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Charlotte Ericson, em um estudo clássico sobre a imigração européia para a América do Norte no século XIX, usou a expressão “imigrantes invisíveis” para definir a condição dos imigrantes ingleses que desembarcavam nos Estados Unidos. Eles se tornariam “invisíveis” no decorrer de um rápido processo de assimilação na nova sociedade receptora, pois, graças à língua, aos traços e tradições culturais em comum, poderiam se misturar facilmente aos nativos brancos daquele país. Essa invisibilidade era reforçada no contraste com os outros grupos de imigrantes. A mesma expressão foi usada por Jose C. Moya quando tratou dos imigrantes espanhóis que aportavam em Buenos Aires, na Argentina, entre as décadas de 1850 e 1930. Moya ressalta que esses imigrantes se tornam de alguma forma “invisíveis” também pelas mesmas razões do grupo analisado por Charlotte (cultura e língua em comuns com os naturais brancos da terra). O autor chega a dizer que essa invisibilidade se fez também presente nos estudos e na produção acadêmica sobre a imigração, onde esse significativo grupo de imigrantes foi negligenciado344.

Caso similar pode ser aplicado aos portugueses que desembarcaram no Brasil antes e depois do processo de Independência. Além da língua, dos nomes próprios e sobrenomes de família e de outros traços culturais em comuns, tinham também a mesma religião, freqüentando, sem distinção de espaço, as mesmas igrejas e irmandades religiosas, onde parte da vida social dos brasileiros e demais católicos se desenrolava. Notadamente, o catolicismo

344 ERICKSON, Charlotte. Invisible immigrants: the adaptation of English and Scottish Immigrants in Nineteenth Century America. University of Miami Press, 1972. MOYA, José C. Cousins and Strangers: Spanish Immigrants in Buenos Aires, 1850-1930. California: University of California Press, 1998. Caso

semelhante pode ser visto na Austrália, quando nas décadas de 1940 e 1970, mais de um milhão de britânicos emigraram para aquele país. Ver. HAMMERTON, A. James; THOMSON, Alistair. Ten Pound Poms:

Autralia’s invisible migrants. A life history of postwar British emigration to Australia. Manchester:

150 praticado por esses imigrantes assegurava a não-rejeição por parte dos brasileiros e a sua incorporação na sociedade de acolhimento, sobretudo favorecendo os vínculos matrimoniais que ocorreram entre indivíduos dessas duas nacionalidades345. O processo de assimilação seria aparentemente mais fácil, tornando assim esses imigrantes também “invisíveis”.

De fato, muitos imigrantes portugueses chegavam até mesmo a ser confundidos com os nascidos no Brasil, principalmente nos casos de recrutamento forçado. No entanto, o contrário também podia ocorrer. Houve casos em que nacionais foram confundidos com portugueses. Em pelo menos duas ocasiões esse tipo de confusão pode ser constatado no Recife da década de 1840, em meio aos motins antilusitanos que estouraram na cidade. Durante as comemorações do dia de Nossa Senhora da Conceição - padroeira de Portugal e também da cidade do Recife - ocorreu um grande mata-marinheiro que começou na rua da Cadeia do Recife, palco das festividades, mas espalhando-se por outras ruas daquele bairro. Um periódico chegou a relatar que a multidão que partiu para a violência, espancou “todos aqueles que lhe pareciam portugueses” (grifos nossos)346.

Fato similar também se sucedeu na manhã de 05 de dezembro de 1847, quando a cidade acordou com a notícia de enfrentamentos entre portugueses e brasileiros. O motivo teria sido um baile promovido por portugueses, ainda na noite anterior. Uma multidão reuniu- se em frente ao prédio onde acontecia a festa e passou a apedrejar as pessoas que chegaram à varanda. Muitas vidraças foram quebradas e alguns convidados que se aventuraram a abandonar o prédio foram espancados. Não foram poupados nem mesmo aqueles que saíam acompanhados, tendo sido arrancados dos “braços das senhoras” para logo em seguida serem agredidos. Muita gente esperou o dia clarear para poder sair. Mas o perigo ainda rondava as ruas e quem deixou o recinto acabou maltratado. Chegaram também a levar cacetadas alguns incautos que nada tinham a ver com o baile e que naquela hora da manhã apenas se dirigiam à missa matinal. Foram confundidos com portugueses347. As dúvidas e as incertezas de quem era quem, no calor daquela confusão, remete-nos ao problema da distinção entre brasileiros e portugueses.

345 Nota. Um dos pontos essenciais na escolha do cônjuge era a religião. Os estrangeiros no Brasil, desde que

professassem o catolicismo, tinham certas facilidades no acesso às famílias locais através do casamento, isso inclui os imigrantes portugueses. Ver: BIVAR, Vanessa dos Santos Bodstein. Além das fronteiras. O cotidiano

dos imigrantes na São Paulo oitocentista: vestígios testamentais. São Paulo: Humanitas, 2008, p. 93. 346 IAHGP, O Lidador, 11.12.1847, n. 235.

347 APEJE, O Lidador, 11.12.1847, n. 235. Ver também: Diário de Pernambuco, 09.12.1847, n. 278 e

151 Essa distinção entre “portugueses” que habitavam os dois hemisférios teve como princípio o processo de independência e como marco definidor no Brasil, a Constituição de 1824. O critério era político e o nascimento na “pátria” era apenas um dos quesitos para garantir a cidadania jurídica. Nas décadas seguintes, esse estatuto constitucional foi constantemente atacado, sobretudo pela facção liberal. Também representou um dos motivos colocados por esse grupo para reformar o texto de 1824.

No início da década de 1830, e mesmo antes, em meio às confusões e protestos que pediam a saída do Imperador Pedro I, os critérios de distinção eram colocados em discussão. Era corrente a acusação de que portugueses que viviam no Brasil e os chamados “brasileiros adotivos” agiam a favor do imperador “absoluto” e de um suposto projeto de tornar o Brasil novamente colônia de Portugal. Porém, até mesmo entre os que desejavam a queda do imperador, havia os que contemporizavam essa situação de aversão aos portugueses. O

Popular, um periódico que circulou brevemente em Pernambuco, em meados de 1830,

ressaltava a necessidade de se “acabar com essas rivalidades entre Brasileiros naturais, e Europeus, que são os Brasileiros adotivos”. Segundo argumentava, quando o Brasil ainda sustentava a sua independência, “algumas desculpas tinham essas recriminações de parte a parte”; mas isso perdeu o sentido ao fim do processo; afinal, quando “cessou a causa, devem cessar os efeitos”, assim completava o articulista de O Popular. Esse português teria se transformado em “nosso irmão e amigo”. Assim, “nada mais justo do que lhe conservemos amizade, visto que d’ali descendemos, que falamos a mesma língua, temos a mesma religião, e quase os mesmos costumes”348.

Em fevereiro de 1831, Cipriano Barata, contemporizando o clima geral desfavorável aos lusitanos, lembrava que havia, entre os portugueses, gente contrária a política absolutista compartilhada entre o grupo que apoiava o imperador: “falo dos bons Portugueses, já patriotas identificados conosco como irmãos, amigos zelosos da Constituição, [da] Independência, e [da] Liberdade, e defensores do Brasil, pátria como de nós todos”349. Mas nem todos eram concordes com esses sentimentos de irmanação e muito menos viam os portugueses e mesmos os “adotivos” como amigos.

Em meio a tudo isso pairava a dúvida e a confusão: brasileiros de nascimento e “brasileiros adotivos” eram confundidos com portugueses e acabavam apanhando e

348 IAHGP, O Popular, 16.06.1830, n. 05.

152 perseguidos nos motins de rua. Por sua vez, portugueses continuaram ao longo de todo século XIX sendo recrutados para o exército e outras milícias como se de fato fossem “brasileiros”. Quais seriam os critérios dessa distinção que pairava nas ruas e casernas? Os critérios políticos formulados entre a classe dirigente do país nos anos que se seguiram ao rompimento com a antiga metrópole portuguesa parecem não atingir claramente todas as instâncias sociais.

Para os mais atenciosos habitantes da cidade, os pontos e critérios que demarcavam as “nacionalidades” desses dois povos outrora unidos e agora irmanados pela herança cultural, podiam ser percebidos por outras nuances. A começar pelas configurações da aparência exterior --- como cortes de cabelo, formas de bigodes, barbas e cavanhaques, estilo das camisas e dos calçados, do vestuário no geral, gestual --- mas também pela linguagem falada, carregada de sotaques. Isso acabou tornando esses imigrantes menos invisíveis naquela sociedade do pós-colonial.

Embora falassem o português, uma língua comum as duas nações, esses portugueses não passariam assim tão despercebidos no Recife ou em qualquer cidade do Brasil oitocentista. Entonações diferentes na pronúncia de certas palavras, variações dialetais e mesmo o uso de certas palavras que se ouviam apenas em Portugal e que no Brasil já tinham caído em desuso, em resumo, os “falares” característicos daquela terra, eram sinais que denunciavam claramente esses lusitanos350. Essas diferenças eram sentidas com bastante intensidade. O padre Lopes Gama, em uma de suas crônicas de 1842, ao descrever a linguagem falada e escrita no Recife, exprimiu certa indignação quanto ao estado da língua portuguesa, que naquele momento já se encontrava cheia de influência africana, na sua oralidade, e de francesa, na sua forma escrita. Para ele, a influência africana no português falado provinha da casa-grande, onde as crianças tinham como primeiros “professores”, as “pretas velhas africanas”. Já a vertente francesa, na linguagem escrita (e também falada), era advinda dos jovens amantes da língua e literatura daquele país, que por aqueles tempos oitocentistas estava em moda nos trópicos.

Após criticar os tipos brasileiros que se apropriavam e mesclavam a língua francesa e o jeito africano nas pronúncias do português, Lopes Gama reproduz a resposta curiosa de uma

350 Nota. Uma publicação sobre os “dialetos e falares” de Portugal, publicada em 1958, ressaltava que haviam

apenas três dialetos falados no país. Esses eram o Rionorês, Mirandês e Barranquenho, falados por parte da população portuguesa que vivia situada junto à fronteira com a Espanha e que tinham influência dos povos daquela nação. Porém, Portugal tinha uma grande variedade de falares, os chamados “falares regionais”, que se diferenciavam bem entre a população do norte e do sul: falar Minhoto, falar Trasmontano, falar do Baixo Vouga e Mondego, falar Beirão, falar de Castelo Branco e Portalegre, e falar Meridional. Grande Enciclopédia

153 moça que não admitia ser corrigida no seu modo de falar: “eu nasci no Brasil, e não sei falar língua de Marinheiro”351. Era claramente uma alusão ao modo de falar dos portugueses chegados recentemente no Brasil. As distinções entre os modos de se expressar já se faziam extremamente claros a ponto de se deduzir apenas pela fala, quem era natural do Brasil e quem era de fora, advindo de Portugal.

Anos mais tarde, essas diferenças lingüísticas eram novamente ressaltadas de uma maneira muito provocativa pelo O Democrata, um jornal de tendência liberal de 1857, que vez por outra fazia de suas páginas uma barricada na luta contra a comunidade portuguesa local. Segundo narra O Democrata, uma folha de Lisboa denominada Asmodeu, escreveu um “insolente artigo contra o caráter e a dignidade dos brasileiros”. Partes desse artigo foram transcritas pela folha pernambucana. Segundo a publicação portuguesa, o brasileiro era “o resultado de uma fusão do macaco para o periquito, do orangotango para a arara, ficando [por fim] com a linguagem decadente e arrastada da origem de que se mostrava degenerado”. Percebe-se claramente aonde o articulista lusitano quer chegar com sua dose de ofensa jocosa, sobretudo quando levarmos em conta o próprio nome da publicação, Asmodeu, uma espécie de demônio maligno provocador de luxúrias e outras ações pecaminosas. Mas a resposta de O

Democrata segue também o mesmo tom, não poupando doses de sarcasmo e agressividade, a

começar pela origem dos lusitanos: “esse povo procede de uma invasão de bárbaros mesclados com africanos, que produziram a mais triste raça de burros manhosos, ou de ruins sendeiros (sic.), que ainda hoje estão no calcanhar de toda a Europa menos civilizada”. Quanto à forma de expressão oral dos lusitanos, O Democrata afirma que “Portugal é onde justamente se gagueja a linguagem mais desagradável e orgulhosa que se pode imaginar”. Ele chega a apontar vários vícios de pronunciação, como “menza” (em vez de “mesa”), “manjor” (no lugar de “major”), “cravão” (para “carvão”), “precurador” (para “procurador”)352. O articulista d’ O Democrata segue com outras dezenas de palavras que os lusitanos pronunciam de forma “desagradável”. Não só esse periódico, mas muitas outras publicações contrárias aos portugueses faziam questão pontuar em seus textos palavras com a pronúncia lusitana, para

351

O Carapuceiro, 19.10.1842, n. 58. Ver também o artigo de PESSOA, Marlos. “A linguagem bordalenga de muita gente”: o conteúdo lingüístico de importante fonte para o conhecimento do português brasileiro do século XIX. In. Lusorama 25, (Oktober 1994), pp. 70-80.

352 APEJE, O Democrata, 31.10.1857, n. 10. Nota. Na década de 1870, o escritor português Eça de Queiroz,

caricaturando o tipo brasileiro, vai fazer referência à “estranha linguagem” falada no país, uma espécie de “português com açúcar”. Em uma carta, o mesmo escritor diz que na voz do brasileiro “escorre o melaço”. CAVALCANTI, Paulo. Eça de Queiroz. Agitador no Brasil. Recife: Editora Guararapes, 1983 (3ª Edição Revista e Aumentada), pp. 82 e 346.

154 enfatizar o estilo jocoso de suas críticas. Esse contraste lingüístico acabou também convertido em estereótipo, acionando uma série de mecanismos discriminatórios, de uso tanto de portugueses e de brasileiros.

As ofensas entre portugueses e brasileiros descritas nesses periódicos seguem por outros caminhos, não se resumindo apenas ao campo da linguagem falada. Porém, é esse último campo dos sons e sotaques que nos interessa, pois demonstram como esses lusitanos eram facilmente distinguíveis na cidade do Recife, sobretudo aqueles que trabalhavam diretamente com o público, como no caso dos comerciantes e caixeiros do comércio varejista, e mesmo os vendedores ambulantes que saíam às ruas gritando, fazendo pregões de seus produtos por onde transitavam. Certos caixeiros, mesmo presos às suas lojas, também ficavam nas portas dos estabelecimentos gritando em alto som as ofertas e chamando os transeuntes para às suas lojas. Nesses momentos, o sotaque da terra natal fazia esses portugueses facilmente notados. O mesmo vale para as imigrantes portuguesas. Em 1872, o presidente da Caixa de Socorros D. Pedro V chegou a denunciar o grande número de portuguesas que se dedicavam a prostituição no Rio de Janeiro. Segundo o ofício do presidente dessa entidade, era notório os “gritos que denunciavam a origem daquelas mulheres”353.

O jeito de falar não apenas distinguia esses imigrantes, mas os tornava identificáveis. Um exemplo disso é um anúncio em que um proprietário de um sítio na Imbiribeira, subúrbio do Recife, informava ao grande público um roubo que sofreu. Segundo conta, ele teria contratado um português que “dizia chamar-se Antônio”. Um dia, ordenou que levasse um cavalo carregado de cocos para a região dos Afogados. Mas no caminho Antônio mudou o destino, seguindo para o Recife, onde desapareceu, levando o cavalo e todos os seus apetrechos, mercadorias e algum valor em dinheiro. O prejudicado descrevia o foragido como um rapaz de mais ou menos 20 anos e com “fala própria de sua nação”354. O seu modo de falar era um ponto que o tornava claramente identificável, segundo a descrição do jornal. Isso deve ter ajudado muitos juízes de paz e policiais a identificar também os açorianos que fugiam após romper os contratos de engajamento.

Porém, deve-se deixar claro que maneiras de falar são também aprendidas socialmente. Sotaques são perdidos ou adquiridos no convívio das trocas culturais. Um caso interessante pode ser percebido em um anúncio que relatava a fuga de um escravo do

353 NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. A mulher no contexto da imigração portuguesa no Brasil. In. Análise Social, vol. XXII (92-93), 1986, 3º 4º, p. 655.

155 Engenho Santa Cruz, localizado na freguesia de Una. Seu nome era Nicolau, crioulo, que aparentava ter aproximadamente 30 a 35 anos de idade. Seu proprietário suspeitava que ele tivesse fugido para o Recife, pois já havia feito isso antes. Um dos traços que o identificavam, segundo o anúncio, era a sua “fala um pouco aportuguesada”355, provavelmente aprendida com um feitor ou caixeiro de livros de conta português do engenho, ou mesmo com escravos africanos de Angola, que aprenderam parcialmente o idioma na terra de origem.

Da mesma forma pode-se dizer que caixeiros portugueses ou mesmo imigrantes de outras nacionalidades poderia perfeitamente perder e também adquirir outros modos de falar. Muitos tiveram que abandonar esses sotaques por um português mais “abrasileirado” para fazer-se entender pelos fregueses e até mesmo, no caso dos patrões estrangeiros, para que as ordens dadas aos empregados brasileiros se tornassem mais compreensíveis, não sujeitas a equívocos. Não deve ser difícil imaginar que os brasileiros, diante do sotaque tão característico desses imigrantes, tivessem que prestar mais atenção ao ritmo da cadência da pronúncia das palavras para que entendessem (isso também deve ter motivado algumas chacotas entre brasileiros e portugueses). Além do mais, deve-se lembrar que muitos desses portugueses empregados no comércio chegavam aqui em tenra idade, o que tornava mais eficaz o desaparecimento dos traços na sua pronúncia. É possível até que, depois de anos de convívio com brasileiros, esses imigrantes tenham perdido totalmente o sotaque que os distinguia e os identificava. Mas vale lembrar que muitos desses jovens ficavam empregados dentro de estabelecimentos de conterrâneos, onde se comunicavam até com dialetos próprios de suas regiões de origem, o que tornava também possível a reprodução e permanência dos sotaques. Até mesmo o convívio dentro de instituições como o Gabinete Português de Leitura deve ter ajudado essa permanência. Porém, pelo que se pode entender, o peso do sotaque na identificação da nacionalidade deve ser bastante relativo.

Não era apenas o modo de falar que deixava esses imigrantes mais visíveis. Outro ponto que os tornavam facilmente distinguíveis era o tom demasiadamente claro da cor da pele. Numa cidade como o Recife, “africanizada” por mais de três séculos de escravidão, com uma população considerável de pardos e pretos, esses portugueses e outros europeus provavelmente se destacavam pela brancura da pele e até pelos tons mais claros do cabelo.

156 Gilberto Freyre, ao relatar a grave situação de trabalho vivida pelos caixeiros de portugueses no Brasil, chegou mesmo a dizer que esses eram “quase escravos louros”356.

Alguns jornais antilusitanos de Pernambuco também faziam uso de um discurso em tons raciais para descrever os portugueses mais humildes, chegando ao ponto de escurecer a cor de suas peles, na intenção de desmoralizá-los e desqualificá-los, sobretudo em relação ao tipo de serviço que exerciam. Tornou-se até muito comum equiparar os portugueses aos escravos africanos e a seus descendentes, principalmente quando aqueles exerciam atividades que eram usualmente próprias dos cativos. Se forem consideradas as condições de contrato de trabalho a que estavam submetidos alguns desses imigrantes, essas comparações faziam sentido. Por esse motivo os jornais portugueses e brasileiros chamavam de “tráfico da escravatura branca” o negócio de locação de serviço de açorianos, muito freqüente entre as décadas de 1830 a 1860. Esses imigrantes eram praticamente “vendidos como escravos” aos patrões brasileiros.

Na escrita ferina d’O Echo Pernambucano essa comparação era mais acentuada, chegando mesmo a usar a expressão “malungo”, termo simbólico referente a um tipo de solidariedade e irmandade construída entre escravizados africanos que vinham numa mesma embarcação da África357, para detalhar o excesso de camaradagem e conluio existente entre esses portugueses radicados no comércio do Recife. O mesmo periódico, ao criticar o monopólio da distribuição e venda das carnes secas exercido por duas grandes firmas portuguesas na cidade, lembrava que esse comércio era fechado e exercido exclusivamente por “malungos galegos lusos”358.

Nem mesmo figuras importantes do staff governamental foram poupadas desse tipo de comentário. Na repressão aos praieiros, um anunciante anônimo mandava perguntar ao “marinheiro José Joaquim Coelho” se era verdade que “os seus malungos” tinham feito uma subscrição para que ele vingasse “a morte dos dois marinheiros” que tombaram durante o motim ocorrido na rua da Praia, nos dias 26 e 27 de junho de 1848, com o sangue de “dois mil Pernambucanos”. Por fim, o anunciante dizia que se fosse esse o seu intuito que procurasse “soldados marinheiros”, porque “com os soldados Brasileiros” ele não poderia contar359. O citado “marinheiro” era ninguém menos do que o brigadeiro José Joaquim Coelho, veterano