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CAPÍTULO IV: Transformação de campesinato de uso comum

Foto 12: Quebra de coco babaçu,depois de meses de acúmulo

Antes as possibilidades alimentares eram as mais diversas possíveis, além dos alimentos oriundos da atividade agrícola, extrativa e da criação de uma grande variedade de animais, tinham também a possibilidade de obtenção de uma grande variedade de peixes, mariscos, crustáceos, bastante importantes na cultura alimentar. E é essa proximidade ao mar, rio e igarapé que contribui para a consolidação da idéia de fartura compartilhada pelo conjunto de famílias quando se referem à disponibilidade de recursos nos seus antigos lugares.

Devido a proximidade ao mar, os peixes representavam um dos principais itens na alimentação diária das famílias, que agora, na agrovila deixou de ser, conforme depoimento abaixo:

Pesquisadora: e quanto ao peixe?

Seu Melquiades: aqui é difícil. Lá a gente comia peixe fresquinho, né, aqui a gente só come peixe gelado, porque até chegar aqui.

Além da escassez desse tipo de alimento, observa-se no relato a alusão à forma como ele éconsumido: antes alimentavam-se de peixe fresco pela facilidade de acesso, hoje o comem resfriado devido a distância. Essa redução de alimentos, principalmente o pescado, não significou apenas um problema de segurança alimentar, mas mudou também outras esferas da vida social, como as festas e rituais religiosos, nos quais os alimentos

As Festas

Todas as festas que eram realizadas no conjunto da localidade que foram, por mim, denominadas de unidade sociológica, foram alteradas e algumas até deixaram de existir, em decorrência da quebra na rede solidariedade que existia entre os povoados para realização de tais festas.

Esses eventos, que envolviam o conjunto de povoados, podem ser caracterizados como um forte elo de ligação e identificação do grupo, pois em torno deles reside uma imensa rede de relações, que envolve as mais diversas esferas da vida social: parentesco, trocas econômicas, produção, casamentos e compadrios. Segundo Souza Filho, a festa, entre outros aspectos históricos, funciona como “elemento que fortalece a coesão social do grupo, contribuindo, igualmente, para a consolidação da identidade coletiva” (SOUZA FILHO, 1998, p. 99).

Dentre as festas que deixaram de existir, tem-se, como exemplo, o carnaval. Não aconteceu mais porque, entre outros fatores, os moradores de Pedro Marinho, principais responsáveis pela sua realização, foram separados no contexto da transferência para a

agrovila. Na mudança, uns foram para Alcântara, outros para Só Assim e Seu Melquiades, um dos organizadores foi o único que se mudou para Peptal. não havia mais um grupo coeso para realizar a festa.

A festa de Santa Tereza também deixou de acontecer, principalmente por falta de estrutura. No primeiro ano não havia como realizá-la, pois no período em que ocorria, as famílias tinham chegado à agrovila há apenas um mês. O espaço, a vida, as relações, o trabalho, tudo estava ainda por reorganizar. Depois, Dona Maria ainda tentou organizar-se para realizá-la, mas a sua sogra adoeceu e veio a falecer e, conforme o respeito ao luto, novamente no segundo ano não realizaram a festa. Nos anos seguintes Dona Maria não conseguiu mais estruturar-se para levantar a festa, como ela diz, principalmente por não poder mais contar com a ajuda do grupo como no Peptal Velho.

Pesquisadora: mas aqui tinha a mesma ajuda para fazer a festa como tinha antes? Dona Maria: não, não, ajuda mais é pouco, eles ficaram tudo afastado não querem ajudar, quando era dantes, lá no Peptal Velho, lá onde a gente morava, ah! pra fazer uma festa todo mundo ajudava, cortava lenha, botava caieira, todo mundo ajudava e aqui não, aqui não, é difícil, ninguém quer ajudar, eles ficam dizendo ah, ela vai fazer festa é pra ganhar dinheiro, não vai dar, não vai pagar, por isso a gente evita de fazer.

Em conseqüência das novas relações interpessoais que se estabelecem com a mudança Dona Maria deixou de realizar a festa, mas também em função de não conseguir mais garantir um fundo de reservas para a manutenção da festa, ou seja um “fundo cerimonial” (WOLF, 1976). Com efeito, a escassez de recursos e também o tamanho reduzido de sua unidade familiar, ela e o marido tinham apenas um filho, ou seja, tinham uma atividade produtiva pequena em função do número de membros aptos para o trabalho.

A festa de Boi16 não acabou, mas acontece de uma forma diferente e praticamente sem nenhuma relação com a localidade, nem com os membros do grupo. Na expressão de alguns informantes, deixou de ser uma festa – como fato social total, nos termos de Mauss (1974) - e passou a ser uma “brincadeira” do período junino. A própria denominação utilizada pelos informantes para se referir a esse domínio importante, acaba sendo reveladora das transformações sofridas. O denominado dono da festa, o promesseiro, faleceu logo depois da mudança para a agrovila e hoje a festa não acontece mais lá. Uma irmã dele que mora em Alcântara a organiza, com essa nova característica, fora da agrovila. Ela convida algumas pessoas para participar da “brincadeira” e organiza apresentações em várias localidades durante o período junino, o que não acontecia antes. A “brincadeira” faz apenas uma apresentação em Peptal na véspera do dia de São João, na porta da casa onde morava o antigo dono. Nada referente à organização da “brincadeira” passa pela agrovila e nem pelo controle dos antigos moradores de Camaleão que lá residem.

No contexto do deslocamento foram várias as mudanças ocorridas. As festas e a religiosidade não ficariam fora desse processo. Tiveram que ser acomodadas na nova situação a que foram submetidos. Atualmente, a única festa que acontece na agrovila Peptal é a de São Benedito, também readaptada em termos de seus preparativos e realização Os dados coligidos sobre essa festa permitem-me realizar uma descrição, bem como a análise de alguns aspectos que a justificam hoje, considerando suas alterações e novas características.

Com a transformação de um campesinato de uso comum em parcelar, mudam também as formas de aquisição de recursos para a manutenção da festa. A modificação compulsória de um sistema de uso comum a parcelar, promoveu enormes mudanças na organização social e econômica das famílias, o que comprometeu sobremaneira a realização das festas.

As agrovilas tiveram suas festas e rituais empobrecidos. Passaram a ser obrigadas a “celebrar suas festas religiosas sem contar com recursos fundamentais: a farinha, tapioca, azeite de babaçu, carne de porco, alimentos imprescindíveis para sua realização” (SOUZA FILHO. et. al, 2006, p. 54). A constituição de um fundo cerimonial é de suma importância para a garantia do sucesso da festa, e a falta de condições econômicas e produtivas para garantir essa reserva é uns dos fatores predominantes nas alterações ocorridas.

Uma das principais alterações deu-se em relação aos alimentos, sobretudo no que diz respeito aos gastos, já que tiveram que passar a comprar mais alimentos, pois o que era produzido não era suficiente para manter todos os dias de festa. A carne, por exemplo, é bastante consumida nesse período, portanto “para realizar a festa na agrovila as famílias são obrigadas a realizar maiores sacrifícios. Esse aspecto dá a dimensão das alterações sofridas na estrutura da festa e na distribuição e consumo de alimentos nesse contexto” (MORAES & SOUZA FILHO, 2006, p. 247). Não só a pouca atividade produtiva compele os moradores a realizar maiores sacrifícios, mas também a pouca circulação monetária.

A chamada jóia é fundamental para a realização da festa17. Hoje, o recolhimento dela é reduzido, pois as famílias não dispõem de dinheiro para contribuírem. Os que permanecem contribuindo o fazem em quantidades irrisórias. Além disso, em algumas conversas relataram-me que a disposição para o “tiramento” tem diminuído bastante, o que se associa ao pouco comprometimento das novas gerações que cresceram na agrovila. Tal fator aponta para o comprometimento da festa como fator de socialização e fortalecimento da identidade coletiva do grupo. Esse é apenas um dos aspectos que revela porque para os jovens os motivos que justificam a realização da festa não são os mesmos que justificavam anteriormente.

17 O trabalho de Regina Prado, já referido, mostra com riqueza de detalhes a importância da denominada jóia