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Questionamentos e Um Certo Desencanto

3 OS DIÁLOGOS POTENCIAIS

3.2 L E V OYAGE D 'H IVER E P ALUDES

3.2.2 Questionamentos e Um Certo Desencanto

Tanto Paludes quanto Le voyage d'hiver são narrativas que aludem a outras não

259 Ibid., p. 21.

260 ROCHE, A. "Lzauto(bio)graphie". In: Cahiers Georges Perec I.op. cit., p. 68. 261

PEREC, G. Je me souviens (Texto da contra-capa).

somente por meio das referências a textos simbolistas, mas sobretudo pelo seu “inacabamento”. O leitor descobre que a história tem por objetivo fazê-lo procurar em outro lugar, ou melhor, em outro livro. E o curioso é que, nos dois livros, a busca de sentido em outro texto pode levar a uma grande decepção. No caso de Polders, o leitor procurará em vão por um livro inexistente, e quanto a Le Rouge et le Noir, a leitura dessa obra não será capaz de fornecer explicações para os mistérios do texto. A procura de uma “verdade” termina por fracassar, e o próprio sentido dessa procura se torna questionável.

A descoberta do livro de Vernier leva Degraël a questionar não apenas a autoria de boa parte dos textos “canônicos” da literatura francesa, mas o faz desconfiar também de críticos e historiadores que teriam, na melhor das hipóteses, sido enganados e involuntariamente conduzidos a propagar uma mentira sensacional. Neste sentido, a crítica literária é tão digna de desconfiança quanto a literatura. Em Paludes também se discute a questão da representação e da ilusão de real por ela criada. Em uma de suas conversas com Angèle, o narrador afirma dispor em seu livro os fatos de modo a torná-los mais próximos da realidade que o real, ou seja, com vistas a criar uma impressão de realidade. E, se levarmos em consideração seu diário, e o uso que dele faz o narrador, é fácil ver aí um questionamento da escritura de modo geral – pois o diário é um gênero do qual se espera absoluta sinceridade:

Dans mon agenda je puise le sentiment du devoir; jzécris huit jours à lzavance, pour avoir le temps dzoublier et pour me créer des surprises, indispensables dans ma manière de vivre; chaque soir ainsi je mzendors devant un lendemain inconnu et pourtant déjà décidé par moi-même263

.

Desde o início de Paludes o narrador situa sua obra com relação à de Virgílio, da qual tirou não só Tityre, mas também seu conformismo. Trata-se de um pastor:

qui parle à un autre; il lui dit que son champ est plein de pierres et de marécages sans doute, mais assez bon pour lui; et quzil est très heureux de szen satisfaire264

.

A partir daí, seu texto versará sobre a resignação e a crítica a essa resignação. Ou seja, o narrador compõe seu texto partindo diretamente das Bucólicas, sua “fonte”. Em Voyage d'hiver, podemos dizer que o movimento é inverso, pois Degraël descobre um livro a partir do qual outros foram escritos, aparentemente “un mosaïque dont chaque pièce était lzoeuvre dzun autre”265. Tem-se, então, a "origem" da qual as principais obras do simbolismo foram escritas

263 Ibid., p. 29. 264

Ibid., p. 29-30.

e, além disso, a idéia de intertexto e/ou influência dá lugar à de plágio.

Outro ponto no qual podemos aproximar Le voyage d'hiver e Paludes é o fracasso. O narrador de Paludes não consegue fazer sua viagem “salvadora” nem se desvencilhar do círculo de amigos e hábitos monótonos. Tal como seu Tityre, ele se deixa levar pelas circunstâncias, sejam elas tão banais quanto uma chuva passageira, e continua sem fazer nada. Até mesmo seu “novo” livro, Polders, continuará “bien Paludes et ne [le] contredit pas”266.

Degraël também não se sai muito bem. Após vários obstáculos e buscas geralmente infrutíferas, pouco descobre acerca do misterioso Hugo Vernier e sua obra, e morre sem mesmo conseguir ter entre as mãos outro exemplar do livro.

3.2.3 A Leitura (Prática e Teoria)

Assim como Paludes é um livro sobre leitores e leituras, Le voyage d'hiver também constitui um tipo de poética do ato de ler, evidente pelas reações de Degraël. Ao encontrar o livro de Vernier, sua sensação é a de déjá lu, e essa impressão também pode ser a do leitor real do livro, sobretudo se conhece um pouco da literatura francesa, pois há no texto várias alusões a outros livros – como o gole de chá, o pato ou, ainda, a viagem “aux allures initiatiques, dont il semblait bien que chaque étape avait été marqué par un échec”267, que pode remeter a

muitas coisas. Entre elas, ao “princípio” do romance burguês do século XIX segundo as definições de Lukács, ou até mesmo a um curioso livro de Gide, Le voyage d'Urien, no qual o protagonista e seus amigos também fazem uma viagem supostamente iniciática muito mal- sucedida, uma voyage du rien, sem falar do fracasso da viagem de Paludes.

Essas observações são, é bom lembrar, baseadas em nossa experiência de leitura, e talvez não sejam compartilhadas por outros leitores. Assim como Degraël pode ter sido “enganado” pelo texto de Hugo Vernier, encontrando nele indícios de um tema ao qual estava intimamente ligado, também nós podemos ter sido “vítimas” do mesmo efeito, e visto no texto aquilo que queríamos ver. Em outras palavras, o leitor real e Vincent estão livres para interpretar a obra (mesmo em se tratando de uma liberdade condicionada tanto pelas leituras anteriores quanto pelo texto), que estabelece um jogo com os leitores, e estes se inserem no texto por meio de lacunas nele presentes268.

266 Ibid., p. 143. 267 Ibid., p. 9. 268

“(...) le lecteur de Perec [est] conduit à lire peu à peu dzautres textes, dont les références explicites permettaient la recherche. Ces noms propres reflètent la compétence culturelle du scripteur et celle quzil

De acordo com Wolfgang Iser, os espaços se formam em qualquer tipo de interação. Mesmo quando duas pessoas estão frente à frente, não têm absoluta certeza do que pensam uma sobre outra, podendo apenas fazer suposições – essa falta de certeza cria o vazio da interação, a ser preenchido justamente por essas hipóteses. No caso de um texto, esses vazios são ainda mais freqüentes, pois o escritor não pode prever as reações de seus leitores reais. Embora possa criar uma imagem de leitor ideal, esta dificilmente corresponderá com precisão a um leitor de carne e osso.

Esses vazios seriam criados na leitura a partir do momento em que o leitor encontra elementos desconhecidos. O leitor em geral procuraria, no texto literário, uma explicação – essa é uma tendência nascida no século XIX, para a qual a literatura deveria compensar as deficiências de sistemas que se diziam capazes de fornecer explicações para tudo. A literatura era então vista como portadora de verdades e reveladora de segredos. Segundo Iser, essa visão acabou por cegar os críticos literários diante do texto e, se o leitor não quiser incorrer no mesmo erro, precisa ler "ao contrário", ou melhor, indo contra suas próprias expectativas. Em outras palavras, deve deixar de lado a idéia de texto literário como representação da realidade e portador de uma verdade. Com isso, Iser quer dizer que o texto causa um efeito de realidade: a ficção não é o real, não porque lhe faltem os predicados necessários ao real, e sim porque é capaz de dar à realidade a organização que esta não possui, e torná-la comunicável. O crítico alemão é categórico ao afirmar o descolamento existente entre o discurso ficcional e o real, por isso a representação por ele realizada não alude a objetos empíricos preexistentes. Enquanto símbolo, essa representação teria função representativa, ou seja, o discurso ficcional seria auto-reflexivo, simples representação da enunciação lingüística e dividindo com esta o uso dos símbolos mas não a referência empírica aos objetos. A arte seria uma representação e, portanto, não reproduziria os sistemas de normas da vida real, selecionando entre estes alguns elementos e expondo sua contingência com relação a esses mesmos sistemas.

Como vimos, quando o leitor encontra elementos não familiares, os vazios aparecem. Pode-se dizer que:

os elementos escolhidos fazem antes de tudo sobressair um campo de referência (...). Os elementos que o texto retira do campo de referência se destacam do pano de fundo do que é transgredido. Deste modo, os elementos presentes no texto são

suppose son archilecteur capable dzacquérir: ainsi, lzon constate que tout rapport de scripteur à lecteur est un rapport dzajustement de connaissances. Aucun lecteur ne comprendra jamais la même chose quzun autre. (ORIOL-BOYER. C. “Le Voyage dzhiver: lire/écrire avec Perec”. In Cahiers Georges Perec 1...op. cit., p. 164.

reforçados pelos que se ausentaram269.

As formulações de Iser entendem o texto enquanto potencialidade, mas não parecem considerar a possibilidade de uma “intenção” advinda do escritor. Para ele toda interação cria lacunas, e a relação texto-leitor não é diferente. Não é essa a opinião de Umberto Eco, para quem os espaços em branco não foram deixados assim por acaso, mas sim previstos por quem o escreveu, por duas razões: o texto vive da “valorização de sentido que o destinatário ali introduziu”270 e, quando passa da função didática para a estética, ele dá ao leitor a iniciativa da

interpretação.

Embora discordem quanto à origem dos vazios, tanto Iser quanto Eco afirmam que estes não podem ser preenchidos como bem entender o leitor. Para evitar as suposições aberrantes, o escritor apelaria para certas competências que dão conteúdo às suas expressões, e pressuporia que o leitor compartilha das mesmas competências, prevendo um leitor ideal (ou Leitor-Modelo), capaz de atualizar o texto como o escritor271 o previu. Até mesmo as

expectativas do leitor seriam sugeridas pela descrição da expectativa dos personagens. Todavia, devemos levar em conta tanto a distância entre o leitor ideal e o leitor real quanto o fato de o texto se referir sempre à enciclopédia (as referências particulares de cada leitor), que conduz o leitor para fora do texto. Este “elabora inferências, mas vai procurar alhures uma das premissas prováveis do próprio entinema”272.

Iser justifica a existência do texto ficcional pelo efeito que este causa em nós. Sua significação não viria de uma idéia preexistente à obra e por ela representada, mas por uma ação – sua leitura. Entretanto, o texto não está submetido à subjetividade arbitrária do leitor, pois ainda que os atos de percepção sejam apenas guiados pelas estruturas do texto (e não totalmente controlados por elas), o texto ficcional não reproduz a realidade. Por isso a objetividade esboçada em um texto não tem os contornos definidos dos objetos reais, permitindo a participação do leitor. Este deve obedecer a certas “regras” por não estar diante do real, mas sim de uma “máquina de mundos possíveis”.

Mas voltemos aos nossos escritores, e a uma questão muito interessante sobre o leitor. Quando o narrador de Paludes revela a composição dupla de seu diário – e, por aí, colocar em 269

ISER, W. “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional”. In COSTA LIMA, L. Teoria da literatura em sua fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1893. p. 389.

270 ECO, U. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 37.

271 Como o leitor, para Eco esse autor é também um modelo, uma estratégia textual responsável pelo

estabelecimento de correlações semânticas.

dúvida tanto a veracidade do gênero diarístico como o próprio Paludes, que também é um diário – e apresentar várias “versões” de sua obra, ele põe em prática o princípio da liberdade do leitor exposto no prefácio mas, ao mesmo tempo, mantém esse leitor em suspense, sem nenhuma certeza quanto à sua interpretação. Sem falar que, como vimos acima, essa liberdade nunca é total, estando antes condicionada a alguns fatores.

O preâmbulo de La Vie mode d'emploi traz uma epígrafe interessante e que pode nos ajudar a compreender a questão da liberdade “condicional” do leitor segundo Perec. Trata-se de uma frase do pintor suíço Paul Klee (“Lzoeil suit les chemins qui lui ont été ménagés dans lzoeuvre”273). Patrícia Molteni, em uma análise do realismo perecquiano, explica que a frase se

refere não a um controle total do espectador – ou do leitor – exercido pelo artista, mas a constatação das limitações objetivas deste, e também as do espectador. Tal como um quadro demanda tempo para ser produzido, o espectador precisa de tempo para apreender o quadro quando este está pronto. O artista lúcido e no controle das técnicas de expressão deve tentar inserir significações em cada pincelada ou palavra e, segundo Molteni, o mesmo se aplica a Perec, para quem “le signe est aussi la chose, le nom de la chose, et celui du signe, et toutes les associations quzil peut générer”274.