um e de outro. Na perspectiva de Carlitos (no filme Tempos Modernos), ele de fato não entende porque a polícia o prende sendo que ele apenas tentava devolver a bandeira vermelha caída de um caminhão. O que ele não enxerga e nem pode enxergar (seu ponto cego) é a manifestação que avança atrás dele de encontro à polícia. A cena se desenvolve com o palhaço, que não tem nada a ver com a situação, sendo preso como líder de movimento.

64 Carlo Colombaioni (1934-2008) Foi um dos primeiros a trocar a lona do circo pelo palco do teatro. Trabalhou muito tempo com o irmão Nani Colombaioni, antes de formar a parceria com Alberto Vitali. 65 Em entrevista à TV italiana.

66 Lax, Eric. Conversas com Woody Allen: seus filmes, o cinema e a filmagem. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p.144.

No vídeo 19 (Slava) e no vídeo 17 (Jango Edwards) temos exemplos do trabalho com o tempo da ação, preciso e de escuta refinada. Em ambos os casos, sentimos que estamos diante de uma coreografia, tal é a precisão de seus tempos.

O erro do palhaço é uma conseqüência da sua deriva singular, onde um plano de referências se choca contra outro. Diante disso, ele não adota uma postura contrária e opositora; a crítica aos planos do senso comum ou o do bom senso se faz pela inversão do jogo, que acabam por revelar incoerências dos mesmos e operar suas próprias contradições sem que se precise ir direta e explicitamente contra eles.

Há ainda um outro tipo de tempo a ser percebido numa ação de palhaço. Uma velocidade que distorce o espaço e os lugares onde ele possa vir a ser capturado por algum de nossos planos de referência. Uma cena do palhaço Chacovachi (vídeo 8) pode nos servir de exemplo. Na interação de Chaco com um menino da platéia, o palhaço está enchendo uma bexiga de escultura, e brinca com o imaginário sexual (a imagem da bexiga cheia é semelhante ao órgão genital masculino). Ele vai brincando: Que fantasia, hein?...

Mais, quero mais!. O menino que tem por volta de 10 anos de idade está parado ao lado.

Chaco olha o menino dizendo: Jo creo que vos no compreendioôô... Ocorrem mais algumas dessas piadas com referências adultas e de repente ouve-se um estouro. Chaco cai no chão e coloca a mão no peito. Olha para a mão e para o peito assustado, levanta rapidamente: Dios meu, esse foi de la madre de lo menino...

O palhaço não se deixa capturar lá onde ele é indomesticável. Ele acelera a condição temporal de entendimento de suas piadas, dando um verdadeiro cansaço no público.

Finalizamos esta parte já anunciando a próxima, com uma indisciplina do bufão Jairo67 durante um trabalho realizado na rodoviária de São Paulo. Jairo é um bufão e, como bufão, tem aspecto de mendigo. Um policial, vendo um mendigo abordar os passageiros, não acreditou que fosse uma performance e intimou: “Quem é você?” Perguntou o policial. Jairo mendigo diz: “Eu sou você... amanhã.” O policial ficou furioso, tanto por ter errado o alvo – pois percebeu que era uma performance – quanto pela

67 Jairo é o personagem bufão da atriz Paula Preiss, gaúcha radicada no Rio de Janeiro. A cena descrita ocorreu num trabalho contratado pela empresa Itapemirim, em 2006, que contratava palhaços para animar o saguão de embarque na época das festas de Natal.

indisciplina do Jairo que usou o próprio policial como jogo para a piada. O poder ameaçado tem mesmo muito pouco senso de humor.

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