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Questões terminológicas: ainda faz sentido manter a denominação

Como exposto acima, em todas as manifestações das atividades humanas se faz necessário tratar da questão da responsabilidade. Costuma-se definir a responsabilidade civil como o dever de se reparar o prejuízo decorrente da violação de outro dever jurídico. Nesse sentido, podemos identifica-se sua origem na necessidade de se restabelecer o equilíbrio econômico e jurídico alterado pelo dano342. Trata-se, pois, de um dever jurídico sucessivo

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Segundo o disposto no art. 461 do CPC (com redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994), na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, poderá o juiz conceder a tutela específica da obrigação ou, na hipótese de julgar procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. O dispositivo prevê expressamente que nessas hipóteses a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (§ 2o), que poderá ser imposta pelo magistrado independentemente de pedido do autor, desde que seja fixado prazo razoável para o cumprimento do preceito (§ 4o). Anote-se que a multa não é a única alternativa de coerção de que dispõe o julgador, sendo o rol das opções disponíveis (§ 5o) meramente exemplificativo (é possível que seja determinada busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial). A característica comum a todas as medidas disponíveis ao juiz é justamente dissuadir o ofensor a manter a conduta ilícita que ocasionou o dano. Deve-se anotar ainda que idêntico tratamento é conferido às obrigações que tenham por objeto a entrega de coisa, após a introdução pela Lei nº 10.444/02 do art. 461-A no Código de Processo Civil. Além disso, em qualquer dos casos, o valor ou a periodicidade da multa pode ser modificado de ofício, caso o magistrado verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.

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NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 464. 342

(secundário) que surge para recompor os prejuízos decorrentes da violação de um dever jurídico preexistente (primário)343.

Tradicionalmente, divide-se o estudo da responsabilidade civil em duas áreas distintas, aplicando a cada uma delas um regime jurídico específico para lidar com danos antijuridicamente causados à esfera jurídica de outrem, que geram o dever de indenizar. Optou-se por denominá-las de responsabilidade civil extranegocial e responsabilidade

negocial, em detrimento das clássicas denominações responsabilidade extracontratual (ou

aquiliana) e responsabilidade contratual, pelos seguintes motivos abaixo descritos.

A expressão “responsabilidade contratual” não se limita ao estudo da obrigação de indenizar que decorre do não cumprimento de um negócio jurídico. Aplica-se o mesmo regime aos danos provocados pelo inadimplemento de atos unilaterais. Desse modo, não parece conveniente adotar, como denominação para uma categoria mais ampla, um termo que não exprime todos os casos por ela abrangidos, sob pena de se correr o risco de classificar, erroneamente, os danos provocados pelo descumprimento de um ato unilateral (v.g., promessa de recompensa ou gestão de negócio) como hipóteses de “responsabilidade extracontratual”.

Igualmente não parece conveniente referir-se à “responsabilidade extracontratual”, pois, atualmente, tal categoria não se limita ao inadimplemento cuja origem não remonte a um vínculo contratual. Na verdade, sob a expressão “responsabilidade extracontratual”, designa-se todo e qualquer dever de reparar o injusto prejuízo, causado ao lesado, que teve origem numa relação de direito absoluto, ou seja, trata-se do regime geral da responsabilidade em nosso sistema, vale dizer, o direito comum aplicável em matéria de danos, do qual a responsabilidade “contratual”, ou melhor, negocial, é mera especialização, uma vez que continua sujeita aos princípios e regras gerais daquela.

A expressão “responsabilidade extracontratual” (ou aquiliana), também denominada “responsabilidade por ato ilícito (responsabilidade ex delictu), na dicção do art. 398 do Código Civil, mostrava-se mais adequada a um paradigma que considerava a culpa como requisito essencial da configuração do dever de indenizar344.

343

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 2. 344

Como ensina Fernando Noronha, atribui-se à Lex Aquilia de damno, no século III a. C., a introdução, ainda que em termos bastante restritos, da ideia de culpa no direito aplicável (In Direito das Obrigações, 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 455. Sobre o tema, ver também Rubens Limongi França, em artigo denominado “As Raízes da Responsabilidade Aquiliana”, In NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade (org.).

No entanto, mesmo durante a vigência da codificação anterior, doutrina e jurisprudência apontavam para situações que permitiam o exercício da pretensão reparatória independentemente da verificação da culpa do ofensor. Logo, substituir a expressão em análise simplesmente por “responsabilidade civil”, em oposição à “responsabilidade negocial”, ou ainda enfatizar denominando-se “responsabilidade civil extranegocial”, facilita a compreensão da matéria e promove uma atualização das denominações para um estágio mais consentâneo com a evolução da disciplina345.

Nada obstante, apesar das objeções acima apresentadas, deve-se reconhecer que é corrente o uso dos clássicos termos responsabilidade extracontratual e contratual tanto na doutrina como na jurisprudência, razão pela qual, quando necessário, ainda se fará remissão a eles para evitar uma confusão terminológica na compreensão dos argumentos adiante apresentados.

Resta consignar que não se trata apenas de uma discussão quanto à denominação a ser apresentada. Se se considerar a responsabilidade civil extranegocial (responsabilidade extracontratual) como o regime geral no campo do direito de danos, aplicando seus princípios gerais inclusive ao campo da responsabilidade negocial (responsabilidade contratual), deve- se repensar o modo como o tema vem sendo abordado durante a formação dos bacharéis em direito em nosso país.

Afinal, durante a faculdade, primeiramente se é apresentado à responsabilidade negocial, sob a epígrafe “do inadimplemento das obrigações” (arts. 389 e seguintes do Código Civil), para só depois se estudar o que deve ser considerada a parte geral da disciplina (arts. 927 e seguintes do Código Civil), sob o título “da responsabilidade civil”.

Pode-se tentar delimitar o campo da responsabilidade civil, enquanto categoria geral, no princípio da incolumidade das esferas jurídicas (neminem laedere), ou seja, no interesse que cada indivíduo possui na preservação de sua esfera jurídica, que ocorre mediante reparação dos danos causados injustamente por outrem, aqui incluídas as situações nas quais o

Responsabilidade Civil. Doutrinas Essenciais, Teoria Geral, vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2010, p. 267 a 287. 345

Ao tratar das impropriedades da categoria “responsabilidade extracontratual”, José Jairo Gomes afirma que tal termo revela um acentuado matiz da “superada ideologia individualista-liberal-burguesa que caracterizou a

codificação oitocentista (...) Com esse termo, privilegia-se a figura do contrato, como se fosse este o ocupante do centro do sistema jurídico e não a pessoa. É a pessoa a razão de ser do Direito e não o contrato” (GOMES,

dano é resultado da violação de deveres gerais (superiores e preexistentes) a um negócio jurídico, que por tal fundamento não devem ser encarados como violação específica dele346.

Esclarecida a questão terminológica, deve-se analisar se ainda se justifica a manutenção da dicotomia responsabilidade civil extranegocial x negocial na experiência jurídica brasileira. Para facilitar a compreensão do próximo item, considerando a vasta tradição de utilização da nomenclatura responsabilidade civil extracontratual (aquiliana) e responsabilidade civil contratual, será mantida a denominação clássica durante o restante deste capítulo.