• Nenhum resultado encontrado

Conforme se explicou até aqui, não existe uma lógica para a violência, resultante de uma ação individualizada ou coletiva, na medida em que se considera que ela é produto da construção histórica e cultural, comprometendo a forma de como os sujeitos se postam no mundo. Devem-se levar em conta que o meio, suas complicações e suas contradições, são fortes componentes produtores de situações que favorecem uma ação dessa natureza. Assim sendo, a violência não deve ser analisada como uma somatória de casos isolados, vinculados à maldade ou à falta de controle dos indivíduos, mas, como destaca Faleiros:

(...) um fenômeno societário complexo que envolve não só o crime enquanto transgressão, mas as relações entre as forças sociais e políticas da sociedade assim como as relações familiares. (2001, p.88)

Assim sendo, a violência doméstica apresenta-se como uma expressão da questão social de intensa preocupação para diversos grupos sociais, atingindo desde menos favorecidos até os mais afortunados econômica, social e culturalmente. Não podemos afirmar que a violência doméstica contra a mulher

ocorra somente entre as classes sociais empobrecidas, ao contrário, suas vítimas não ocupam uma determinada posição social.

Convém ressaltar que se entende questão social como sendo

(...) fruto das desigualdades e injustiças que se estruturam na realidade do continente, ocasionadas pelas profundas assimetrias nas relações sociais em todos os níveis e dimensões expressas, principalmente pela concepção de poder e de riqueza em certos setores e classes sociais, e pela pobreza e opressão de outros setores e classes, que foram e continuam sendo a maioria populacional (BÓGUS, YAZBEK, WANDERLEY, 2007, p.09).

Segundo as autoras, estas problemáticas se transformam efetivamente em questão social quando são percebidas e assumidas por um setor da sociedade que tenta, por algum meio, equacioná-la, torná-la pública, transformá-la em demanda política, implicando em tensões e conflitos sociais. Complementam, afirmando que a questão social diz respeito:

(...) aos vínculos históricos que amalgamam cada sociedade e ás tensões e contradições que levam á sua ruptura. Nesse sentido, ela é parte constitutiva dos componentes básicos da organização social – Estado, Nação, cidadania, trabalho, etnia, gênero, entre outros – considerados essenciais para a continuidade e mudança da sociedade (BÓGUS, YAZBEK, WANDERLEY, 2007, p.09).

Tratando-a historicamente, encontram-se registros de conflitos de diferentes sociedades antigas que foram permeadas por situações de exploração, assim como exclusões, tais como o escravagismo, a caça às bruxas, a lepra, a loucura, eram também, efetuadas: expulsões dos indivíduos do convívio com a sociedade ou matá- los (ex: judeus ou mouros espanhóis); construir espaços específicos para esses indivíduos, isolados da comunidade (ex: guetos, asilos e prisões); permitir que esses indivíduos vivessem na mesma comunidade, mas sem alguns direitos e sem

participação na sociedade (ex: judeus na França, indígenas). (CASTEL, 2007, p.41-45).

As relações humanas são compostas de comportamentos e crenças que se manifestam através das interações estabelecidas com o meio. Portanto, a violência ocorre por condutas e ações aprendidas ao longo do tempo, transformadas em expressões de questão social. Deste modo, não podemos reduzi-la a simples ocorrências ou manifestação de pobreza, mas conhecê-la como eixo que sustenta e atinge toda a humanidade.

Com base no exposto, questionar os modelos sociais, políticos e econômicos que pautam as ações do Estado e o cotidiano dos cidadãos em uma sociedade injusta e excludente. É inegável que nas sociedades capitalistas as relações sociais se estruturam em complexas ramificações, potencializadas pela ordem e supremacia masculina (ideologia dominante), oprimindo e excluindo a mulher. Como defendido nesse trabalho, violência contra mulher é construída pela cultura machista e suscitada por comportamentos e ações que auferem a influência do moderno sistema capitalista que persiste em definir o homem como ser produtivo de maior importância, enquanto que a mulher é apenas a parte complementar dessa trama de relações. No dizeres de Kollontay (1978), “a ideologia patriarcal subordina a mulher utilizando-se da disciplina para obtenção de sua sujeição, o que vem resultar na neutralização do fenômeno violência contra a mulher”.

Para elucidar, o comércio de produtos e os meios de comunicação, tais como novelas, programas e seriados, peças publicitárias, revistas, jornais, rádio e televisão, além de filmes, dentre outros, são veículos de exploração do capital que possuem o poder da informação que forma e suscita à opinião pública, englobando toda a população, independente da classe social, reafirmando, intencional e subliminarmente, a dicotomia dos papéis sexuais, e evidenciando o poder do homem sobre a mulher. É notável essa presença nos comerciais e propagandas brasileiras, principalmente de cerveja e de carros, que têm nas suas matrizes belas mulheres com seus corpos estruturados, que são utilizados como objeto de desejo, sedução e incitação à compra e à pornografia. Fagundes comenta:

(...) em alguns estabelecimentos há a pizza Carla Perez, Tiazinha, do doce Marta Rocha, mulheres objetos a serem digeridas. Pra não mencionar a mercadorização e consumo voyeur de corpos na mídia, no mundo do espetáculo e da simulação da ida. Em algumas falas cotidianas, piadas, músicas, numa banalização e descaracterização do feminino, recorre-se ao mundo animal para designá-las: cachorras”, “galinhas”, “piranhas”, ou são expostas como pedaços de carne “filés”, “popozudas” e eles os “tigrões”, “garanhões” viris. Se ele é barrigudinho e grisalho é charmoso, ela é desleixada. Filho(a) deu gente, mérito do pai, não deu, culpa da mãe. Até para xingar filho(a) é da mãe. Por que não da família, da sociedade, do Estado com suas políticas públicas? E a linguagem universal masculina para designar os dois sexos e que exclui a outra metade da humanidade (1991, p. 02)

O comércio de produtos é outra forma de exploração do capital que rege os comportamentos da maioria das pessoas entorno dos estereótipos sexuais, preparando, assim, meninas e meninos para ocupar seus papéis na sociedade, impulsionando a violência.

Temos como exemplo as lojas de roupas infantis, que vende suas vestimentas com prevalência de modelos e cores10 de acordo com o sexo biológico; para meninos, as cores azul, verde, branco, preto compõem roupas como calças, camisas, camiseta, short, macacão, sapato, tênis, todos básicos sem acessórios de enfeite e sem mistura de cores. Diferentemente, nas roupas das meninas o colorido é permitido, com prevalência das cores, rosa, lilás e amarelo; as peças são delicadas, rendadas, vestidos imitando as princesas dos contos de fadas, saias com desenhos de flores; os sapatos, sapatilhas e sandálias com lacinhos, brilhantes, além dos enfeites como presilhas, pulseiras, brincos, colares e muitos outros.

As crianças geralmente não escolhem seus brinquedos ou brincadeiras, mas são direcionados pelas instituições familiares, sociais, educacionais, e são suscitados pelo comércio, que os seleciona como apropriados de acordo com o sexo.

Aos meninos cabe bola, carrinho, dinossauro, skate, espada, brincadeiras que estimulam o desenvolvimento da coordenação motora como correr, pular, subir. Com isso, são preparados para superar os desafios, proteger e salvar a princesa como nos contos de fadas e nos quadrinhos, onde os super-heróis são invencíveis, além do aprendizado de gerenciamento da própria vida e o assumir do desenvolvimento do espaço público (trabalho), sem medos ou sentimentos.

Às meninas são reservados os brinquedos como bonecas, roupinhas, casinhas, panelinhas, vassourinhas, fogãozinho, tudo no diminutivo, estimulando-se brincadeiras mais quietinhas, a leitura dos contos de fadas, tudo dentro de casa, criando o cenário propício para futuras donas-de-casa (rainhas do lar), esposas e mães.

10 A utilização dessas cores para meninos e meninas é reforçada pelo mercado, mídia, escola e até

pelos hospitais. Muitos desses espaços baseiam-se na cromoterapia (ciência que usa a cor para estabelecer o equilíbrio e a harmonia do corpo, da mente e das emoções) para justificar sua utilização, pautando-se no fato de que esta é uma ciência usada desde as antigas civilizações, como no Egito antigo, Índia, na Grécia, na China. A cromoterapia defende que a cor-de-rosa entoa a calma, fragilidade, meiguice, inocência; o azul induz à imensidão sem limite do céu, dos oceanos. Essas cores são utilizadas pela sociedade como meio de divisão dos papéis sexuais: menina cor de rosa, menino azul.http://www.fontedeluz.com/index.php?ver=2&id=597

Desde os primórdios de nossa cultura, a menina aprende, na família, que ser mulher é saber cuidar de crianças, cozinhar, lavar, passar, cuidar da casa e do marido; ser mulher é adotar a postura do servir, do submeter-se, do obedecer ao pai, irmão, marido, etc.; é ser dependente, passiva, dócil, carinhosa, gentil, paciente, emotiva; é ser aquela que sabe agradar, e mais uma série interminável de 'atributos' tidos como femininos. O menino, por outro lado, aprende que ser homem é ter sob seu comando as experiências dos outros, especialmente das mulheres, é poder tomar decisões por todo um grupamento social como a família, é ser ativo, viril, corajoso, intransigente, etc (FAGUNDES, 1991, p.03).

Verifica-se ainda no mercado trabalhista, não casualmente, que as atividades voltadas aos homens encorajam a liderança, a criatividade, a praticidade e a ousadia, qualidades, dentre outras, requeridas para profissões ditas masculinas como dirigente de empresas, construtor, pesquisador, altos cargos e salários. Entretanto isso, as atividades menos pragmáticas, facilmente conduzidas por regras e normas, são ocupadas por mulheres, mais afeitas às ciências humanas, às letras, às artes; profissões consideradas tradicionalmente femininas como extensão de tarefas do lar como lavar, passar, cozinhar, cuidar, são socialmente desvalorizadas, exemplo disso é o trabalho doméstico não remunerado, sem férias, 13º salário, licença maternidade, sem direito à aposentadoria. Esta e muitas outras atividades desenvolvidas por mulheres têm significativo valor social; no entanto, é conveniente ao sistema capitalista ocultar a contribuição social dessas atividades, por ainda ter no comando uma maioria de homens que perpetua e cultiva a cultura machista.

É preciso compreender que a violência contra a mulher faz parte dos recursos de poder utilizados pelos homens para manter os privilégios e os benefícios que o sistema capitalista oferece e a hierarquia cultural machista lhes tem assegurado.

Cabe registrar, ainda, as transformações políticas, econômicas e sociais ocorridas na última metade do século XX, que levaram à ampliação da participação das mulheres no mercado de trabalho, fazendo com que a atual geração de mulheres começasse a se projetar. Agora, não apenas como esposa ou mãe, mas no mundo do trabalho, ela passa a ocupar postos cada vez mais elevados, tais como gerência, direção de empreendimentos econômicos, presidência de empresas e de países - como é o caso do Brasil, que pela primeira vez em sua história será comandado por uma mulher. Também se encontra em atividades de menor especialização, tradicionalmente ocupadas por homens. Exemplo disto é a presença de mulheres como motoristas de táxi, ônibus, na construção civil e outras atividades. Esses

compõem o conjunto de iniciativas de conquistas e empoderamento das mulheres, que está sendo construído com a perspectiva de mudança nos comportamentos e ações que promovam a coibição da violência e a igualdade entre os gêneros.

Entretanto, o caminho apenas se iniciou, ainda temos um longo percurso que perpassa a construção e mudanças nas políticas públicas e no sistema econômico, até a conquista plena da transformação social e cultural. Com isso, será possível se coibir as diversas formas de violência, além de se alterar as relações afetivas e humanas.

CAPÍTULO 2

Eu gosto de viver. Já me senti ferozmente, desesperadamente, agudamente infeliz, dilacerada pelo sofrimento, mas através de tudo ainda sei, com absoluta certeza, que estar viva é sensacional! (autor desconhecido)

CONTEXTO DOS SERVIÇOS DE ATENÇÃO SOS E CEAMO

Nesse capítulo, abordaremos a rotina e o trabalho dos serviços de atenção SOS e CEAMO, na cidade de Campinas. Para isso, precisamos contextualizar, brevemente, o movimento feminista no município, tendo sido este o responsável pela consolidação dos serviços.

2.1. BREVE HISTÓRIA DO MOVIMENTO FEMINISTA EM CAMPINAS

No inicio da década de 80, o movimento feminista atraiu a atenção das autoridades políticas e judiciais para a questão da violência contra a mulher, por meio de protestos silenciosos e pacíficos. Em Campinas, formou-se um grupo de militantes e mulheres que se vestiam de preto, representando luto, e se punham em frente ao fórum da cidade, durante os julgamentos de homicídios de mulheres vítimas de violência. Esse ato reivindicava a punição justa aos agressores, que em sua maioria eram esposos e companheiros das vítimas.

Nesta época, os maridos ou conviventes que assassinavam suas esposas ou companheiras eram absolvidos com base na tese de legítima defesa da honra.

Contudo, as feministas notaram que somente as reivindicações e os protestos não bastavam; sendo assim, partiram para a ação de intervenção junto às mulheres vítimas de violência, endossando o fortalecimento como meio de coibição e enfrentamento à violência. Para isso, uma advogada militante emprestou duas salas

comerciais no centro da cidade e, junto com uma psicóloga e uma dona de casa, iniciaram os trabalhos. Esses atendimentos baseavam-se na escuta, na orientação e no ingresso de ação judicial para compreensão das múltiplas facetas do fenômeno. Vale destacar que, passados alguns dias após a abertura da sala, outras feministas juntaram-se nessa empreitada, oferecendo seus serviços voluntariamente. O movimento de prestação de serviços às mulheres vítimas de violência recebeu o nome de SOS, em 198011.

Com o passar do tempo, o SOS adquiriu experiência no atendimento direto e no comportamento das mulheres atendidas, clareando para as militantes e profissionais o enraizamento cultural presente na dinâmica de vida das mulheres e as dificuldades em rescindi-lo. A partir dessa observação, a equipe elaborou um trabalho voltado para a comunidade, de cunho educativo/preventivo, com o objetivo de propagar as amarras da cultura machista e a perversidade da violência. Através desse trabalho, o SOS foi ganhando visibilidade no meio político - público, acadêmico, econômico, e na sociedade, configurando-se uma instituição de utilidade pública, acrescentando as palavras Ação Mulher ao nome.

Constatou-se que a violência não se restringia à mulher, mas abarcava agressivamente os outros membros da família como filhos, pais idosos, irmãos, cunhados, tios, sobrinhos e, não raro, a comunidade do entorno, como vizinhos, amigos, trabalho, escola. Para firmar essa comprovação, em 1995 agregou-se ao nome do SOS a palavra Família, passando oficialmente a ser chamado de SOS Ação Mulher e Família.

Nesse caminhar, a instituição estruturou-se profissionalmente e tornou-se referência no trato à questão da violência contra mulher, contribuindo ativamente na construção dos serviços de saúde e proteção, tais como o CAISM (Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher) - Hospital Universitário da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)12, a Delegacia de Defesa da Mulher - DDM (1993) e o Serviço de Atenção e Resgate à Mulher - SARA M, abrigo Municipal,

11 Para elaboração desse breve relato do movimento feminista em Campinas e o nascedouro do SOS, o conteúdo foi extraído do histórico oficial da instituição, em documento intitulado Centro de

Atendimento e Estudos: Mulher e Família, elaborado pela Dra. Maria José de Mattos Taube. O

documento não possui data, mas sabe-se que foi redigido na década de 90, com objetivo de angariar recursos financeiros.

12 Hospital de Referência e Especialista nas questões da saúde da mulher, principalmente no

atendimento a violência sexual. O CAISM atende toda a demanda da região de Campinas e do estado de São Paulo

fundado em 1997, que desenvolve o acolhimento e a proteção emergencial da mulher e seus filhos em iminente risco de morte.

A resposta estatal às lutas e reivindicações das próprias mulheres para a implantação do serviço de atenção público, tornou-se realidade em 2002, com a fundação do Centro de Referência e Apoio à Mulher – CEAMO, ligado a Secretaria Municipal de Cidadania, Trabalho, Assistência e Inclusão Social, tendo tornado, assim, referência em política pública específica para este segmento.

Cabe destacar que essas conquistas só puderam ocorrer pela influência política e as manifestações de reivindicações do movimento feminista.

Atualmente a cidade de Campinas conta com os serviços de proteção Delegacia de Defesa da Mulher e o Abrigo; serviços de atenção SOS e CEAMO, além da Coordenadoria da Mulher e do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher. Para fins desse trabalho, iremos nos ater aos serviços de atenção do município.