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2.4 — A QUESTÃO DA “ PROVA DO VALOR ”

capitais são introduzidas, e uma teoria mais realista dos preços é desenvolvida. (…) Entre- tanto, de acordo com a distinção de Marx entre capital em geral e muitos capitais, a análise do Livro I do capital em geral desconsidera tanto os preços das mercadorias individuais quanto as composições dos capitais individuais. Nenhuma suposição é feita sobre a igual- dade das composições individuais dos capitais, porque capitais individuais não entram na análise48 [Moseley 1993c: 182, nota 3].

Alan Freeman caracteriza o sentido do nível mais abstrato para Marx tomando o exemplo da geometria euclidiana, e contrapondo seu método ao das “simplificações”:

A palavra ‘simplificação’ é usada abusivamente na literatura. O método axiomático abstrai fatores particulares que são reintroduzidos num estágio posterior. O poder da geometria eu- clidiana, o mais belo exemplo clássico deste método, reside na formulação de axiomas a respeito de retas e pontos que expressam apenas as relações entre eles. A largura de uma reta euclidiana ou o tamanho de um ponto euclidiano não são zero: são indefinidos. (…) A ‘simplificação’ de que as taxas de lucro são iguais, ou de que a oferta iguala a demanda, é de um tipo diferente. Simplifica restringindo, não removendo restrições [Freeman 1996b: 275, nota 1].

Assim, segundo a concepção das “aproximações sucessivas”, o nível mais abstrato é apenas uma construção mental, não existe na realidade; a aproximação do real cresce à medida que vamos suprimindo hipóteses simplificadoras. De acordo com o método de Marx, ao contrário, o que construímos no nosso conhecimento como nível abstrato são

aspectos da realidade, são conceitos que têm uma correspondência real — é a realidade

tomada de modo mais simplificado, isto é, apenas em suas determinações mais fundamen- tais. O nível mais concreto inclui estes aspectos, não os exclui como no método das “apro- ximações sucessivas”.

2.4A

QUESTÃO DA

PROVA DO VALOR

48

As afirmações de que no Livro I Marx desconsidera os preços das mercadorias individuais e de que os capitais individuais não entram na análise são corretas apenas no sentido de que, dado o foco no “capital em geral”, estes aspectos são secundários. De fato, ao mencionar, no Capítulo III, que os preços podem divergir dos valores (como vimos na subseção 1.3.1), de uma forma aliás incompatível com o “método das aproxima- ções sucessivas”, Marx está falando, naturalmente, do preço de mercadorias individuais. Sob a limitação da interpretação de Moseley desta questão, ver a nota 32 do Capítulo 4, p. 177.

Desde Böhm-Bawerk [1974; publicado originalmente em alemão em 1896], Marx tem sido acusado de tentar provar a existência do valor por uma “dedução lógica-dialética” inconsistente, nas primeiras páginas de O Capital. No entanto, a idéia de que Marx quer “provar” alguma coisa pelo desenvolvimento lógico dos conceitos é absurda; um tal mé- todo seria considerado por ele idealista. Seu método, ao contrário, procura explicar a lógica presente na realidade, e reproduzi-la conceitualmente; seus argumentos lógicos são uma maneira de analisar determinadas formas sociais para extrair suas conseqüências.

Os aspectos centrais da “prova do valor” de Marx são: a) a existência necessária de uma “substância comum” das mercadorias para que possa haver troca; b) o fato de que valor de uso e utilidade são do domínio da diversidade, não existem “em geral”, e que “salta à vista que é precisamente a abstração de seus valores de uso que caracteriza a rela- ção de troca das mercadorias” [O Capital I-I: 46-7; El Capital: I-I: 46]; c) que, por outro lado, podemos encontrar no trabalho abstrato uma realidade que constitui esta substância comum. Voltaremos ao conteúdo destes pontos (a noção de uma substância comum e a afirmação de que o trabalho abstrato tem uma existência real, enquanto a utilidade em ge- ral não) no Capítulo 3. O importante aqui é ressaltar que nenhuma destas afirmações é uma

dedução puramente lógica; em todas o ponto de partida são dados da realidade, da experi-

ência concreta do capitalismo (e não da análise lógica de uma troca qualquer).

O Capital parte do capitalismo, de uma concepção geral de como ele funciona: in-

divíduos produzindo em sociedade, regulando sua atividade pelo mercado; troca de merca- dorias tratadas como equivalentes; proporções de troca regulares, determinadas social- mente, e não subjetivamente. A atitude dos “agentes econômicos”, tal como identificada por Marx a partir de sua percepção do capitalismo, é diferente da suposta pelos neoclássi- cos. Para estes, cada agente avalia simplesmente se prefere uma ou outra “cesta” de bens. Para Marx, cada agente procura avaliar quanto valem seus bens, para saber o que pode conseguir em troca. É fácil ver que a idéia de um valor formado objetivamente a partir de relações sociais é uma decorrência bastante direta deste tipo de percepção.

Isaac Rubin, referindo-se à argumentação sobre a existência de uma substância co- mum, também destaca que o ponto de partida de Marx é a estrutura concreta da economia mercantil:

(…) Marx não examina o caso individual de igualação de uma mercadoria a outra. O ponto de partida do argumento é a afirmação de um fato bem conhecido sobre a economia mer-

cantil, o fato de que todas as mercadorias podem ser igualadas umas às outras, e o fato de que uma determinada mercadoria pode ser igualada a uma infinidade de outras mercado- rias. Em outras palavras, o ponto de partida de todo o raciocínio de Marx é a estrutura con- creta da economia mercantil, e não o método puramente lógico de comparação de duas mercadorias entre si [Rubin 1980, p. 124; Rubin 1974, p. 162].

Moishe Postone contrapõe outro argumento à afirmação de que Marx teria tentado “provar” o valor através de uma dedução lógica: o do caráter reflexivo, circular, da funda- mentação das categorias em O Capital:

A natureza do argumento marxiano, então, não deve ser o de uma dedução lógica: não co- meça com primeiros princípios inquestionáveis dos quais tudo o mais pode ser derivado, pois a forma mesma deste procedimento implica um ponto de vista trans-histórico. Antes, o argumento de Marx tem uma forma muito peculiar, reflexiva: o ponto de partida, a merca- doria — que é posta como o coração estruturante fundamental da formação social — é va- lidado retroativamente pelo desenvolvimento do argumento, por sua capacidade de explicar as tendências do capitalismo, e por sua capacidade de dar conta de fenômenos que aparen- temente contradizem a validade das categorias iniciais. Isto é, a categoria de mercadoria pressupõe a de capital e é validada pelo poder e rigor da análise do capitalismo para a qual serve de ponto de partida [Postone 1993, p. 141].

Marx havia advertido para a possibilidade de seu método ser interpretado equivo- cadamente como uma construção a partir de conceitos apriorísticos. Na passagem do Pos- fácio à segunda edição do Livro I de O Capital citada anteriormente, ele observa que, se a pesquisa conseguir “captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima”, a exposição poderá reproduzir “adequadamente o movimento real” e “refletir idealmente a vida deste objeto”; então é possível que pareça ser “uma construção a priori” [O Capital I-I, p. 26; El Capital I-I, p. 19].

Também nas Notas sobre Wagner Marx critica muito claramente o método de “en- cadear conceitos” dos professores alemães (referindo-se em primeiro lugar ao próprio Wagner); e afirma partir da mercadoria como uma forma social concreta. Assim, os con- ceitos abstratos iniciais são encontrados a partir da análise de uma forma social concreta; e esta relação com o concreto se mantém ao longo de toda a exposição. A progressão dialé- tica dos conceitos tem sempre base na apreensão de aspectos da realidade; é sempre uma maneira de o “cérebro pensante” se “apropria[r] do mundo do único modo que lhe é possí- vel” [Introdução / 1857, p. 15].

C

APÍTULO

3

D

UPLO CARÁTER DO TRABALHO E SUBSTÂNCIA DO