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1.3 Pensamento jurídico: contexto geral

1.3.2 Questões e desafios para a doutrina do entre-guerras

apresentada em sua novela descritiva do cotidiano parisiense da época, Les hommes de bonne volonté: “Ao direito, para fazer o auditório estremecer com prazer, é preciso criticar sem receios a República, o Parlamento, o sufrágio universal, insinuar, por exemplo, a propósito de uma lei recente, que ela é forçosamente mal feita, já que os deputados são forçosamente uns imbecis...”125.

O entre-guerras é palco do acirramento dos conflitos sociais, como visto. De um lado, temos a organização dos partidos de esquerda, que conseguem compor maiorias para comandar o governo, além de intervirem crescentemente no debate público e ganharem adesão das massas, com manifestações, greves e outras demonstrações, pleiteando que a democracia política se estenda também para a economia. O pleito de democracia industrial, as novas demandas reforçadas pelas experiências externas como a República de Weimar e o bolchevismo, o manejo das instituições da democracia liberal para ganhar espaço e poder no Parlamento, tudo isso se apresentava como um passo complicador da “questão social” de antes da guerra. Por outro lado, aparecem com força no cenário as ligas de direita, reforçadas pelo verniz moderno protofascista, que se valem do cenário para disseminar o medo da ameaça de radicalização e subversão da ordem.

Antes da Primeira Guerra Mundial, o desafio era formular uma teoria constitucional consistente, apta a legitimar a República e a democracia liberal em bases condizentes com os dilemas da sociedade francesa. Por isso René Capitant, ao escrever sobre Carré de Malberg, afirma que o papel da primeira geração seria o de inventar o direito constitucional126. Não à toa fazem parte desses debates fundadores acentuadas

125 Apud WALINE, 1977.

126 Sobre o papel e as referências dos fundadores do direito constitucional, tratando especificamente de Carré

de Malberg, escreve Capitant: “Il fut, en effet, un des pionniers, un des fondateurs du droit constitutionnel en

France. Il aimait à rappeler avec un sourire, devant de jeunes collègues fraîchement émoulus du concours et dont la tâche se trouve aujourd’hui singulièrement facilitée par l’apport de la génération précédente, quelles difficultés lui avaient réservées ses premières exploitations. Qui trouvait-il alors pour le guider ? De grands noms, certes, de philosophes, de politiques, d’historiens, de poètes ou de romanciers : Montesquieu, Rousseau, Sieyès, Chateaubriand, Benjamin Constant, Lamartine ou Victor Hugo, qui ont décrit la séparation des pouvoirs, défini ou exalté la démocratie, analysé le régime parlementaire, mais rien qui

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divergências sobre método e sobre os pilares da teoria do Estado e da teoria jurídica, como a própria percepção sobre o Estado e o direito. Os constitucionalistas clássicos se indagam sobre a maneira de construir uma ciência jurídica moderna, que incorpore ao mesmo tempo a democracia e a “questão social” dentro de uma teoria coesa, que pouco se distingue das preocupações típicas das ciências políticas.

No entre-guerras, a realidade é outra, e consequentemente também os dilemas são outros. Os juristas vão progressivamente abandonando a pretensão de teorizar a totalidade do político, enxergando um cenário em sensível mutação. O Parlamento, locus de crescentes disputas e tensões sociais, perde sua relevância como centro da soberania nacional, papel tradicionalmente a ele atribuído pelo liberalismo clássico. Há um crescente clamor por centralização do comando, na medida em que as sucessivas dificuldades econômicas exigem cada vez mais a ação concertada, técnica e célere do Estado, que passa a intervir na economia. A lei não mais é concebida de forma teórica como expressão da vontade geral, mas passa a ser encarada de forma mais pragmática, como instrumento de governo.

O constitucionalismo liberal, como formulado para servir de alicerce para a nova República, está sob fogo cruzado, e é mais frequente se falar em crise do que em consolidação ou plena realização. Temas como Estado, nação, soberania, indivíduo e sociedade passam a ficar de fora da dogmática jurídica, que preocupa-se em descrever o direito e as instituições de forma muito mais pragmática.

Fora da França, o novo cenário social e político está na origem de um novo constitucionalismo, de feições distintas daquele que marca a tradição liberal clássica. Sobre ele, escreve Bercovici: “Neste contexto de ebulição social, a manifestação do poder

constituinte não vai poder ser bloqueada e o resultado será uma alteração profunda nas estruturas constitucionais e estatais. As constituições do século XX não representam mais a composição pacífica do que já existe, mas lidam com conteúdos políticos e com a legitimidade, em um processo contínuo de busca de realização de seus conteúdos, de compromisso aberto de renovação democrática. Não há mais constituições monolíticas, homogêneas, mas sínteses de conteúdos concorrentes dentro do quadro de um compromisso deliberadamente pluralista, como em Weimar. A constituição é vista como um projeto que se expande para todas as relações sociais. O conflito é incorporado aos textos constitucionais, que não representam mais apenas as concepções da classe

ressemblât à un traité de droit constitutionnel, tel qu’il pouvait le concevoir et tel qu’il en existait en Droit privé”, in CAPITANT, 1936, p. 4.

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dominante, pelo contrário, tornam-se um espaço onde ocorre a disputa político-jurídica. A discussão sobre soberania e sobre poder constituinte retorna com força”127.

Na França, pelo contrário, ainda que proliferem propostas de reforma institucional e inclusive de revisão constitucional, não é a Constituição formal que se encarrega de fazer frente às novas demandas sociais. É a doutrina constitucional quem tenta absorvê-las a partir de respostas modernas, admitindo o direito ora como instrumento de resistência, ora como fator de movimento. Temos como hipótese que o entre-guerras é palco justamente da admissão da doutrina constitucionalista pragmática da tarefa de absorção da política, permitindo que o direito funcionasse como fator de movimento, seja para a efetiva transformação (para os juristas comprometidos com o pensamento de esquerda), seja de forma a preservar o arranjo de forças sociais. Mudar para permanecer como está.

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C

APÍTULO

2

J

URISTAS CLÁSSICOS

:

SITUANDO O PENSAMENTO CONSTITUCIONAL FRANCÊS NO FINAL DA

ERA DE

OURO

2.1 Léon Duguit; 2.1.1 Método histórico-objetivo; 2.1.2 Sociedade,

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