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CAPÍTULO 1: A NATUREZA E OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DO ESTUDO

1.4 QUEM SÃO ENTREVISTADAS?

A apresentação de experiências de vida, de estudo e de trabalho de cada uma das trabalhadoras entrevistadas35 é de fundamental importância para o alcance dos objetivos deste estudo. Foram situados elementos que mantinham relações com o trabalho de bordadeira e com a participação na ABS e na Cobarts.

Bordadeira Tear, com 58 anos, reside em Caicó onde nasceu, sendo bordadeira desde os 19 anos. Há quase trinta anos, dedica-se ao trabalho nas instituições (associação, cooperativa, comitê)36 que agregam artesãs e artesãos do bordado de Caicó e do Seridó. Como salientou em sua entrevista, dedica-se mais à parte da organização, administração e da comercialização, tendo participado da fundação da cooperativa e do comitê, da reorganização da associação na década de 1980 e exercido cargos de presidente e de vice-presidente nessas instituições. Anteriormente, também, atuou na organização da associação dos professores e depois do sindicato e, no dia-a-dia, atuava na Igreja salientando que aprendeu como lidar com as pessoas e a lutar por alguma coisa. Destacou, ainda, que exerceu a função de secretária municipal de educação, tendo atuado na construção de conselhos de classe dos pais e mestres nas escolas, quando pôde conhecer de perto a condição social e econômica desses chefes de família sem emprego e visualizou uma das soluções possíveis na organização do ensino do bordado e das bordadeiras na associação. É graduada em Letras, exerceu o magistério, e, hoje, é aposentada. Casada, mãe de um filho que também integra a Associação.

Bordadeira Mahe, 56 anos, reside em Caicó, nasceu em Acari (RN), começou a bordar à mão quando estava na faixa de 12 a 13 anos, na escola em sua cidade natal. A professora ensinava bordado, um dia na semana e, depois, Mahe aprendeu a fazer crochê e o ponto-cruz por si mesma. Conforme relatou, desde então vem se dedicando ao bordado à mão e há uns seis anos sentiu necessidade de aprender o bordado à máquina e, já, como membro da ABS, foi aluna de um curso em que adquiriu domínio desse tipo de bordado. Em sua opinião, a máquina facilita o bordar, pois o que se faz à mão em dois dias, na máquina se faz em um dia. Assim, ela atualmente utiliza mais a máquina do que a mão para bordar e acha

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Foram preservadas as identidades das bordadeiras entrevistas pela utilização de nomes fictícios.

36 Neste capítulo quando nos referimos à associação, à cooperativa e ao comitê estamos falando

mais bonito o produto obtido com auxílio da máquina. Além de membro da ABS e da cooperativa, Mahe já exerceu cargo de presidente da associação e já atuou como instrutora em curso de ponto cruz feito à mão e de curso de crochê. Cursou o segundo grau completo e declarou estar satisfeita como bordadeira que inova o bordado mesmo e como dona de casa que já tem várias coisas para fazer.

Bordadeira Daro, 73 anos, reside em Caicó, tendo nascido em Cruzeta, no

Seridó Riograndense. Conforme relatou, iniciou-se no bordado à mão quando tinha 12 anos de idade, em aulas na escola primária, pois, naquela época, há 60 anos as prendas domésticas eram aprendidas na escola: as mulheres aprendiam a bordar e os meninos aprendiam as artes de carpintaria. Continuou estudando e se formou professora, profissão que exerceu por 26 anos, e, durante todos esses anos, deixou de lado o bordado. Após a aposentadoria, com 58 anos, reiniciou o trabalho de bordado, o que considera “uma terapia”. Nesse período, ela descobriu o bordado com linha grossa (bordado ponto a ponto). Embora já soubesse bordar com linha fina, seu bordado passou a ser com linha grossa. Para seus trabalhos, escolhe o melhor desenho, que gostaria de bordar, em fascículos [revistas que vinham de Santa Catarina] e a esse desenho dá tonalidades. Como Daro enfatiza, no seu bordado, ela só utiliza tecido, agulha, tesoura e linha; mas, no acabamento, ela usa máquina e, para isso, comprou uma máquina nova para imprimir mais perfeição ao acabamento e aprendeu a usar com sua irmã. Ela ressalta que “a máquina antiga eu aprendi na infância [...] A minha mãe tinha a maquininha dela, uma máquina antiga e a gente aprendeu a trabalhar nessa máquina manual”. Ela reafirma que não borda à máquina, apenas atende pequenas encomendas de bordado à máquina [porque essa é a característica da cooperativa], mas realmente borda à mão. Além de membro da ABS e da cooperativa, Daro já exerceu cargo de tesoureira da cooperativa e já atuou como instrutora em curso de bordado à mão. Primeiro, cursou as oito séries que correspondiam ao antigo primário e ginásio e voltou para lecionar na zona rural (“sítio”) como uma “professora polivalente”, o que fez durante quatorze anos. Segundo Daro, “quando eu terminei meu quinto ano [...] eu voltei para casa dos meus pais, mas eu não abandonei os estudos não. Como era difícil, eu comprei um radinho, eu estudava no rádio; a distância; é tanto que eu não sabia matemática”. Ela relata que dominava o conhecimento comum e já lecionava. Precisou ir para a cidade cursar o ensino regular de quinta a oitava série, para então realizar o segundo grau em Natal. Após esse período, Daro concluiu a graduação

em Pedagogia e lecionou em escola pública até se aposentar em 1988. Viúva tem um filho adotivo.

Bordadeira Maíra, com 59 anos, reside em Caicó, nasceu em Brejo do Cruz

no estado da Paraíba, mudou-se para Timbaúba dos Batistas no RN, de onde era seu pai, quando tinha 6 anos, vindo, depois para Caicó na década de 1971 aos 31 anos. Veio para estudar e só ficou, como relata, porque já bordava e então só com a máquina conseguiu sobreviver e foi trazendo a sua família. Em sua entrevista, Maíra

(59) expõe a trajetória de uma mulher egressa da zona rural, primeira filha de 16

irmãos, que trabalhava na lida da roça e só começou a estudar aos 11 anos. Conta que, primeiro, aprendeu o bordado à mão com uma vizinha que tinha aprendido com a mãe dela que, por sua vez, aprendera com as primeiras bordadeiras da região de Timbaúba dos Batistas. Depois, ela aprendeu o bordado à máquina olhando; nas horas vagas, ficava na janela de uma bordadeira observando-a bordar à máquina. Foi aí que decidiu bordar à máquina porque queria sair daquela vida na roça. Aprendeu numa semana com uma prima, mas não tinha máquina e, a partir daí, foi para uma cidade perto; agregou-se a uma senhora que bordava, passou a estudar e ainda foi professora durante três anos. Ao ser conhecido o seu trabalho em Caicó, ela recebeu encomenda e, após ser bem-sucedida, mudou-se para esse município onde continuou a bordar e passou a estudar. Pôde, assim, garantir o sustento e cooperar, financeiramente, com sua família, que trouxe do sítio, podendo, assim, ensinar bordado às suas irmãs e à sua mãe. Segundo Maíra, ela continua a bordar, acha que não vai deixar isso porque precisa, porque gosta disso e foi o bordado que abriu o caminho da sua vida. Quando se aposentou na UFRN, há cerca de cinco anos, abriu uma loja de bordados com sua irmã. Ela considera esse um meio de sobrevivência de muitas famílias, muitas pessoas, muitas bordadeiras, hoje um número de 9 a 10 bordadeiras trabalham para a loja. Já foi presidente da ABS nos anos de 1990, mas, atualmente, é mais colaboradora das associações das bordadeiras, atuando desde os projetos até a elaboração de design (desenho e risco). Pelo artigo 99 (exame de Madureza), concluiu o ginásio num ano; depois, fez o vestibular na UFRN, concluiu o curso de pedagogia e, mais tarde, cursou especialização em Geografia e aperfeiçoamento em Recuperação de Documentos. É historiadora e restauradora, ensinou alunos do colégio à Universidade e, ainda hoje, colabora com o Museu do Seridó, instituição ligada à UFRN, onde se aposentou.

Bordadeira Cafran, 72 anos, reside em Caicó, nasceu e cresceu no meio rural onde fez o primeiro grau, ou seja, o curso de professor - o normal regional - equivalente ao ginásio, com duração de, aproximadamente, cinco anos. Já em Caicó, começa lecionando, torna-se diretora de escola, durante quatorze anos; em seguida, cursa a escola normal e, depois, conclui o curso de Pedagogia na UFRN. Por exame de seleção, foi admitida professora da UFRN onde se aposentou. Como

Cafran relata, seus primeiros passos de bordado foram dados quando tinha mais ou

menos doze anos, tendo aprendido muito com uma vizinha, e, depois, com aquelas professoras que eram, de fato, professoras de bordado e costura no colégio normal regional onde se ensinava também Trabalhos Manuais (anos de 1940-50). Ao se aposentar, não se acomodou e começou a trabalhar com artesanato. Foi, então, que, há mais ou menos 12 anos, a convite de Tear, foi fazer um curso profissional. Utiliza máquina doméstica e a industrial para todo acabamento de suas peças porque o trabalho é mais rápido. Como artesã que trabalha com bordado, tem mais ou menos uns doze anos que usa a máquina doméstica, mas a industrial ela utiliza há dois anos. Na atividade de bordado, não faz à máquina, borda à mão, atende, corta, faz o acabamento. Existem mais ou menos vinte bordadeiras que trabalham para lhe entregar as encomendas no máximo em 30 dias. É da ABS e da Cobarts, sendo que faz parte da diretoria de ambas. Viúva tem dois filhos.

Bordadeira Lyna, 21 anos, a mais jovem das artesãs entrevistadas, nasceu e

reside em Caicó. Há, apenas, dois anos aproximadamente começou a se vincular e atuar na Associação, tendo sido indicada por Mahe, sua vizinha. Foi com essa bordadeira muito experiente que Lyna aprendeu a bordar tendo começado num curso em que aprendeu a manejar a máquina e a dar os primeiros pontos. Como se mudou de residência, ela passou a treinar em casa com uma máquina que Mahe lhe emprestou. No decorrer do tempo, foi se aperfeiçoando e aprendendo mais. A partir daí, conseguiu uma máquina e ensinou os primeiros passos do bordado à sua mãe, que era lavadeira, queria mudar de trabalho e havia decidido aprender a bordar. O que gosta de fazer é bordar e fazer o acabamento na máquina comum. Não vê sentido no bordado na máquina industrial, porque faz o seu trabalho com tanto carinho, com tanto amor, prefere o acabamento que é feito de forma mais delicada.

Lyna está no segundo período de Pedagogia na UFRN. Sua família é constituída por

contribuição importante dos rendimentos do trabalho de duas bordadeiras, de Lyna e de sua mãe.

As entrevistas foram realizadas com artesãs do bordado, não tendo sido possível incluir pelo menos um artesão. Por um lado, como salienta a bordadeira

Mahe (56), “não tem geralmente homens que trabalham no bordado como a gente

trabalha, [...] hoje em dia [...] todos [associados] são femininos”. Segundo outra entrevistada, Maira, “a Associação ao realizar cursos de qualificação e requalificação

bem como cadastramento, tenta identificar e cadastrar esses artesãos, mesmo que seja mínima a participação deles”.

Bem, tanto a Cooperativa como a Associação, aliás, são formadas por artesãs principalmente a mulher. Porque o homem ainda existe aquele preconceito de bordar, apesar de que a gente conhece homens que costuram. Entendeu? Mas aqui no Seridó, devido à questão cultural, o homem ainda é aquele machão e ele não se integra assim facilmente nesse processo. Mas nós temos homens que riscam, quer dizer, criam design e transferem esse design para o tecido. Então a faixa etária varia entre 15, a 60, 70 anos de idade e são mulheres que são aposentadas, outras mantêm a família com essa renda que gera desse produto e geralmente são aqui do município de Caicó. (MAÍRA, 59).

Portanto, a cadeia produtiva do bordado artesanal, geralmente, tem a participação de artesãos na etapa de riscar, conhecida como design, que é a inicial se consideramos as seguintes etapas: riscar, bordar, realizar o acabamento, lavar e passar. Uma vez criado o design, é utilizada a máquina de picotar para transferir para um papel especial o desenho inteiro, que colocado sobre o tecido a ser bordado, receberá uma camada de tintura de anil dissolvida em álcool, bastante tóxica. “O homem entra nesse processo, [...] porque [são] as atividades que ele já desenvolve na bonelaria então ele não vai ter preconceito, não vai ter vergonha de fazer no bordado também, porque só muda o tamanho da peça e o motivo floral também” (MAÍRA, 59).

Considerando a escolaridade, quatro entrevistadas têm ensino superior, uma está cursando universidade e uma concluiu o ensino médio. Três entrevistadas -

Figura 3: O anil sendo misturado ao querosene

Daro, Maíra e Cafran - descrevem trajetórias de escolarização e de magistério em

zonas rurais marcadas por descontinuidades pela falta de escolas, o que dificulta e exige deslocamento para área urbana, culminando, com muito esforço, em uma formação universitária tardia.

O trabalho do bordado acompanha as atividades de estudo e a atividade profissional. Ser bordadeira e exercer o magistério corresponde à realidade de três entrevistadas; o bordado torna-se ocupação após a aposentadoria de uma entrevistada (por exemplo, Cafran, 72); e bordar constitui a principal fonte de renda no caso de Lyna enquanto estuda e de Mahe que se define como dona de casa.

As entrevistadas descrevem relações entre aprendizagens na escola com o trabalho de bordadeira, iniciativas de autoaprendizagem para tipos de bordado e para uso de máquinas, a participação em cursos ou oficinas na Associação, o ensino a outras pessoas e o envolvimento na gestão da Associação e da Cooperativa. O desafio, nessa pesquisa, é interconectar os sentidos em rede a partir desses relatos das artesãs que, no dizer de Certeau (1994, p.207), “contam aquilo que, apesar de tudo, se pode fabricar e fazer”.

Em síntese, neste capítulo criamos as bases para o desenvolvimento e a compreensão de que nos processos de organização e gestão de trabalho pelas próprias bordadeiras, no espaço da ABS, os saberes e os processos pedagógicos (como práxis educativa), embora confrontados com elementos materiais e simbólicos da cultura do capital, constituem-se em elementos de uma nova cultura do trabalho. Buscamos desenvolver um estudo de caso único, em perspectiva crítico-dialética que destaca a dimensão histórica e as possibilidades de mudança e a práxis transformadora dos homens como agentes históricos.

Consideramos as propostas teórico-metodológicas da sociologia das ausências, sociologia das emergências e tradução, orientadas para pesquisar e criar alternativas emancipatórias, com a qual buscamos pensar sobre a especificidade da ocupação da microrregião do Seridó no estado do RN e a construção histórica da atividade artesanal do bordado e da ABS bem como planejar e executar os procedimentos técnicos da pesquisa. A prática artesanal do bordado que, a partir do final do século XVIII e do início do século XIX, era parte das práticas familiares cotidianas de mulheres portuguesas nas fazendas de criação de gado que se instalaram com a interiorização da colonização portuguesa, na segunda metade do século XX, começou a se tornar fonte de renda e, nos anos mais recentes, assumiu

mais a característica de meio de sobrevivência e de sustentabilidade econômica de milhares de famílias e de pilar da economia local. Economicamente, a pecuária e a produção do algodão, no século XIX, foram os elementos que dinamizaram, impulsionaram e sustentaram o espaço regional rio-grandense até as décadas de 1960/70 do século XX, mas a crise da cotonicultura repercutiu nas cidades seridoenses onde as migrações do campo ampliaram as periferias e acarretaram novas e maiores demandas de atendimento às necessidades básicas da população e de ampliação da infraestrutura urbana. Por outro lado, a falta de oferta de trabalho assalariado e o crescente desemprego alimentaram a expansão do trabalho informal e a população criou suas estratégias de sobrevivência, de trabalho e renda com novas atividades no mercado informal através de associações e cooperativas como ABS, Cracas, Cobarts, com apoio do Sebrae e do Banco do Brasil.

Foram entrevistadas seis artesãs do bordado, todas com vasta experiência como bordadeiras, inclusive com experiência de dirigentes da Associação e da Cooperativa, todas com escolaridade até o ensino médio sendo quatro com ensino superior e uma cursando universidade, assinalando-se formação universitária tardia, em trajetórias de escolarização e de magistério em zonas rurais marcadas por muitas dificuldades de deslocamento para área urbana. Bordar, estudar e trabalhar em outra atividade profissional constituem uma tríade que se repete na vida das bordadeiras entrevistadas.