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A querela do Cavalcante

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séculos XVII e XVIII In: Revista Eutomia Ano III Volume 2 Dezembro/2010 p

3.3 A querela do Cavalcante

Em 1781, Francisco Xavier desafiou de uma só vez o vereador mais velho da Câmara do Recife, o Governador José César de Meneses e a Irmandade do Livramento. O motivo da briga: o fechamento de uma rua, aberta pela Câmara em 1777, que passava por trás da Igreja do Livramento, e servia para o transito dos pardos na realização de suas procissões e festas.310

A própria Irmandade já havia pretendido tapar a rua para que em outro momento mais conveniente viesse alargar sua sacristia, e a Câmara lhe embaraçou com o fundamento de ser uma rua pública. Em 1781, Francisco Xavier Cavalcante de Albuquerque comprou algumas casas por trás da Igreja. Através de uma manipulação que teve a participação do juiz de fora e presidente da Câmara, João da Silveira Pinto Nogueira, amigo do Mestre de Campo, este conseguiu aforar a rua. Mesmo sob protestos do vereador mais velho, o advogado Manoel Teixeira de Moraes, que chegou a ser ameaçado por Silveira Pinto com a enxovia.311 Desta forma, se conservou ilesa os desmandos do juiz de fora e do Cavalcante por quase dois anos: a rua fechada servindo como um quintal para as casas de Francisco Xavier, burlando, portanto, as leis da própria Coroa que proibia o aforamento de uma via pública.312 Em 1783, o governador José César de Meneses, após receber as denúncias do advogado Manoel Teixeira e da irmandade dos pardos, passou a interferir na disputa. Num trecho da correspondência

309 Não sabemos a data exata de sua morte, mas no livro de receitas e despesas da irmandade foi registrado o

pagamento das 30 missas que tinha direito o juiz, por pertencer às outras 30 a sua mulher.

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311 AHU_ACL_CU_015,Cx. 147,D. 10723 312 AHU_ACL_CU_015,Cx. 147,D. 10723

enviada pelo governador ao Conselho Ultramarino fica explícito o choque entre o representante da Coroa e os amigos Silveira e Cavalcante:

“Consta-me agora que o dito Cavalcante, unido com o referido João da Silveira, hoje seu procurador e que há pouco partiu para essa corte, intenta queixar-se de mim a respeito do caso de que acima faço menção. E como conheço a orgulhosa conduta destes dois sujeitos me

antecipo a fazê-lo [...]”313

Já o Mestre de Campo justificava que havia aforado a rua por esta servir como passagem para ladrões e, com isso, ele não estava prejudicando a serventia da rua, mas ajudando na conservação da tranquilidade do povo.314Venceu o governador. O Conselho Ultramarino acatou a solicitação de José Cesar de Meneses e autorizou a derrubada do muro. Em 1783, o mesmo juiz de fora que antes se associou ao Mestre de Campo foi obrigado a ordenar a derrubada do muro, acabou por despertar a ira de Francisco Xavier Cavalcante.315 De amigo passou a inimigo, Francisco passou então a se queixar do dito juiz com o fundamento que lhe era de direito por ter sido o aluguel da rua autorizado pela Câmara do Recife. Isso não convenceu o Conselho Ultramarino.

Em 20 de fevereiro de 1791, havia sido empossada a mesa diretora da Irmandade do Santíssimo Sacramento.316 Em 13 de março do mesmo ano, período que antecedeu a semana santa, os irmãos se reuniram no primeiro ato da mesa. A pauta era sobre a realização da festa da Paixão. Na ocasião os irmãos chegaram ao consenso que a Irmandade não possuía recursos suficientes para organizar aquela semana santa. Estando presentes o juiz Francisco Xavier Cavalcante de Albuquerque e demais integrantes da mesa, o mesmo revelou que “animado de devoção” iria contribuir com dois terços do custo total da festa e os demais irmãos, voluntariamente, com o restante.317

A festa ocorreu em abril como mandava o costume da irmandade: missas cantadas, sermões, música e procissão. Na terça-feira da semana santa, os irmãos saíram pela freguesia de Santo Antônio e foram assistir aos doentes em presença do Santíssimo Sacramento. No

313 AHU_ACL_CU_015,Cx. 147,D. 10723 314 AHU_ACL_CU_015,Cx.147, D.10718 315

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316 Os documentos não revelam como ocorreu o processo de eleição da nova Irmandade do Santíssimo

Sacramento na Vila de Santo Antônio. Não sabemos se a mesa já havia sido eleita na Irmandade congênere em São Frei Pedro Gonçalves. As atas de reuniões já iniciam com a mesa empossada e a organização da primeira Semana Santa da Matriz.

caminho um irmão pedia esmolas aos espectadores e fieis que seguiam o cortejo. Estas esmolas eram entregues aos doentes, uma tradição entre as irmandades, e que começava a ser seguida naquela confraria.318 O evento era complementado pela Procissão da Páscoa da Ressurreição e Missa da Hora da Ascensão.319 Podemos imaginar que para o juiz, o evento possuiu significados que foram além da devoção. Patrocinar um evento dessa proporção demonstrava o poder econômico do indivíduo, fator que reafirmava sua posição de homem de negócio e senhor de engenho. Sem contar que os integrantes do Santíssimo Sacramento formavam um seleto grupo, muitos destes advindos das melhores famílias da vila, estando à frente um Cavalcante de Albuquerque.

Francisco Xavier passou quatro mandatos na função de juiz e cada período custava 100$00 (cem mil réis). Nesse período que esteve á frente da irmandade, ele emprestou dinheiro para compra de damascos que serviam para os cortinados da Igreja. O valor chegou a 347$110 (trezentos e quarenta e sete mil cento e dez réis). Supriu a irmandade com 98$000 (noventa e oito mil réis) para as obras do corredor da Igreja e do consistório, local das reuniões, e mais 5$000 (cinco mil réis) em documentos que vieram de Portugal para funcionamento da Irmandade.320

Em 11 de julho de 1795, uma reunião presidida pelo escrivão José Afonso da Silva, pretendia acertar as contas entre a irmandade e o juiz. O termo registrado no livro de atas revela a querela que se formou entre as partes. O conflito foi motivado por questões econômicas e pelo choque de interesses entre alguns irmãos do Santíssimo e o dito juiz. O termo da ata diz que da conta realizada deveria ser deduzido os anos de juizado de Francisco Xavier e a esmola de entrada de seu filho, o tenente José Francisco de Paula. O tesoureiro José de Araújo Lima repassou o saldo à mesa, e esta após comunicar ao juiz o valor do qual tinha direito, mas o mestre de campo não quis aceitar com o fundamento de que se lhe havia de pagar por inteiro todo o dinheiro que ele tinha emprestado à Irmandade. Por tantas ofertas dadas aos seus juizados e entrada de seu filho, Francisco justificava que tudo ficava incluso no custeio das despesas que tinha feito às festividades.

Os irmãos, ou pelo menos aqueles que tinham interesse em romper com o poder do juiz, logo se manifestaram contra esta postura. Argumentavam que o referido ato do juiz era

318

Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento. “Das festividades”, 1794.

319 Idem

contrário à razão e à justiça.321 Além disso, as semanas santas, festas do Corpo de Deus e as do orago tinham sido sempre realizadas com esmolas dos irmãos e do povo, pois a irmandade não poderia realizar festividades enquanto não houvesse adquirido os ornatos necessários para a exposição do Viático a qual era sua principal obrigação no socorro aos desvalidos como impusera a bula papal de 30 de novembro de 1539.322 Dizia o irmão José Afonso que “enquanto não tiver palio decente, umbela, lanternas, alampada, ornamentos, e mais alfaias necessárias para o asseio e decência do culto divino, por estar falta de tudo” e por fim, “enquanto não tiver bens e rendimentos que excedam a despesa necessária da igreja e do culto do Santíssimo Viático, na quantia que chegue para essas festas sem empenho da

Irmandade”. 323

O tom do documento é bem taxativo em relação à postura do juiz ao afirmar que os irmãos não pensavam que Francisco Xavier iria consumir as esmolas de seus juizados e da entrada de seu filho em festas, sabendo ele que a irmandade estava precisada de tantas coisas e “sendo certo que a irmandade sempre recebeu os dinheiros, que ele deu para elas [festas, grifo meu] por esmola gratuita como efeito da sua grande devoção”. 324 Depois disso, a participação do juiz no Santíssimo Sacramento ficou comprometida e a situação só foi solucionada depois de muita insistência da Irmandade em pagar apenas aquilo que devia sempre através de protestos de Francisco Xavier. Seu cargo entrou em vacância, e o próprio José Afonso assumiu o posto de juiz, deixando no cargo de escrivão Doutor João Lopes Cardoso Machado. A irmandade não compreendeu o fato por completo, tanto é que o quadro de juízes existente ainda hoje no consistório traz Francisco Xavier como juiz no ano de 1795- 1796. O fato agora revelado mostra toda manobra dos irmãos para combater os desmandos do Cavalcante de Albuquerque que, depois disso, não foi mais visto nas atas de reuniões, tão pouco assumindo cargos, mesmo em casos extraordinários, como mandava o compromisso da instituição.

As conquistas do Cavalcante de Albuquerque foram acompanhadas sempre por polêmicas e querelas. Na irmandade foi visto como “revoltoso e sedioso”, depois das intrigas com os membros da mesa não assumiu cargos. Na vida, sua última tentativa de se tornar um

321 Idem, ibidem. 322 Idem. 323 Idem. 324 Idem.

nobre da casa real foi o pedido do foro de fidalgo cavaleiro em 1801.325Não deu tempo, a morte chegou. Restaram-lhe apenas trinta missas celebradas pela irmandade do Santíssimo Sacramento... e esta história!

325 Nesse mesmo ano seus filhos se envolveram no movimento político que pretendia criar um república em

Pernambuco. O movimento entrou para a história como “Conjuração dos Suassunas”, inspirada nas ideias revolucionárias francesas, pretendia entregar Pernambuco a Napoleão Bonaparte. A riqueza acumulada por Francisco Xavier Cavalcante de Albuquerque livrou os filhos da forca e todas as provas que se tinham contra eles foram misteriosamente destruídas. Ver Série Documentos Históricos. Biblioteca Nacional: Devassa de 1801.

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