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1.3 — T EMPO DE TRABALHO , DINHEIRO E ACUMULAÇÃO

1.3.1 — Distinção entre tempo de trabalho, valor e preço

O Capítulo III do Livro I de O Capital trata das funções do dinheiro; representa uma parte fundamental da teoria monetária de Marx. Para o tema deste trabalho, contudo, apenas alguns aspectos interessam diretamente. Esta subseção aborda dois deles, estreita- mente relacionados aliás: a possibilidade de divergência entre preço e valor, e a impossibi- lidade de o dinheiro representar diretamente o tempo de trabalho.

A partir da forma de dinheiro do valor define-se o preço (ou a forma preço) de uma mercadoria.

Dinheiro, como medida de valor, é a forma de manifestação necessária da medida do valor

imanente das mercadorias: o tempo de trabalho.

A expressão do valor de uma mercadoria em ouro — x da mercadoria A = y da mercadoria monetária — é sua forma de dinheiro ou seu preço [O Capital I-I, p. 86; El Capital I-I, pp. 115-6].

O preço é a denominação monetária do trabalho objetivado na mercadoria. (...) A grandeza de valor da mercadoria expressa, assim, uma relação necessária e imanente a seu processo de formação com o tempo de trabalho social. Com a transformação da grandeza do valor em preço, essa relação necessária aparece como a relação de troca de uma mercadoria com a mercadoria monetária, que existe fora dela [O Capital I-I, p. 91; El Capital I-I, pp. 124- 5].

O preço é o valor expresso em dinheiro, é a medida da substância do valor de uma mercadoria — o trabalho abstrato — a partir da quantidade de trabalho representada pelo dinheiro, e não da quantidade de trabalho que ela própria custou. O preço, portanto, é um

valor de troca específico, e é o que importa em uma economia monetária.

Mas, por outro lado, esta expressão do valor como preço permite a distinção entre

preços e valores. Para mostrar como Marx trata desta questão, retomamos a citação ante-

rior de forma mais ampla, destacando outro aspecto dela:

Mas se o preço, como expoente da grandeza de valor da mercadoria, é expoente de sua re- lação de troca com o dinheiro, não se segue, ao contrário, que o expoente de sua relação de

troca com o dinheiro seja necessariamente o expoente de sua grandeza de valor. Suponha-

trigo e em 2 libras esterlinas (…). As 2 libras esterlinas são a expressão monetária da gran- deza de valor do quarter de trigo ou seu preço. Se as circunstâncias permitirem sua cotação a 3 libras esterlinas ou forçarem sua cotação a 1 libra esterlina, então, como expressão da

grandeza de valor do trigo, 1 libra esterlina e 3 libras esterlinas são ou pequenas ou grandes

demais, mas mesmo assim elas são preços do mesmo, pois são, primeiro, sua forma valor, dinheiro e, segundo, expoentes de sua relação de troca com o dinheiro. Com condições de produção constantes ou força produtiva de trabalho constante, deve-se despender para a re- produção de 1 quarter de trigo, tanto antes como depois, a mesma quantidade de tempo so-

cial de trabalho. Essa circunstância não depende da vontade do produtor de trigo nem da

de outros possuidores de mercadorias. A grandeza de valor da mercadoria expressa, assim, uma relação necessária e imanente a seu processo de formação com o tempo de trabalho social. Com a transformação da grandeza do valor em preço, essa relação necessária apa- rece como a relação de troca de uma mercadoria com a mercadoria monetária, que existe fora dela. Mas nesta relação pode expressar-se tanto a grandeza de valor da mercadoria como o mais ou o menos em que, sob dadas circunstâncias, ela é alienável. A possibilidade

de uma incongruência quantitativa entre o preço e a grandeza de valor é, portanto, inerente à própria forma preço. Isto não é um defeito desta forma, mas torna-a, ao contrário, a

forma adequada a um modo de produção em que a regra somente pode impor-se como lei cega da média à falta de qualquer regra [O Capital I-I, p. 91; El Capital I-I, pp. 124-5].

Esta citação é importante para deixar claro como é falsa a idéia, muito difundida, de que Marx, no Livro I de O Capital, pressupõe a troca das mercadorias por preços propor- cionais aos seus valores, ou, o que dá no mesmo, que ele define a vigência da lei do valor como sendo a troca das mercadorias na proporção das quantidades de trabalho contidas na sua produção24. Ao contrário: desde a primeira vez em que fala de preço, Marx deixa claro que pode haver (na verdade, deve haver) incongruências quantitativas entre valor e preço.

Assim, quando o valor se expressa como preço, perde-se em “fidedignidade” do valor — pois o preço expressa o valor como algo diferente dele próprio, e entre ambos pode haver portanto uma diferença. Que acontece, então, quando o valor se expressa em um preço que difere dele quantitativamente? Simplesmente: se uma mercadoria é alienada por um preço distinto do seu valor, faz-se uma transferência de valor entre o comprador e o vendedor. Nesse caso, ocorre o que se pode chamar de troca desigual, isto é, troca + trans-

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ferência de valor na circulação. A lei do valor significa que não pode haver criação de va- lor sem trabalho produtivo25, e que portanto não pode haver criação de valor na circulação.

Mas não impede que haja desvios entre preços e valores, transferências de valor na cir- culação.

Mais ainda: a diferença entre preços e valores não é apenas quantitativa; pode ser também qualitativa:

A forma preço, porém, não só admite a possibilidade de incongruência quantitativa entre grandeza de valor e preço, isto é, entre grandeza do valor e sua própria expressão monetá- ria, mas pode encerrar uma contradição qualitativa, de modo que o preço deixa de todo de ser expressão do valor, embora dinheiro seja apenas a forma valor das mercadorias. Coisas que, em si e para si, não são mercadorias, como por exemplo consciência, honra etc., po- dem ser postas à venda por dinheiro pelos seus possuidores e assim receber, por meio de seu preço, a forma mercadoria. Por isso, uma coisa pode, formalmente, ter um preço, sem ter um valor [O Capital I-I, p. 91; El Capital I-I, p. 125].

Ou seja, também coisas que não são produtos do trabalho, ou que não são produzi- das para a troca, podem assumir a forma de mercadoria. Adquirem um preço, que não cor- responde neste caso a nenhum valor, e é regulado apenas pela oferta e procura. Os possui- dores destas coisas “mercantilizadas” participam portanto da divisão geral do valor (apro- priam-se de valor pela sua venda), sem terem participado (enquanto proprietários destas coisas) na produção de valor.

Além de Marx mencionar a possibilidade da existência de desvios entre preços e valores logo depois de definir preço, outra prova da grande importância que ele dava a esta questão é toda sua argumentação, desde a Miséria da Filosofia, contra a idéia proudhoni- ana (e de vários outros autores) de que o dinheiro poderia ser substituído por bônus de tra-

balho ou outras formas similares, nas quais o tempo de trabalho seria representado direta-

mente e de maneira fiel. Em Para a Crítica da Economia Política este tema é tratado lon-

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A discussão das condições em que o trabalho é produtivo ultrapassa os limites desta tese; há na literatura ótimos tratamentos desta questão como, por exemplo, o segundo capítulo da obra de Shaikh e Tonak, Measuring the Wealth of Nations [1994, pp. 20-37]. Aqui, basta lembrar que o trabalho só é produtivo no interior do processo de produção (o que inclui atividades que se caracterizem como seus prolongamentos, como o transporte).

gamente; e o capítulo sobre o dinheiro dos Grundrisse (primeira versão do que seria a pri- meira seção de O Capital) se organiza a partir da crítica a estas concepções. Nesta crítica, a necessidade de que os preços possam divergir dos valores é um dos pontos centrais.

Vejamos como o tema é tratado em Para a Crítica da Economia Política. Após re- sumir a proposta de “recibos de tempos de trabalho” de John Gray, Marx comenta o se- guinte:

Tendo em vista que o tempo de trabalho é a medida imanente dos valores, por que fazer valer paralelamente outra medida exterior? Por que o valor de troca se desenvolve em preço? Por que todas as mercadorias estimam seu valor em uma mercadoria exclusiva que assim é transformada no modo de ser adequado do valor de troca, em dinheiro? Esse era o problema que Gray tinha para resolver. Ao invés de resolvê-lo, imaginou que as mercado- rias poderiam relacionar-se mutuamente como aquilo que são. As mercadorias são direta- mente produtos de trabalhos privados, isolados e independentes, que precisam confirmar-se como trabalho social geral através de sua alienação no processo de troca privada. Em ou- tras palavras, o trabalho, base da produção de mercadorias, só depois da alienação multila- teral dos trabalhos individuais é que se torna trabalho social. Mas se Gray supõe o tempo de trabalho contido nas mercadorias como diretamente social, supõe-no como tempo de trabalho comunitário, isto é, como tempo de trabalho de indivíduos diretamente associados. Só assim seria possível que uma mercadoria, específica como o ouro ou a prata, se defron- tasse com outras sem se transformar na encarnação do trabalho geral; o valor de troca não se tornaria preço, mas nem o valor de uso chegaria a ser o valor de troca, e o produto não seria mais mercadoria, eliminando com isso a própria base da produção burguesa. Mas não é essa, absolutamente, a opinião de Gray. Os produtos devem ser produzidos como merca-

dorias, mas não devem ser trocados como mercadorias [Para a Crítica da Economia Po- lítica, p. 68].

Marx complementa sua argumentação no início do Capítulo III do Livro I de O Ca-

pital, na nota 50 [O Capital I-I, p. 86; El Capital I-I, p. 115-6]:

A pergunta por que o dinheiro não representa diretamente o próprio tempo de trabalho, de forma que, por exemplo, uma nota de papel represente x horas de trabalho, se reduz sim- plesmente à pergunta por que, na base da produção de mercadorias, os produtos do trabalho precisam representar-se como mercadorias, pois a representação de mercadorias implica sua duplicação em mercadoria e mercadoria monetária. Ou por que o trabalho privado não pode ser tratado como seu contrário, trabalho diretamente social. Já tratei minuciosamente, em outra parte [Marx refere-se aqui a Para a Crítica da Economia Política], do utopismo

superficial de uma “moeda trabalho”, com base na produção de mercadorias. Observaria ainda que a “moeda trabalho” de Owen é tão pouco dinheiro como um bilhete de teatro. Owen pressupõe trabalho diretamente socializado, uma forma de produção diametralmente oposta à produção de mercadorias. O certificado de trabalho constata apenas a participação individual do produtor no trabalho comum e seu direito individual à parte do produto co-

mum destinada ao consumo.

Marx complementa dizendo que Owen pressupõe a produção de mercadorias e, apesar disto, quer “escamotear suas condições necessárias por meio de artimanhas monetá- rias”.

A impossibilidade do uso dos “certificados de trabalho” decorre da dupla natureza social do trabalho produtor de mercadorias. Ele é social enquanto produtor de valores de uso, na medida em que satisfaz as necessidades sociais desenvolvidas pela divisão social do trabalho. Mas este caráter social do trabalho, não sendo o trabalho diretamente comu- nitário, planejado, só pode se realizar a partir de sua socialidade no sentido especifica- mente mercantil, de trabalho para a troca, produtor de valor, abstrato — as mercadorias só podem realizar-se como valores de uso realizando-se como valores. Esta socialidade abs- trata, no entanto, exige que o trabalho passe por um processo de igualação social, pelo qual só é reconhecido o tempo de trabalho médio, isto é, de intensidade, habilidade e tecnologia médias26. Mesmo o trabalho médio, contudo, pode exceder as necessidades sociais, ou ficar aquém delas; deve receber um reconhecimento quantitativo no momento da venda. Com isto, o tempo de trabalho efetivamente realizado pode ser reconhecido como um tempo menor, ou maior. Por estas duas razões — o trabalho individual tem de ser reduzido a tra- balho médio, socialmente necessário27, e tem de haver uma comprovação social de que o trabalho despendido atendeu a necessidades sociais — deve haver uma forma social de medir o tempo de trabalho reconhecido dando-lhe a possibilidade de ser diferente do tempo de trabalho efetivamente realizado. Esta forma social, naturalmente, é o dinheiro. Sua existência resolve o problema, permitindo em primeiro lugar que o tempo de trabalho abs- trato medido não seja igual ao tempo efetivamente despendido, mas sim ao tempo de tra-

26 Deixamos de lado no momento, para simplicidade, a questão da distinção entre trabalho qualificado (com-

plexo) e trabalho simples.

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balho médio, socialmente necessário; e em segundo lugar que o preço (que mede a quanti- dade de trabalho socialmente reconhecida) possa desviar-se do valor (que mede a quanti- dade de trabalho socialmente médio efetivamente despendido).

Voltaremos a tratar da questão da igualação e do reconhecimento social do trabalho realizado, bem como da distinção entre preços e valores, nos Capítulos 3 e 5. Também as questões da transformação dos valores em preços de produção, da formação dos preços

comerciais (da distinção entre os preços dos produtores e dos preços de venda dos comer-

ciantes), dos preços pós-impostos e dos preços internacionais giram em torno de desvios quantitativos dos preços em relação aos valores (as duas primeiras são tratadas no Livro III de O Capital, as duas últimas anunciadas, mas não tratadas sistematicamente por Marx — voltaremos a estas questões brevemente adiante neste Capítulo, e de forma mais extensa nos Capítulos 4 e 5).

1.3.2 — Entesouramento e acumulação

A análise das funções do dinheiro realizada no Capítulo III do Livro I de O Capital interessa ao tema deste trabalho também pela relação entre entesouramento e acumulação; o entesouramento é uma das funções que o dinheiro cumpre na sua “terceira determinação, a de “dinheiro como dinheiro”.

O dinheiro como dinheiro é a unidade (contraditória) de suas funções anteriores:

A mercadoria que funciona como medida do valor e também, corporalmente ou por inter- médio de representantes, como meio circulante, é dinheiro. (…) Como dinheiro funciona, por um lado, onde aparece em sua corporalidade áurea (ou prateada), isto é, como merca-

doria monetária, portanto, nem apenas de forma ideal, como na medida do valor, nem

sendo suscetível de representação, como no meio circulante; por outro lado, onde sua fun- ção, quer a execute em pessoa, quer por meio de representantes, fixa-o como figura de va- lor exclusiva ou única existência adequada do valor de troca perante todas as demais mer- cadorias, enquanto simples valores de uso [O Capital I-I, p. 109; El Capital I-I, p. 158].

A questão da importância da “corporalidade áurea” do dinheiro para Marx (ligada à função do dinheiro como dinheiro mundial) coloca problemas para uma interpretação atual: parece claro que o ouro já não desempenha nenhum papel decisivo no sistema mo-

netário internacional de hoje28. Para os objetivos deste trabalho esta questão não é decisiva, e podemos deixá-la de lado, ficando aqui apenas com a definição do dinheiro como di-

nheiro como figura única do valor, ou única existência adequada do valor de troca, “quer

execute esta função corporalmente, quer por meio de representantes”.

Nesta sua terceira determinação, como dinheiro propriamente, o que interessa mais de perto ao tema deste trabalho é o entesouramento. Na formação de um tesouro:

O dinheiro imobiliza-se ou transforma-se, como disse Boisguillebert, de meuble em im-

meuble, de moeda em dinheiro, assim que se interrompe a série de metamorfoses e a venda

não se completa com a compra seguinte.

Com o desenvolvimento inicial da própria circulação de mercadorias, desenvolve-se a ne- cessidade e a paixão de fixar o produto da primeira metamorfose, a forma modificada da mercadoria ou a sua crisálida áurea. Vendem-se mercadorias não para comprar mercado- rias, mas para substituir a forma mercadoria pela forma dinheiro. De simples intermediação do metabolismo, essa mudança de forma torna-se fim em si mesma. (…) O dinheiro petri- fica-se, então, em tesouro e o vendedor de mercadorias torna-se entesourador [O Capital I- I, pp. 109-10; El Capital I-I, p. 159].

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Não há acordo entre os intérpretes de Marx no tratamento da questão do vínculo do dinheiro com o ouro na atualidade; há os que consideram que, ainda que de forma mais indireta que antes, o ouro continua a ter um papel monetário decisivo. É o caso de Claus Germer, em diversos trabalhos; por exemplo, Germer [1998]. Leda Paulani, por outro lado, argumenta de forma convincente que o vínculo do dinheiro com o ouro não é mais necessário: “(…) as limitações que a natureza do capitalismo (…) [da época de Marx] impôs a sua apre- sentação teórica são muito claras. Para ele, a vinculação do dinheiro a uma mercadoria particular (o ouro) impunha-se como uma necessidade. Portanto, apesar de forma autônoma do valor, o dinheiro não podia ser assim tão autônomo. Na aparência o dinheiro tinha de ser mercadoria (como de fato tem de sê-lo ainda hoje) mas mercadoria ‘de verdade’, ou seja, o ouro. Assim, se ele tinha consciência do caráter puramente formal do dinheiro, que se realiza quando de sua determinação de meio de pagamento geral, acreditava também que, quando era necessário o ‘valor em pessoa’, era o ouro a única aparência capaz de conferir ao dinheiro esta dignidade. Enquanto dinheiro mundial, por exemplo, era sempre necessário que ele existisse em sua corpo- reidade metálica, de modo que não fosse apenas forma do valor mas o próprio valor, situação diferente da existente no âmbito interno, onde ele era substituído por signos do valor. (…) não pôde Marx perceber que a essência da aparência de mercadoria do dinheiro é, ela própria, puramente forma e não pôde perceber isso porque efetivamente a realidade do capitalismo do século XIX obrigava que o dinheiro se mostrasse como ouro” [Paulani 1991, pp. 146-7].

O impulso à formação do tesouro não tem nenhuma relação com necessidades da circulação. É uma busca da acumulação de riqueza na sua forma mais universal, na sua

única forma adequada. Esse impulso é, por sua própria natureza, ilimitado:

O impulso para entesourar é por natureza sem limite. Qualitativamente, ou segundo a sua forma, o dinheiro é ilimitado, isto é, representante geral da riqueza material, pois pode tro- car-se diretamente por qualquer mercadoria. Porém, ao mesmo tempo, toda a soma efetiva de dinheiro é quantitativamente limitada, portanto também apenas meio de compra de efi- cácia limitada. Essa contradição entre a limitação quantitativa e o caráter qualitativamente ilimitado do dinheiro impulsiona incessantemente o entesourador ao trabalho de Sísifo da

acumulação [O Capital I-I: 111-2; El Capital I-I: 162].

Um dos grandes temas de Marx para caracterizar a economia capitalista é justa- mente o fato de esse impulso para acumular riqueza fazer parte necessariamente da sua lógica. O dinheiro como forma geral da riqueza desperta a paixão pelo tesouro, e o impulso a entesourar é por natureza ilimitado. Mas entesourar é retirar dinheiro da circulação; é vender sem comprar, é despojar-se de uma mercadoria renunciando à aquisição do valor de uso de uma outra; “o enriquecimento se apresenta como empobrecimento voluntário” [Grundrisse, p. 936]. Assim, a acumulação do dinheiro pelo dinheiro é ainda uma “forma bárbara”.

Com o decorrer do desenvolvimento da economia capitalista, o impulso para ente- sourar será transformado em um impulso superior, o impulso para acumular capital, para ampliar a riqueza de forma recorrente. Por isto mesmo a produção capitalista é produção de valor e mais-valia, produção para acumulação (e não produção de valores de uso, para satisfazer necessidades).

1.4O

CAPITAL

1.4.1 — Substância do valor e capital

A limitação do entesouramento é superada na circulação do capital, que segue a fórmula: D — M — D + ∆D (dinheiro — mercadoria — dinheiro acrescido de uma mais- valia). Esta fórmula D — M — D + ∆D ou, mais sinteticamente, D — M — D’, é chamada de fórmula geral do capital. Embora a circulação do capital exija uma constante metamor- fose do valor, de dinheiro a mercadoria, de mercadoria a dinheiro, o dinheiro é sua forma

por excelência, pois é a partir dela que o sentido do movimento, isto é, o acréscimo perma- nente de valor, pode ser apreendido. O dinheiro é a forma autônoma do capital.

Na circulação D — M — D (…) ambos, mercadoria e dinheiro funcionam apenas como

modos diferentes de existência do próprio valor, o dinheiro o seu modo geral, a mercadoria

o seu modo particular, por assim dizer apenas camuflado, de existência. Ele passa continu- amente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático. Fixadas as formas particulares de aparição, que o valor que se va- loriza assume alternativamente no ciclo de sua vida, então se obtêm as explicações: capital

é dinheiro, capital é mercadoria. De fato, porém, o valor se torna aqui o sujeito de um pro- cesso em que ele, por meio de uma mudança constante das formas de dinheiro e mercado-