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As discussões que se seguem, no entanto, não podem começar sem uma breve exposição de alguns conceitos importantes, que perpassam esse trabalho: o de nacionalismo e

197 CÂMARA, Bruno Augusto Dornelas. Trabalho livre no Brasil Imperial: o caso dos caixeiros de comércio na época da Insurreição Praieira. Dissertação de mestrado, CFCH, UFPE, 2005.

107 de etnicidade. De início é bom deixar claro ao leitor que, por mais que o discurso antilusitano de parte do século XIX enfoque o processo de “nacionalização” do comércio, ele busca atingir apenas um grupo social de imigrantes, que está estabelecido naquele ramo de serviços, e não a totalidade dos portugueses e outros estrangeiros que se ocupavam de ofícios e profissões, não relacionadas diretamente ao comércio. Até os liberais mais ferrenhos e mesmo os maiores panfletários contrário ao “predomínio luso” no comércio, eram favoráveis a vinda de imigrantes, de portugueses de regiões rurais e açorianos, para o trabalho no campo. Para as lavouras e para o pesado serviço de campo pendiam na balança mais as questões referentes à religião e à raça do que propriamente de nacionalidade. Também não se fazia objeção à entrada de marinheiros estrangeiros, portugueses na sua maioria, para os serviços nas embarcações nacionais, já que esse tipo de trabalhador especializado constituía-se mão-de- obra pouco disponível. Não foram poucas as tentativas por parte do governo Imperial de “nacionalizar” os marinheiros portugueses, até mesmo para que servissem nos navios de guerra brasileiros.

Apesar da análise desse trabalho não descartar o conceito de nacionalidade, que também é fundamental para se compreender uma faceta do antilusitanismo em Pernambuco, pelo menos em uma determinada época e contexto não se pode partir unicamente dessa premissa198. Até mesmo porque, como foi visto na introdução, o sentimento contrário aos “portugueses da Europa” emerge num clima de conflito e rivalidade bem antes de qualquer tentativa de formação de uma identidade nacional, ainda em um período pré-independência. No entanto, não se pode negar que nas décadas 1830 e seguintes esses conflitos estão permeados de um caráter mais específico, onde a construção política do Estado nacional faz ressaltar rivalidades identitárias mais ao gosto de um nacionalismo emergente.

Deixando um pouco de lado essa discussão referente aos caminhos da construção do nacionalismo, o que pode trazer maior clareza sobre os conflitos entre “portugueses” e “brasileiros”, no correr do século XIX, sobretudo no Recife, é a questão referente à formação e atuação, no cenário urbano, de um grupo étnico específico. Para Fredrik Barth, um dos

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Nota. Regina Weber elabora uma interessante discussão na qual demonstra que uma identidade nacional nem sempre se configura como uma identidade étnica. Sua crítica aponta para o grande peso que a identidade nacional tem na historiografia, que por sua vez dificulta uma abordagem antropológica da identidade étnica. O grande problema é que essa identidade maior, focada na nacionalidade, acaba por encobrir e negligenciar outros fenômenos, entre eles, o da etnicidade. A autora nos lembra que a associação da identidade a um estado-nação é a forma mais óbvia de dar nome aos grupos étnicos, porém não é a única. WEBER, Regina. Imigração e identidade étnica: temáticas historiográficas e conceituações. In. Revista de História (UFES), v. 18, 2006, pp. 239 e 248.

108 primeiros a aprofundar o conceito, os grupos étnicos são categorias de organização social e de auto-identificação dos indivíduos que os compõe. Essa auto-identificação é fomentada pela escolha do sujeito, pela sua respectiva acolhida pelos membros que formam um determinado grupo, e pela atribuição por parte de terceiros. A própria etnicidade é em si uma forma de organização social199. Esse grupo também não se constitui isolado, distante dos demais, como uma espécie de “colônia de imigrantes”. A manutenção das chamadas “fronteiras da etnicidade” não resulta do isolamento do grupo, mas da própria inter-relação social; quanto maior a interação com outros grupos, mais potente ou marcado será o limite étnico. O comércio urbano por si só já é o lugar privilegiado dessa interação e contenda entre os diversos grupos sociais que o compõe. A disputa pelas melhores colocações dentro dele é um dos fomentadores do antilusitanismo.

Não há uma “definição de tipo ideal” de grupo étnico. O próprio conceito vem sendo reelaborado com o tempo para abarcar outras situações. Não existe muito menos um inventário indutivo, uma série de conteúdos culturais como território, língua, costumes ou valores comuns que indique a conformação do grupo. O termo “cultura”, por mais importante que seja nas abordagens historiográficas, é colocado em suspenso, mas não de todo abandonado. Isso porque, segundo Barth, se analisarmos o grupo pelo seu “suporte cultural”, a atenção acaba por ser “dirigida à análise das culturas” e não a própria “organização étnica” do grupo em questão. É a fronteira étnica que define um grupo e não o seu conteúdo cultural. Weber também é concorde nesse aspecto200. Assim, é bom manter certa ressalva no que diz respeito à questão dos traços culturais e tradições. Elas não distinguem claramente a comunidade étnica de portugueses no Recife dos demais grupos sociais. Nesse caso, trabalhar com culturas e tradições, corre-se sempre o risco de “essencializá-las”, criando com isso até possíveis estereótipos, que muitas vezes não correspondem à realidade. Na literatura especializada não há uma regra, ou consenso geral para se constituir uma comunidade étnica, isso porque muitas vezes ele aparece combinado a outros tipos de agrupamentos sociais201.

199 BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In. POUTGNAT, Philippe & STREIFF-FENART,

Jocelyne (orgs.). Teorias da etnicidade. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997, pp. 185-227.

200 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília – DF. Editora

Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.

201 Para uma melhor compreensão do assunto, ver: COHEN, Abner. O homem bidimensional: a antropologia do poder e o simbolismo em sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978. Ver principalmente o

capítulo 06, intitulado Organizações “invisíveis”: alguns estudos de casos, pp. 114-147. Verbete “Etnia”. In: BOBBIO, Norberto e outros. Dicionário de Política. Brasília: editora Universidade de Brasília; Linha Gráfica Editora, 1991, p. 449-450.

109 Deve-se destacar que o primeiro ponto de referência que o grupo em foco está inserido é o do local de nascimento, da origem dos membros que o compõe. Antes de qualquer alusão ao sentido moderno de “Pátria” ou “Nação”, o território colonial português era disperso do ponto de vista administrativo, com possessões espalhadas nos dois hemisférios. As distinções entre “reinóis” e “mazombos”, observada com mais detalhe na época da Guerra dos

Mascates, ou “súditos portugueses” e “súditos brasileiros” da Coroa portuguesa, que recheiam

a documentação referente ao tempo da vinda da Família Real para o Brasil, ou mesmo a não tão simples definição de “portugueses” e “brasileiros” depois da independência, são antes de tudo construções políticas que incidem no cotidiano dos grupos, formando assim também as suas identidades, diferindo seus indivíduos em relação aos outros. Esse sistema de distinção possui representações no passado e é reelaborado no interior dos grupos. A questão do local do nascimento é apenas o primeiro ponto para a construção da identidade desse grupo étnico em relação aos demais. Mas não o único.

A construção da identidade dos imigrantes portugueses não se resume apenas a uma identidade nacional, reconstruída nos trópicos, mas também a outras variantes. Ela está ligada ao aprofundamento de algumas temáticas como a da própria construção de identidades locais e regionais, de grupo, de classe, de trabalho, de categoria profissional, de família e etc. Além do mais há o peso de uma identidade social, construída no dia-a-dia de trabalho nas cidades escravistas do Império, onde a cor da pele tinha grande importância nesses arranjos identitários. E mesmo a disputa entre diferentes grupos é gerador dessas identidades. Os conflitos sociais e raciais que marcaram o século XIX possibilitaram a formação e o reforço dessas identidades étnicas.

Essas identidades nunca foram estáticas, paradas no tempo e no espaço. Em muitos casos as pessoas que pertenciam a um determinado grupo “trocavam” a sua identidade étnica por outra mais conveniente, a depender de novas situações. O próprio Barth lembra que os atores sociais, em alguns casos, acham vantajoso “trocar sua etiqueta étnica” por outra, a fim auferirem vantagens e evitar possíveis fracassos202. Sem confundir “etnia” e “nacionalidade”, é notável o grande processo de naturalização de gente nascida em Portugal, que optou pela cidadania brasileira após a independência. Esse processo, como se verá algumas páginas mais adiante, foi negociado ao longo do tempo perante os poderes públicos como também a própria

202 Apud. VILLAR, Diego. Uma abordagem crítica do conceito de “etnicidade” na obra de Fredrik Barth. In. Mana. Rio de Janeiro, abril 2004, vol. 10, nº1, pp. 180-181.

110 sociedade. Muitos desses “naturalizados”, em certo sentido, acabaram portando uma identidade múltipla. Os chamados “brasileiros adotivos” podem muito bem estar circunscritos no grupo étnico em foco ou transitar por ele com facilidade. Podem até mesmo se constituir como outro grupo étnico, possuidor de marcadores específicos próprios, gestado na mudança e aceitação da nova cidadania.

O próprio percurso de estabelecimento desses imigrantes no Brasil fazia surgir ou se reconfigurar novos grupos étnicos, num processo pós-migratório. É o caso dos imigrantes provenientes das ilhas dos Açores, conjunto de arquipélagos sob a administração do Império Português. Havia diferenças profundas entre os continentais e os chamados insulares. O

Cosmopolita, um periódico que circulou no Recife em meados da década de 1850, chegou a

afirmar que o açoriano “nem é português, nem é brasileiro”203. Esse ponto de vista pode até ser pautado na rejeição desses imigrantes, por parte até dos dois grupos nacionais em formação. Eram justamente esses açorianos, que pela sua condição social de imigrante pobre, acabavam assumindo os ofícios mais humildes, próprios de escravos, como por exemplo, o de carregadores de água, serviços de criados, tratadores de sítio, trabalhadores de campo e etc.

No caso desses açorianos, as distinções étnicas emergem também dentro de uma determinada área do mercado de trabalho. Apesar de não haver uma regra rígida nesse processo, os portugueses continentais, principalmente os provenientes da região do Porto, estavam destinados ao comércio e os açorianos eram preferidos para o serviço de campo nos engenhos e sítios. Mas não se pode generalizar. Gente do Porto também vinha para o serviço pesado do campo e bem como açorianos exerciam atividades no comércio. A esses açorianos não era negada a sua identidade portuguesa, uma vez que até recebiam proteção indistintamente do Vice-Consulado Português em Pernambuco. Porém, a própria contingência do mercado de trabalho tornava-os distintos e diferentes dos demais “súditos portugueses”. Essas distinções no seio da própria comunidade portuguesa não eram as únicas.

Um grupo étnico também pode absorver ou ser absorvido por outro, ou mesmo representá-lo. Por mais significante que tenha sido à entrada desses açorianos em Pernambuco, eles não se constituíram enquanto grupo étnico “específico”. Não há manifestações mais claras, além da já citada distinção feita no mercado de trabalho. Essa identidade parece ter sido obscurecida ou mesmo atravessada por um processo de incorporação no grupo maior dos “portugueses”. A documentação até pontua casos de

111 açorianos que ascenderam à relativa posição social em Pernambuco. No entanto, não existia um grupo, com relevante projeção econômica, que pudesse dar proteção e abrigo a esse contingente. Esses açorianos eram reconhecidos como “portugueses” no Brasil, mas se sentiam ou eram diferenciados de fato pelos demais portugueses continentais.

Esse processo de troca ou incorporação de uma nova identidade pode ser vista em outros casos, ainda referentes ao imigrante português. Jorge Fernandes Alves, em um estudo sobre os imigrantes portugueses que retornam a Portugal, conhecidos como “torna viagem” (ou também de “brasileiros”), ressalta a importância social e política desses indivíduos no retorno a antiga terra natal. A experiência de labuta no Brasil os tornou diferentes dos demais em sua comunidade de origem, conferindo-lhes até outra identidade204. Esses retornados se reconheciam como “portugueses” no Brasil, mas se sentiam ou eram diferenciados pelos portugueses em Portugal. Alberto Costa e Silva, analisando a situação de portugueses que saíram de Pernambuco para fundar Moçâmedes, em 1849, e dos africanos que retornaram a África após o cativeiro no Brasil, diz que todos recebiam a alcunha de “brasileiros”: “[...] pois brasileiros, tanto para portugueses, quanto para africanos, era não só o nascido no Brasil, mas igualmente quem no Brasil trabalhara ou vivera”205. Em todos esses casos, o deslocamento, a travessia e o trabalho acabaram dando uma nova configuração ao processo identitários desses indivíduos. Palavras como “desterritorialização” e “reterritorialização”, usadas pelos autores que estudam as migrações na pós-modernidade, podem muito bem estar inseridas nesse contexto, tornando mais complexa a dialética entre a questão da etnicidade e da nacionalidade.

Assim, diante do que se discutiu até o momento, quais seriam os critérios que definem a existência de uma comunidade ou grupo étnico de portugueses no Recife do século XIX? Seria apenas o da nacionalidade? A leitura abreviada das fontes pode até levar o historiador a pensar o antilusitanismo apenas como um conflito originário de duas nacionalidades emergentes, em processo de construção. Mas a questão não se restringe apenas a isso. O antilusitanismo que se desenvolveu no Recife, sobretudo a partir da década de 1840, era direcionado a um grupo específico desses imigrantes, aquele que estava estabelecido no comércio. Um grupo étnico não pode ser pensado apenas como uma mera classificação, ou mesmo como algo evidente, um dado simplesmente, amparado apenas na questão da

204 ALVES, Jorge Fernandes. Os Brasileiros: emigração e retorno no Porto oitocentista. Porto, 1994.

205 SILVA, Alberto da Costa e. Francisco Félix de Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro: Nova

112 nacionalidade. Sua explicação vai muito além. É necessário perceber nas fontes como ele foi se constituindo através dos tempos e das vicissitudes. No caso, o historiador precisa construí- lo aos olhos do leitor.

Muitos historiadores fazem uso dos termos “grupos étnicos” ou “etnia”, algo que veio de empréstimo de estudos na área da Antropologia, sobretudo nos trabalhos que estão relacionados aos povos indígenas e aos escravos africanos no Brasil. Estes últimos destacam a “etnia” com base no critério nação/procedência (guiné, angola, mina e etc.). A impressão que se tem é que na falta de uma nacionalidade, incorporada a algum tipo de Estado nação do tipo moderno, o termo “etnia” e suas variantes se adéquam melhor.

Pouca gente usa esse conceito, em se tratando de um determinado grupo de imigrantes europeus estabelecidos no Brasil, sobretudo em relação aos portugueses206. Porém, quando fazem uso do termo, incorrem no risco de não explicar os critérios que os levaram a pensar nessa classificação. Para qualquer antropólogo que trabalha com um grupo social específico, o uso do termo irá sempre preceder a própria observação científica, da construção de critérios, dos pontos de distinção e etc. É de se crer que para o historiador o caminho não seja diferente, o uso do termo não pode vir antes das explicações de como esse grupo de imigrantes se constituiu em uma comunidade ou grupo étnico.