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A questão da circulação: Organização e representação dos transportes brasileiros na primeira metade do Século XX.

Na escala nacional houve um grande avanço no desenvolvimento de um sistema viário após a segunda guerra mundial e, sobretudo, durante o Governo Vargas. Antes deste período, por mais que houvessem iniciativas e planos em produção, eram várias as reclamações e problemas de conexões entre cidades. “O sistema rodoviário ainda engatinhava. Por sua vez o sistema ferroviário, completamente insatisfatório, era objeto de lástima constante [...]” (LIMA NETO, 2001, p. 251). Foi apenas em meados da década de 1950 que houve uma intensificação do desenvolvimento das linhas e conexões viárias no Brasil. Este fato se dá pela implantação da indústria automobilística e pela criação de Brasília que fez parte de um processo de integração nacional. (LIMA NETO, 2001, p. 259). Dessa forma, é possível classificar este processo em ao menos duas fases, primeira e segunda metade do século XX. É preciso considerar ainda que as experiências regionais e municipais possuem particularidades e por mais que o contexto de políticas nacionais tenha de fato intensificado o processo a partir de 1950, e sobretudo de 1960, é preciso analisar a transformação dos espaços e de suas redes de transporte no espaço intra-urbano e, principalmente, é preciso analisar como se deram as articulações entre agentes urbanos no contexto da própria cidade e no contexto de implementação de políticas externas a este contexto espacial.

A organização do transporte público na escala nacional passou por diferentes modais e formas de organização política e espacial. Tais organizações e modais foram influenciados por agentes urbanos interessados na valorização ou manutenção de suas propriedades. Em certos momentos e contextos, este processo foi influenciado por políticas de organização e integração nacional. Em outros momentos, sofreu pressão e influência da população usuária do transporte evidenciada pela mídia jornalística ou representada pelos vereadores nas

38 câmaras municipais. Neste último caso, diversas foram as representações a respeito destes meios de transporte, algumas mais líricas e poéticas em crônicas, poesias, contos, etc, outras mais objetivas e literais como em crônicas de jornais, reclamações de usuários e opiniões jornalísticas sobre o passado ou futuro do transporte nas cidades. Em maior ou menor nível, estas formas de representação também são importantes para entender a forma que os grupos sociais envolvidos direta ou indiretamente na organização dos transportes na cidade viam os mesmos e atuavam pela sua transformação. Compreender esta relação na escala nacional e no contexto de diferentes cidades brasileiras auxilia a analisar a organização dos transportes pelos agentes urbanos da cidade de Natal.

Além de compreender as mudanças administrativas na forma de pensar a cidade, é preciso também se atentar aos processos que conectam regiões, pois como explicita Flávio Villaça “As vias regionais de transportes constituem o mais poderoso elemento na atração da expansão urbana” (VILLAÇA, P. 85). O espaço intra-urbano é transformado por dinâmicas internas e externas e por mais que aqui o foco esteja nas dinâmicas internas da cidade, considera-se a importância de pensar também o externo. Diante desse contexto, sabe-se que para entender as representações que determinados grupos sociais fizeram sobre o transporte e como articulavam-nas para intervir na cidade, é preciso também atentar-se, quando possível, para as relações espaciais que estes grupos tinham no espaço intra-urbano e para além dele.

Antes de avançar sobre as representações locais e articulações discursivas, é preciso entender que desde 1910 já se falava sobre o avanço dos transportes como organização estatal, como iniciativa privada e como representação de uma nova fase para o território. Durante a Primeira República, o Governo Federal passou a investir na construção de rodovias para conectar o país.

O Decreto nº 8.324, daquela data (25 de outubro de 1910), previa subvenções a serem pagas pelo governo por quilômetro de rodovia construída dentro das especificações de projeto e execução dele constantes que pretendiam introduzir no País padrões mínimos de tecnologia rodoviária. O Decreto também autorizava a criação de serviços subvencionados de transporte

39 rodoviário de passageiros e cargas por automóveis. (LIMA NETO, 2001, P. 176)

Os participantes do I Congresso Paulista de Estradas de Rodagem, ocorrido em 1917, expunham sobre a necessidade de modernizar as estradas de automóveis, visando disseminar as práticas pelo país e ao mesmo tempo, faziam críticas aos descasos governamentais para a estrutura férrea já nesse período. Durante o mesmo período, ou mais especificamente, alguns anos antes já na primeira década e também no contexto de São Paulo, surge o Automóvel Club Paulista e, em seguida, o Automóvel Club do Brasil. Entidades inicialmente esportivas, mas que passaram rapidamente a desempenhar um papel na articulação para o desenvolvimento rodoviário e automobilístico nacional. (LIMA NETO, 2011, P. 177)

Havia, do ponto de vista rodoviário uma ação desde o início do século para se investir nas rodovias e no transporte nacional em si. Destaca-se ainda que estes investimentos em novas tecnologias e na modernização das estradas não eram iniciativas individuais de determinado grupo social. Percebe-se que tais investimentos eram, desde suas primeiras iniciativas na República uma agência governamental motivada e, por vezes, gerenciada a partir de ações de grupos sociais específicos de fora do Estado. Quando o Automóvel Club se mobilizava para pautar politicamente esta iniciativa, temos uma entidade esportiva privada se colocando como grupo interessado em uma sistematização da rede técnica de transportes e do setor automobilístico com objetivo de modernizar as redes de deslocamento, de modernizar o país, o que para a entidade significava maiores espaços de atuação para a razão de sua existência, o automóvel. Ao analisar a atuação de uma organização, é sempre importante avaliar a razão de sua existência enquanto grupo, entidade ou instituição, pois há de se considerar seus interesses como tal.

O Estado, por sua vez, atuava inicialmente vinculando-se ao setor privado ao contratar empresas interessadas em desenvolver as rodovias, mas sem legalmente perder o controle das mesmas e nem mesmo das tecnologias e ideais envolvidos. A relação entre o Estado e o Automóvel Club é um exemplo deste processo.

Cabe ressaltar que foi de um evento promovido pela entidade que surgiu a ideia da criação do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, bem

40 como a de um fundo nacional para a construção de estradas, que seria posteriormente institucionalizado no Governo de Washington Luís. (LIMA NETO, 2001, P. 178)

O setor público, portanto, sempre teve certa autoridade e controle, ao menos legal, sobre os processos desenvolvidos. Vinculando-se isto aos ideais de modernização e conexão das cidades e dentro delas, considera-se que houve sempre uma relação entre Estado e entidades privadas motivadas por diferentes interesses e representações de futuro das mesmas.

Sabe-se que o pensamento urbanístico e ideias sobre políticas urbanas adotadas circularam pelo país. Como expõe Maria Cristina Leme (1999), a primeira fase de profissionais atuando na modificação das cidades até a década de 1930 vieram de escolas de engenharia e projetavam a partir das cidades já existentes. Com formação nos cursos de engenharia em estados do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, entre outros, os profissionais formados neste período atuaram em áreas como saneamento, sistema ferroviário e sistema viário, em resumo, em obras de melhoramento urbano. Neste contexto, de acordo com a autora,

A circulação era outra questão extremamente importante, mobilizando todas as cidades tratavam-se de transformar as estruturas urbanas herdadas de uma economia colonial em que a circulação se fazia mais como passagem entre as cidades e os centros produtores. Alargavam-se as ruas adequando-as aos novos meios de transporte, principalmente, o bonde (LEME, 1999, p. 22). O sistema viário se desenvolveu ao mesmo tempo que se concebia uma nova forma de pensar o território e as cidades brasileiras. Leme evidencia que estas transformações não aconteceram ao acaso nos espaços intra-urbanos. Elas aconteceram remodelando ou expandindo áreas centrais além de projetarem novos modelos de cidade. Alargar, pavimentar e expandir vias se apresentava tanto como uma forma de adequar a cidade para os novos modais de deslocamento, como também produzia assim uma cidade com novas distâncias e configurações. Citando como exemplo Niterói (RJ), a autora afirma

[...] A questão da circulação já está presente na definição de posturas para o alinhamento de edifícios, na abertura, alargamento e prolongamento de vias. Mas não é apenas a fluidez do tráfego que servem estas normas. Está sendo

41 elaborado um novo modelo de cidade com ruas largas, casas alinhadas, praças e parques com desenhos definidos de canteiro. Não é mais o acaso, mas o projeto do engenheiro que define as áreas centrais das cidades. (LEME, 1999, pág. 24-25)

Em Recife o processo seria similar, por mais que talvez surgido a partir de um estopim diferente. Segundo a autora, as ideias de reforma passaram a ganhar força com os ideais de modernização nacional. Soma-se a estes ideais as reformas do porto da cidade que propiciaram o contexto político para outras reformas urbanas e transformações sociais (LEME, 1999). Em meados do século, dentre os planos, LEME destaca o de Fernando de Almeida no qual

[...] propôs uma remodelação radical da área central com o estabelecimento de um traçado, que parece não ser fruto de um estudo profundo da realidade. Esse traçado procurou propiciar uma circulação fácil e rápida dentro da cidade, ligando pontos distantes através de avenidas-bosques [...] Estes bulevares procurava “arejar” os densos interiores dos bairros centrais, criando uma imagem de modernidade (luz, espaço e arborização e revalorizar monumentos com enquadramentos e perspectivas à maneira e Haussmann (LEME, 1999, p. 293)

Independente da aplicação ou não desta proposta, a sua existência por si é evidência para a circulação das ideias de modernização das cidades brasileiras a partir de padrões externos oriundos de uma perspectiva modernizante do século XIX.

Neste contexto, Recife, assim como outras cidades, segue o processo nacional, desenvolvendo linhas de bonde até meados do século XX, mas que passam a ser substituídos por diversos trabalhadores autônomos, “[...] em 1953, já eram 128 proprietários, operando, 501 veículos, dos quais a metade possuía apenas um” (LIMA NETO apud Brasileiro e Santos, 2001, p. 291). Enquanto planos eram desenvolvidos pensando uma nova cidade, ou ao menos uma renovação de um bairro central, as redes da cidade eram apropriadas por uma série de pequenos proprietários disputando rotas e conexões na cidade.

Os processos de implantação das redes de transporte e transformação das cidades ocorreram de diferentes formas durante o século XX. Enquanto as propostas de intervenção

42 circularam no território nacional seguindo variantes da mesma linha ideológica modernizante, a organização das redes de transporte, por sua vez, por mais que fossem influenciados por um contexto nacional, variaram a depender das demandas e processos locais. Enquanto Recife desenvolveu um sistema de transporte privado com diversos motoristas em concorrência, São Paulo teve um processo de monopolização no mesmo período (LIMA NETO, 2001). O que unia estas e outras experiências era o ideal de modernização e a questão da circulação como uma das pautas centrais neste debate.