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Intuo ser aceitável haver novas alternativas de análise ou de olhares para se adentrar em outros atalhos, na tentativa de diferenciar um pouco mais as ações de Íxion, afastando-se de dogmas relacionados às regras de comportamento, do que pode ser considerado certo ou errado, bem ou mal, procedimentos éticos ou morais.

A figura deste mito pode ter surgido no imaginário helênico, simplesmente, para quebrar paradigmas comportamentais impostos de cima para baixo, talvez por isso seja consi- derado por muitos como o maior vilão mitológico grego. Mas se levarmos em conta que o herói pode ser aquele que aceita a luta mesmo sabendo que será derrotado, então não poderia deixar de reservar um lugar de destaque ao rei de Lápitas.

Se desvincularmos Íxion do arcabouço mítico de Zeus, sob uma jurisdição simbóli- ca e poética a partir do povo grego, poderia incluir nestas reflexões que promovo, uma vez mais, os preceitos de Schopenhauer, nos quais viver é uma sucessão de vontades e representações, e o tempo, na sua intermitente vigília, minuto a minuto, pronunciando a todo momento aos nossos ouvidos que o fim se aproxima e só nos resta viver.

Figura 17 – Alex Merino (2018). Fotografia da coreografia Balada da Virgem – Em

nome de deus. Inspirada em Joana D’Arc. Disponível em:

<http://www.ciacarneagonizante.com.br/>. Acesso em: 6 de agosto de 2018.

Talvez caiba aqui, também, citar um trecho da poesia “Psicologia de um Vencido” de Augusto dos Anjos, escrita em 1909, em que expõe, através de versos poéticos, um corpo em decomposição após a morte, as suas possíveis influências do filósofo prussiano, que caracteri- zou o fenômeno de estar vivo e preservar o máximo possível a existência por aqui, como uma incontrolável tendência em acreditar no imponderável, uma insânia constante na eterna vontade de transcendência após o fim físico. O poeta, considerado por aficionados em poesia como um representante do pessimismo em sua época, sentia e apresentava a morte como se fosse sua

musa inspiradora: “Já o verme, este operário das ruínas que o sangue podre das carnificinas come, e à vida em geral declara guerra, anda a espreitar meus olhos para roê-los, e há de deixar- me apenas os cabelos...” (ANJOS, 2001, p. 98).

Para Schopenhauer a felicidade não pode viver no presente e em “A Vontade de Amar” revela que:

A vida é uma constante mentira, quer nas coisas pequenas como nas grandes. Quando nos faz uma promessa, não a cumpre, a não ser para mostrar-nos que era pouco de- sejável o nosso desejo. Da mesma maneira nos enganam a esperança quando não se realiza o que esperávamos.

E se a vida cumpre o que nos prometeu, foi só para nos tomar e tirar.

A beleza do paraíso que, à distância admiramos, desaparece logo que nos deixamos seduzir.

A felicidade está no futuro, ou no passado; o presente é uma pequena nuvem escura que o vento impele sobre a planície cheia de sol.

(SCHOPENHAUER, 1985, p. 85)

Se Perseu, filho de Zeus, é conhecido por conta da sua enorme coragem, inteligên- cia e força física, afinal cortou a cabeça de Medusa em um combate épico, por que não lançar outros entendimentos e outros modos de compreender a coragem?

Ora, analisando os feitos de cada um, é perfeitamente coerente referendar Íxion como um mortal acima da média no que diz respeito à coragem, ousadia e petulância, pois, per- doem o vocabulário que usarei neste momento para definir a gravidade de seu crime: simples- mente ele quis “pegar” a mulher do chefe, só isso. É rigorosamente aí que pretendo enveredar meu raciocínio a respeito do pai dos centaurus87.

Se simbolicamente este mito representa as ambições descontroladas, a soberba fora de controle e a sua constante reincidência, levando-o à sua própria ruína, pode-se também ob- servar seus atos como sendo o de um destemido, extremamente corajoso, mesmo que irrespon- sável, seguindo os parâmetros do Olimpo.

Além disso, todos estes “desvios” de conduta, quebras de regras e a propensão à traição aos valores postos, fazem lembrar a arte de vanguarda, aquela que se alimenta do contraditório, do desregramento como modo de produção criativa.

O artista com esta característica rechaça ser camelo, e sim quer ser um leão, como anuncia Nietzsche (2013), em Assim Falou Zaratustra (em que apresenta a evolução da cons- ciência em apenas três símbolos: o camelo, o leão e a criança), publicado entre 1883-1885, re- cusa-se a abaixar a cabeça e obedecer a ordens, não aceita o cabresto, introduzido secularmente pelo poder e não se submete, de modo algum, ao modus operandi. Ele deve estar no comando sempre e, quando quiser, saberá proferir o ‘não’ todo o momento que for necessário e jamais aceitará a inescrupulosa orientação absolutista ‘tu deves’. Este tipo de personalidade criativa recusa sistematicamente ser um seguidor de cabeça declinada para o solo, não é capacho ou lambe botas do establishment (é possível incluir aqui a religião). Ser fiel é uma roupa que não lhe cabe ou uma carcaça que não sustenta seu espírito de leão, quase criança.

Vale ressaltar que, para Nietzsche, leão representa a insurreição, a mudança, o basta ou a virada de mesa, mas, para isso se concretizar, será necessário o ‘não’.

Penso ser perfeitamente coerente acrescentar que estar nesse nível de consciência significa se libertar, deixar de ser oprimido, apenas cumpridor de ordens de maneira dócil, de ser subserviente e com pouca capacidade de compreender a sua situação. Nesse estado de percepção, a proatividade denota ser constante e ininterrupta, ou seja, a possibilidade de um confronto é sempre iminente, portanto, o estado de alerta e a posição para a guerra é sempre constante. É a luta pela soberania e o corpo responde prontamente aos estímulos.

Já na consciência, ou lucidez da criança, o espírito se torna realmente livre, a sin- ceridade é absoluta e constante, onde a existência nada mais é do que estar receptivo e ativo ao mesmo tempo. Ou seja, viver a vida até o seu limite possível, apenas isso.

A verdade ou a mentira poderá ser definida de acordo com a necessidade do mo- mento, mas sempre obedecendo a um ritual ético e justo.

Assim parece ser o artista transgressor, um misto de leão e criança reinando em um campo repleto de armadilhas postas com o intuito de torná-lo camelo.

Por conta destas reflexões, entendo haver uma perspectiva bem interessante de tam- bém poder comparar o sentido do leão e da criança em Íxion, por que não? Pois as evidências apontam a negação do mito ao espírito do camelo.

Albert Camus traz uma reflexão bastante consistente acerca da arte do absurdo em “O Mito de Sísifo”, que considero relevante mencionar:

Ela marca ao mesmo tempo a morte de uma experiência e sua multiplicação. É como uma repetição monótona e apaixonada dos temas já orquestrados pelo mundo: o cor- po, imagem inesgotável no frontão dos templos, as formas ou as cores, o número ou o desespero. Não é, então, indiferente para terminar de encontrar os principais temas deste ensaio no universo magnífico e pueril do criador, seria um erro ver aqui símbolo e acreditar que a obra de arte possa ser considerada um refúgio diante do absurdo. Ela é em si mesma um fenômeno absurdo e a questão é apenas descrevê-lo. Não oferece uma saída para o mal do espírito. É, ao contrário, um dos sinais desse mal, que o reper- cute em todo o pensamento de um homem. Mas, pela primeira vez, tira o espírito de si mesmo e o coloca diante de outro, não para que se perca, mas para mostrar-lhe com um dedo preciso o caminho sem saída em que todos estão comprometidos. (CAMUS, 2016, p. 98)

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