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CAPITULO 4 – CHANCELA JURÍDICA DA FAMÍLIA SIMULTÂNEA E POTENCIAL ATRIBUIÇÃO DE EFEITOS JURÍDICOS

4.2 Exemplos de potencial atribuição de efeitos jurídicos a situações de simultaneidade familiar

4.2.2 A questão da impenhorabilidade do bem de família sob a perspectiva da família simultânea

Um exemplo em que pode ser possível reconhecer eficácia jurídica da simultaneidade familiar reside na questão atinente à impenhorabilidade do imóvel residencial da família.

Para cogitar a eficácia da simultaneidade a respeito da impenhorabilidade do bem de família, basta, em princípio, que as famílias simultâneas se apresentem como situação de fato passível de chancela jurídica, sem a necessidade de subsunção do arranjo familiar a um dado modelo legal.

Afigura-se pertinente, neste ponto, delimitar o objeto em relação ao qual será analisada a eficácia jurídica da simultaneidade familiar.

Trata-se, aqui, do denominado bem legal de família, e não do bem de família voluntário. Embora ambas as figuras jurídicas tenham o escopo de proteção das necessidades existenciais daqueles que coexistem em um dado núcleo familiar, há distinções entre elas que tornam necessário especificar sobre qual situação se está a versar (RUZYK, 2005, p. 209).

Ao lado da possibilidade de instituição voluntária do bem de família prevista no Código Civil de 1916, veio a lume a Lei nº. 8.009/90, por meio da qual se disciplinou a figura do que pode ser denominado bem legal de família.

Trata-se de previsão normativa que, independente de instituição voluntária, declara impenhorável o imóvel utilizado como residência da entidade familiar. Vejamos a redação do artigo 1º da Lei nº. 8.009/90:

Art. 1º - O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de qualquer outra natureza contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.

O Código Civil de 2002 também versa sobre o bem de família, referindo-se, todavia, a hipótese de constituição voluntária, tanto que tange os bens imóveis, como no que respeita aos bens móveis, não tendo revogado o disposto na lei nº. 8.009/90, acerca da impenhorabilidade legal do bem de família. Como se trata de hipótese em que há instituição do bem de família convencional, não será aqui objeto de análise.

Constatada a manutenção da vigência da lei nº. 8.009/90, cabe analisar o requisito essencial à caracterização do bem legal de família, definido no seu artigo 1º, supra transcrito, qual seja, o de que o imóvel sirva de residência à entidade familiar.

Ocorre que, contemporaneamente, a proteção constitucionalmente dispensada à família não mais se destina ao ente transpessoal, mas, sim, às pessoas concretas em relação de coexistência familiar. Leitura que se mostra razoável, nesse passo, seria a de que a proteção oferecida pela lei se destinaria às pessoas que compõem a família, e não à instituição propriamente dita (RUZYK, 2005, p. 213).

Pode-se, entretanto, ir mais além: é viável realizar hermenêutica que estenda a proteção da impenhorabilidade do imóvel residencial mesmo para aquelas pessoas que não integram qualquer entidade familiar, como sustenta Anderson Schreiber (apud RUZYK, 2005, p. 213), fundando a vedação da constrição judicial no direito à moradia, constitucionalmente assegurado.

Luiz Edoson Fachin (apud RUZYK, 2005, p. 213-214), a seu turno, situa a impenhorabilidade do bem de família como sintoma de uma proteção ainda mais ampla, que diz respeito à tutela de um patrimônio mínimo personalíssimo, necessário à manutenção de uma existência digna.

O direito à moradia visa alcançar também a dignidade da pessoa humana. É lição de Iara Rodrigues de Toledo (2013, p. 146):

Em suma, porque de magnitude constitucional ambas as figuras jurídicas – o direito à moradia e a família constitucionalizada – se entrelaçam e emergem do valor maior constitucional que é a dignidade da pessoa humana.

A jurisprudência vem, em parte, e gradativamente, acatando essa ordem de ideias. No âmbito do discurso, porém, há certos julgados que, embora adotando essa hermenêutica, não a utilizam de modo explícito, buscando adequar a proteção dispensada em concreto a um sentido de literalidade da regra, que vincula a proteção legal à existência de uma entidade familiar.

Assim procedem por meio de um esclarecimento da noção de família, para admitir a denominada família “unipessoal”, sobretudo no que tange a situação das pessoas separadas ou divorciadas.

Falar em família formada por apenas uma pessoa é, como se infere, um modo de proteger, por meio do instrumento normativo da lei nº. 8.009/90, o devedor viúvo, separado ou divorciado podendo ser estender, ainda, ao devedor solteiro.

Isso significa que essa proteção construída pela jurisprudência, muitas vezes, ao invés de se fundamentar, explicitamente, na garantia da dignidade da pessoa humana, por meio da tutela de um patrimônio mínimo personalíssimo, acaba por ser levada a efeito, não raro, por meio da atribuição da denominação “família” a situações que, o plano sociológico, dificilmente se enquadrariam nessa noção.

Parece, de fato, não haver justificativa legítima para negar às pessoas que vivem sozinhas a proteção que é destinada às pessoas que vivem sozinhas a proteção que é destinada às pessoas que efetivamente integram uma família.

O que não significa, entretanto, que a pessoa solteira pode ser considerada como componente uma “família unipessoal”, uma vez que família implica afeto e coexistência, que, salvo melhor juízo, só se afigura em relação a um “outro”. (RUZYK, 2005, p. 215).

Nesse sentido, revela-se pertinente estender a proteção destinada ao imóvel residencial da entidade familiar a qualquer pessoa, mesmo que solteira, sem que se faça necessário, porém, por meio de uma ficção, reputá-la como família “unipessoal”.

Esse problema, entretanto, não se apresenta – ao menos não em termos idênticos – no que tange a possível aplicação das regras atinentes à impenhorabilidade do bem de família à situação de simultaneidade familiar.

Afinal, está-se a tratar, precisamente, de entidades familiares, sem que para isso seja necessária uma extensão indevida dessa designação.

Isso não significa que se possa prescindir, mesmo nesse caso, de um olhar que conceba a família como relação de coexistência, é não como ente transpessoal. Também é relevante realizar a leitura das regras pertinentes sob uma perspectiva aberta, à luz dos princípios constitucionais, sobretudo a tutela da dignidade (RUZYK, 2005, p. 216).

Assim, aquele que está separado, de fato ou judicialmente, e reside sozinho, pode, em tese, ser beneficiado pela impenhorabilidade do imóvel residencial de sua propriedade sob o fundamento de que está a integrar uma entidade familiar.

Daí ser possível sustentar que, ainda que fosse possível restringir a leitura do artigo 1º da lei nº. 8.009/90 a uma regra de proteção exclusivamente destinada à família – concepção que não se subscreve -, na hipótese formulada seriam impenhoráveis tanto o imóvel em que reside o pai como aquele em que reside a mãe.

A proteção da família se dá na pessoa de cada um de seus membros tomados em relação de coexistencialidade com os demais.

A impenhorabilidade do bem de família não visa a proteger o devedor, mas sim – e ao menos -, a dignidade dos componentes de uma dada entidade familiar.

Por conseguinte, é possível sustentar que, ainda que o próprio devedor não resida no imóvel, será o bem impenhorável se servir de moradia à sua família, uma vez que o que se está a contemplar por meio da incidência da regra não é uma proteção da figura do devedor, mas sim, da relação intersubjetiva centrada no amor familiar que se revela essencial para o desenvolvimento de sua personalidade.

É a lição de Carlos Eduardo (2005, p. 218):

Com efeito, caso se entendesse que a impenhorabilidade somente incidiria se o próprio devedor vivesse no imóvel com ânimo de residência, deixando á margem a efetiva existência de uma família entre ele e o genitor residente no bem, estar-se-ia transmudando o sentido da regra de uma forma de proteção da dignidade da pessoa humana para uma tutela destinada à proteção específica do devedor inadimplente: o imóvel só será impenhorável se o inadimplente ali residisse.

Pode-se, indo mais adiante, aferir da situação de simultaneidade familiar a seguinte possibilidade: alguém que integre, ao menos, duas famílias simultâneas, e seja proprietário dos imóveis residenciais de ambas as entidades familiares, poderá, em última instância, ser titular de dois imóveis impenhoráveis (RUZYK, 2005, p. 218).

Realmente, se ambos os imóveis pertencentes a um mesmo titular servem de residência às entidades familiares simultâneas por ele integradas, ambos estarão sujeitos ao regime instituído pela lei nº. 8.009/90.

Observe-se que, embora a lei contenha previsão específica acerca de uma família que possua duas ou mais residências, declarando impenhorável apenas a de menor valor, está-se, na hipótese em foco, diante de duas residências e duas famílias.

O fato de o titular do imóvel integrar ambas as entidades familiares não as descaracteriza, em princípio, como núcleos autônomos de coexistência fundada no afeto, de modo que ambas podem gozar da proteção legal que veda a constrição judicial do imóvel residencial. Trata-se, de fato, do único imóvel que serve como residência para cada um dos núcleos de coexistência.

Evidencia-se, portanto, como cogitável a eficácia jurídica da situação de simultaneidade familiar no que tange o bem legal de família, estendendo a impenhorabilidade

a ele inerente aos imóveis utilizados como residência por todas as entidades familiares simultâneas, ainda que pertencentes os referidos bens a um único titular, componente comum de todas as famílias.

4.2.3 Adoção por casais separados ou divorciados sob a perspectiva da