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R EFORMAS CURRICULARES BRASILEIRAS E O ENSINO POR COMPETÊNCIAS

Fui criticado por querer implantar uma espécie de “serviço mínimo”, como se todo o ensino obrigatório estivesse reduzido a uma única base. A simples leitura do texto fará justiça, refutando essa suspeita: está claramente enunciado que “o ensino obrigatório não se reduz a uma base comum”. A definição dos saberes fundamentais não implica, de modo algum, em limitar-se a esse ponto! O texto indica as principais direções, detalha alguns elementos, mas está aberto a todos os desenvolvimentos possíveis. Portanto, a base constitui também uma ferramenta que permite ir mais longe, uma espécie de trampolim da educação.

Gilles de Robien78

Como lembra Tomaz Tadeu da Silva, a palavra currículo, em sua etimologia no mundo antigo, remetia a uma competição atlética, a pista de corrida (2011, p.15). O currículo, portanto, representava o estabelecimento de um caminho, com direção e traçados delimitados, por onde o competidor deveria seguir. Assim, numa transposição simples, a expressão, quando levada ao universo da educação, passou a representar uma sistematização racional daquilo que deveria ser ensinado e aprendido durante o percurso escolar, o estabelecimento do itinerário de estudos, que envolve um processo de seleção entre os saberes, modos de ser e agir. Por outro lado, também é inerente à existência do currículo a sua dimensão simultânea de poder, cuja substância se refere à legitimidade das instâncias que estabelecem os conhecimentos que deverão habitar a escola e as atribuições dessa instituição em determinado contexto social.

A era das reformas educacionais aqui estudada, manifestadamente, fomentou uma série de transformações nas orientações curriculares da educação básica no Brasil. Essas mudanças nos currículos estiveram integradas ao ideário geral que impulsionou as próprias reformas, especialmente no que se refere à conceituada “questão social”, segundo as diretrizes 78 Ministro da Educação da França durante o governo de Jacques Chirac, entre os anos 2005 e 2007 (apud

social-liberais, que desejavam estimular um novo ciclo de expansão da economia mundial com base nos enunciados da teoria do capital humano e suas consequências para o ordenamento da educação. Desse modo, há sintonia entre as discussões curriculares e as indicações amparadas por organismos internacionais, como o citado relatório Delors produzido pela UNESCO, embasadas por conceituações acadêmicas pós-modernas e também sustentadas por institutos da sociedade civil burguesa. É importante frisar que, como bem destacou Zacarias Gama (2015a), o Brasil não foi “vítima” das instituições internacionais ou de um movimento de rapina das nações centrais, que forçosamente teriam impingido, de fora para dentro, o escopo das reformas. Ao contrário, é preciso reconhecer que no país sempre houve intelectuais afinados com esses preceitos e colaboradores (coautores) dessas mesmas medidas, vigentes em meio às políticas públicas e educacionais brasileiras desde meados da década de 1990.79

Por outra perspectiva, é necessário apontar que as discussões curriculares se estabeleceram como uma linha específica das pesquisas em educação, com abordagens e questões integradas à didática, avaliação, organização escolar geral, etc. Reconhecendo a complexidade desse campo de estudos e suas teorias específicas, serão objeto de nossa análise apenas os documentos oficiais elaborados pelo governo federal que se dedicam a formatar novas orientações curriculares para o ensino médio brasileiro. Não serão examinados, destarte, as estratégias e repercussões dessas propostas nas escolas, que compõem o que Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira propuseram chamar de teoriaspráticas, resultantes da negociação entre inúmeros outros componentes do cotidiano na educação escolar (ALVES e OLIVEIRA, 2012, p. 70). Não se deve perder o discernimento sobre as possíveis distâncias entre as proposições oficiais e aquilo que verdadeiramente se experimenta na rotina escolar, compreendendo o enorme espaço de negociação entre os documentos escritos formalmente e as práticas habituais das escolas. Todavia, nosso objeto de pesquisa é a concepção de ensino de história impulsionada pelas reformas recentes e, por isso, o lugar em que devemos buscar sua formulação é justamente nos documentos emitidos pelas instituições que definem a estrutura curricular da educação básica.

79 Rejeitamos, por isso, a seguinte formulação, recorrente em muitos escritos sobre o assunto: “Também não é

possível ignorar o movimento que tem feito o Estado brasileiro, de assimilação acrítica de normas, modelos e métodos dos países do núcleo orgânico, como resistência à periferização, sem a iniciativa de coordenar ações inovadoras que não só confeririam identidade nacional aos seus sistemas educativos e de trabalho, como também evitariam a submissão ao jogo de exploração e exclusão de seus cidadãos, como lógica de manutenção da hierarquia econômica mundial” (RAMOS, 2006, pp. 169-170).

2.1 – O estabelecimento de Parâmetros e Diretrizes Curriculares Nacionais.

De acordo com os documentos disponibilizados pelo MEC (BRASIL, 2000, pp. 7-8), a proposta de estabelecimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) estava agregada a um projeto mais abrangente de reformulação curricular de Ensino Médio, assim como de toda a educação básica do país. Sua elaboração iniciou-se durante as últimas etapas de tramitação da nova LDB, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) na presidência, com a formação de uma equipe de trabalho que reunia integrantes de algumas secretarias do ministério em parceria com professores universitários convidados. Ainda segundo os documentos do governo, a primeira versão dos PCNs foi apresentada pelos professores Ruy Leite Berger Filho, então diretor do Departamento de Desenvolvimento da Educação Média e Tecnológica, Avelino Romero Simões Pereira, responsável pela Coordenação Geral do Ensino Médio, e Eny Marisa Maia, coordenadora específica do Projeto – embora os documentos não fixem com exatidão a data de conclusão desses primeiros trabalhos80 (BRASIL, 2000, p. 7). De qualquer maneira, é preciso esclarecer que a elaboração

dos PCNs para o Ensino Médio guardou certa defasagem de tempo em relação ao mesmo documento dirigido ao Ensino Fundamental, ainda que as suas produções tivessem atravessado fases semelhantes (BONAMINO e MARTÍNEZ, 2002, pp. 369-372). Como nossa proposta é estudar as mudanças operadas no Ensino Médio, nos concentraremos em analisar exclusivamente os documentos dirigidos a essa esfera da educação básica.

De acordo com a Introdução do texto dos PCNs, disponibilizado pelo MEC em 2000, a construção do texto contou com um primeiro escrutínio técnico promovido entre professores universitários e as Secretarias Estaduais de Educação. Vencida essa etapa, ele foi submetido ao Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), para novas avaliações coordenadas pela Secretaria de Educação Média e Tecnológica do MEC. Finalmente, houve a divulgação pública do texto, transformado pelas primeiras etapas de discussão, que culminaram em um ciclo de debates públicos, abertos à população e organizados pelo jornal

Folha de São Paulo, no início de 1997.

80 Ruy Leite Berger Filho era licenciado em Letras, pela PUC-RJ, com especialização em Gestão da Educação Tecnológica cursada nos EUA (Oklahoma State University). Antes de compor o MEC, foi Secretário de Educação do Estado do Piauí, se tornando intelectual orgânico das reformas educacionais no Brasil. Veio a falecer há poucos anos. Avelino Pereira era professor da História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), tendo participado da coordenação do Ensino Médio no MEC, do comitê técnico responsável pelo ENEM do INEP, além de ter sido representante brasileiro no Fórum de Educação Secundária da UNESCO. Eny Marisa Maia possui doutorado em Administração Escolar pela Universidade de São Paulo, defendido em 1993 (e, portanto, anterior à sua participação nos debates sobre a reformulação curricular do Ensino Médio). Tempos depois, foi Secretária de Educação da Prefeitura de São Paulo durante o governo de Marta Suplicy (PT).

De acordo com o mesmo documento, as consultas públicas foram encerradas e o texto dos PCNs foi considerado finalizado em junho de 1997, tendo sido encaminhado ao Conselho Nacional de Educação (CNE), em 7 de julho do mesmo ano, com um pedido de expedição de parecer, sob relatoria da conselheira Guiomar Namo de Mello.81 O parecer do CNE foi

aprovado em 1 de junho de 1998, sob o nº 15/98, pela Câmara de Educação Básica, e embasou a aprovação, logo em seguida, da Resolução nº 03/98, de 26 de junho de 1998, estabelecendo as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) .

O exame desse processo de formulação dos PNCs e das DCNEM revela a quase simultaneidade na elaboração de ambos os documentos, com uma clara subordinação das diretrizes – posto que elaboradas à luz dos debates públicos dos PCNs – aos parâmetros. Essa constatação implica, por um simples silogismo, na primazia política do MEC (promotor dos PCNs) – órgão de governo –, sobre o CNE – supostamente um órgão de Estado (que, de acordo com Saviani, tem se mostrado muito condicionado pela dilatação dos encargos do executivo federal, segundo os termos da LDB aprovada).82 Por esse motivo, é necessário

explorar melhor as diferenças entre parâmetros e diretrizes.

A elaboração das diretrizes curriculares era matéria prevista pela lei nº 9.131 (de 1995) como uma das responsabilidades do CNE, num caso claro de pré-regulamentação da LDB (somente aprovada em 1996), que também veio a estabelecer definições semelhantes. De acordo com a lei de 1995, o CNE teria funções normativas, deliberativas e de assessoramento no que se refere à educação nacional, sendo sua incumbência, especificamente, deliberar sobre as diretrizes curriculares nacionais – previstas como responsabilidade da União pela Constituição de 1988. Contudo, a mesma lei ainda apontava que os relatórios e propostas do CNE somente teriam validade quando homologados pelo Ministro da Educação. Esse vaticínio sustenta a seguinte opinião de Saviani sobre o papel do CNE: “(...) que o Conselho

Nacional de Educação fica reduzido, na prática, a um órgão assessor do Ministério da Educação” (2011, p. 10).

81 Guiomar Namo de Mello é formada em Pedagogia pela Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado em Educação pela PUC/SP. Intelectual orgânica do PSDB, era deputada estadual na época de criação do partido e integrou governos, em várias esferas, dirigidos pelo mesmo partido. Além disso, é colaboradora de fundações privadas ligadas ao grande capital e ao pensamento neoliberal mais extremista, como a Fundação Victor Civita e a Fundação Pitágoras. Também colaborou com projetos educacionais junto ao Banco Mundial, sendo uma das dirigentes mais importantes de todo o processo de reforma curricular impulsionado pelos governos de Fernando Henrique Cardoso.

82 Entre as diversas mudanças sofridas pela LDB no debate durante sua tramitação no Congresso Nacional, criticadas por Saviani ao terem reduzido a potência do CNE na regulação do ensino brasileiro, está o atrelamento das resoluções do conselho ao sancionamento do Ministro e as mudanças na fórmula de sua composição. Tal como ficou a redação final da LDB, o CNE aparentava mais ser um órgão consultivo ligado ao MEC do que a instituição normatizadora e dirigente da educação nacional (SAVIANI, 2011).

Na opinião do pesquisador Carlos R. Jamil Cury, as intenções dos legisladores da Carta, em 1988, ao preverem a elaboração das diretrizes curriculares, eram as de garantir uma formação básica comum que servisse de referência para o ensino ministrado em todo o país – ideia controversa que prosseguiria sendo alvo de polêmica durante as discussões que acompanharam a gestação do projeto de LDB (CURY, 2002, p. 189). A responsabilização do CNE pela elaboração das diretrizes, por outro lado, asseguraria que fosse pautada uma política de Estado, mais profundamente enraizada que as políticas transitórias de governo, em que se verificam variações mais correntes e ligadas às conjunturas políticas e à correlação de forças na sociedade política.

Desse modo, a subordinação do CNE ao MEC, associada à divulgação pública dos PCNs por parte do governo Cardoso, implicaram a

subordinação de papéis que eram dele [governo] e de outros tantos que apenas provisoriamente estavam nele. A resultante foi a elaboração dos PCNs como se fossem a tradução do art. 210 da Constituição Federal. (CURY, 2002, p. 190)

A superposição de funções – MEC e CNE / PCNs e DCNs – fica ainda mais evidente na apresentação dos parâmetros, assinada pelo Ministro da Educação:

Cumprindo dispositivo constitucional, que em seu artigo 210 determina a fixação de conteúdos mínimos para o ensino fundamental, atendendo aos indicadores apontados pelo diagnóstico levantado pelo Plano Decenal, e concretizando suas diretrizes. Entendemos que a pertinência de uma referência curricular para o país está na garantia ao direito de todo aluno brasileiro de usufruir do conjunto de conhecimentos cientificamente elaborados e historicamente acumulados que, articulados com o respeito às características regionais, sejam imprescindíveis ao exercício efetivo da cidadania. (Paulo Renato Souza apud CURY, 2002, pp. 190-191)

Apesar da falta de clareza dos dirigentes do MEC, cujo Ministro parece não compreender como atribuição legal do CNE, e não de seu Ministério, o estabelecimento das diretrizes nacionais, Cury argumenta que o texto final dos PCNs jamais poderia traduzir a intenção da legislação de se determinar um conteúdo mínimo para orientar os currículos da educação nacional. Diferentemente do que seriam as diretrizes, o texto dos PCNs contempla proposições éticas gerais, orientações metodológicas (sobretudo de trabalho inter e transdisciplinar), conteúdos específicos das disciplinas escolares e outros chamados de transversais. O mais importante, todavia, é que sua redação explicitamente anuncia não ter o caráter de obrigatoriedade, elemento distintivo das diretrizes segundo a prescrição constitucional. Portanto, apesar de pretenderem ser, conforme afirmou o Ministro Paulo

Renato, os PCNs não eram, de fato, o cumprimento do previsto na Constituição – o estabelecimento de conteúdos mínimos à educação nacional.

Daí se compreende o movimento do CNE após a publicação dos PCNs: a tentativa de estabelecer concretamente as DCNs, com os aspectos formais compatíveis com o que estava previsto legalmente, sem, por outro lado, contrariar todo o debate suscitado pela publicação dos parâmetros. De acordo com Cury:

Em que pesem a importância dos PCNs e a legítima função do executivo federal em propô-los, como decorrentes de um programa de governo, ainda que sem obrigatoriedade, a Câmara de Educação Básica [órgão do CNE], depois de amadurecida reflexão em torno de competências estabelecidas e à luz dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais existentes, entende que sua função deliberativa se volta para as diretrizes, que devem fundamentar a fixação de conteúdos mínimos para o ensino fundamental, assim como para qualquer proposta curricular, nos diferentes níveis possíveis: estaduais, municipais e os cabíveis às unidades escolares. (CURY, 2002, pp. 192-193, grifos do autor)

A LDB, ao reforçar a necessidade de existência dessas diretrizes, aponta também que sua construção deveria contar com a colaboração dos executivos das várias esferas, integrados supostamente em um movimento amplo de debates na sociedade. Essa esperada colaboração na estruturação das DCNs foi marcadamente o expediente utilizado para a produção dos PCNs, ficando as diretrizes restringidas aos debates na Câmara de Educação Básica do CNE. De qualquer maneira, a distinção entre parâmetros e diretrizes, segundo Cury, terminou por aniquilar a ideia concreta de existência de um “currículo mínimo” (CURY, 2002, p. 195). Essa sugestão fundamenta-se, por um lado, na possibilidade de que cada ente federativo elabore o seu próprio parâmetro curricular (como fez a União) à luz das diretrizes nacionais, e, de outro, na necessidade de que cada unidade escolar (ou sistema público) desenvolva seu projeto político pedagógico. Assim, conclui o autor, fica claro que as práticas pedagógicas efetivas gozam de clara autonomia diante do estabelecido diretamente pelas diretrizes nacionais.

Esse histórico de construção articulada dos PCNs e DCNs (compostos entre 1997 e 1998) foi alvo de um número grande de contestações, entre as quais destacamos: 1 – as relativas a seu escopo teórico em articulação com o contexto político do Brasil; 2 – as objeções referentes ao método de construção, por ser pouco participativo; 3 – a tendência de articulação entre o estabelecimento de componentes curriculares e a avaliação. Essa controvérsia esteve apoiada em muitos organismos da sociedade civil, congregando o movimento docentes das diversas redes públicas e também pesquisadores universitários. Para efeito de organização da nossa pesquisa, iremos explorar neste capítulo apenas as duas primeiras, pois são importantes na construção de uma visão geral sobre as políticas

educacionais do período. As questões referentes à articulação entre esses componentes do universo curricular com as políticas de avaliação estarão melhor exploradas na seção dedicada ao Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Assim, é importante ressaltar, que sobre as diretrizes e parâmetros formulados durante o governo Cardoso, incidiram fortemente os condicionantes hegemônicos do neotecnicismo. Sem destoar da resenha que fizemos, Ciavatta e Frigotto assim definiram a visão pedagógica dominante no processo de formulação dos PCNs e DCNs:

Trata-se de uma perspectiva pedagógica individualista, dualista e fragmentária coerente com o ideário da desregulamentação, flexibilização e privatização e com o desmonte dos direitos sociais ordenados por uma perspectiva de compromisso social coletivo. Não é casual que a ideologia da empregabilidade esteja no centro dos parâmetros e das diretrizes educacionais e dos mecanismos de avaliação. (CIAVATTA e FRIGOTTO, 2003, p. 108)

Analisando o texto das DCNs, aprovado em 1998, o artigo 2º propõe o amparo, na organização curricular das escolas, de dois conjuntos de valores. O primeiro deles se reporta à vida em sociedade, destacando os fundamentos da cidadania contemporânea em suas dimensões de respeito aos “direitos e deveres”, ao “bem comum” e à “ordem democrática”. O segundo está relacionado aos valores humanos gerais, como os “vínculos de família”, a “solidariedade humana” e a “tolerância recíproca” (BRASIL, 1998b).

Apesar da previsão legal de elaboração de uma política de Estado, cujo traço emblemático é a busca de perenidade, o texto das DCNEM possui embasamento teórico inspirado pelo modismo pós-moderno. Das questões mais abrangentes a que fizemos referência, foi derivado um rol de princípios “estéticos, políticos e éticos” traduzidos, respectivamente, pelas alíneas I, II e III. Essa organização dos princípios não se deve ao acaso e nem constitui uma abordagem completamente original, encontrando amparo, por exemplo, entre as argumentações do paradigma ético-estético de Félix Guattari (1992, p. 21).

Essa proposição acompanha o movimento geral do pós-modernismo de sobrevalorização da dimensão cultural nas experiências humanas, reforçando a subordinação dos demais componentes da vida social e intelectual e sustentando o relativismo em contraste com a, presumidamente inepta, tradição cientificista. Conforme provoca o autor, o inconsciente e a histeria teriam sido produto da “invenção” da psicanálise por Freud, tanto quanto o romantismo teria inventado um amor de novo tipo e o “bolchevismo” o sentimento de classe (GUATTARI, 1992, p. 21). Com a centralidade no subjetivo, a estética, segundo o autor, seria um componente indissociável da criatividade humana – elemento presente em toda ação ou reflexão da humanidade (GUATTARI, 1992, p. 137).

Dessa forma, notamos no texto das DCNEM a seguinte redação referente ao universo da estética:

I – a Estética da Sensibilidade, que deverá substituir a da repetição e padronização, estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado, e a afetividade, bem como facilitar a constituição de identidades capazes de suportar a inquietação, conviver com o incerto e o imprevisível, acolher e conviver com a diversidade, valorizar a qualidade, a delicadeza, a sutileza, as formas lúdicas e alegóricas de conhecer o mundo e fazer do lazer, da sexualidade e da imaginação um exercício de liberdade responsável. (BRASIL, 1998, s/p)

Apesar de breve, esta citação contém uma ampla gama de elementos para análise. Ressaltamos, primeiramente, a presença da tríade estética, ética e política derivada do novo paradigma de Guattari e do ideário pós-moderno. Não é demais reforçar que o social- liberalismo – doutrina que lastreava tanto o programa do governo Cardoso quanto o movimento “Todos pela Educação”, impulsionado pela UNESCO e por seu associado relatório Delors – possui diálogos com a tradição intelectual pós-moderna. Estudando autores como Luc Ferry e Terry Eaglaton, a pesquisadora Rose Meri Trojan sustenta que os pensadores pós-modernos estimularam uma importante alteração de sentido para a palavra estética. De acordo com a autora:

Essa nova estética, característica da cultura contemporânea e decorrente do processo de reorganização produtiva, identifica-se com o individualismo e relativismo absolutos, associados às teses do “cada um por si” e do “vale-tudo”. É esta retomada do individualismo na filosofia, inaugurada por Nietzsche, na qual “não existem fatos”, mas somente “interpretações”, que podemos compreender (…) como um “subjetivismo total” ou um “relativismo absoluto”. Já não existe “verdade”, apenas existem “verdades”, interpretações singulares. (TROJAN, 2004, p. 7)

Dessa forma, nota-se, subsumida ao texto, uma forte presença de valores ideológicos não explícitos. Ademais, Trojan também sugere uma correlação entre a opção pelas diretrizes pós-modernas e a visão dominante quanto às transformações econômicas e produtivas, revelando aspectos muito presentes no discurso dos defensores da pedagogia neotecnicista. Fundamentalmente, as DCNEM não desejam convencer as escolas a adotarem em suas práticas o ideário pós-moderno por força da ideologia e de seus argumentos fundamentais,

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