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Raízes históricas e religiosas da secularização

3 CUSTÓDIA E SECULARIZAÇÃO

3.1 SOBRE O CONCEITO DE SECULARIZAÇÃO

3.1.1 Raízes históricas e religiosas da secularização

Berger (1985) aponta o processo de desencantamento do mundo como um dos fatores elementares para a construção de um mundo secularizado. Um fenômeno resultante do pro- cesso de racionalização14 pela qual algumas religiões teriam experimentado. Neste sentido, este autor referencia o judaísmo do Antigo Testamento e a religião cristã, mais especificamen- te em seu viés protestante do século XVII, como as raízes históricas do processo de seculari- zação na sociedade ocidental.

No primeiro caso, é possível identificar o rompimento da religião judaica com as cul-

turas cosmológicas no Oriente Médio, as quais são definidas por Berger (1985, p. 126) como

aquelas em que há a crença de uma continuidade entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses. Nelas, os rituais praticados pressupunham uma união permanente dos acontecimentos humanos com as forças divinas. Este desprendimento, portanto, pode ser evidenciado pelo estabelecimento de uma racionalização imposta a toda a vida social israelita, além da demar- cação histórica dos principais acontecimentos (Êxodo e a Páscoa) que fundaram não só esta sociedade, mas também a religião judaica (BERGER, 1985). Estes fatos, portanto, poderiam ser localizados numa referência temporal concreta, apesar de ainda evidenciar a atuação divi- na, mas, mesmo assim, localizável historicamente no processo formativo dessa civilização.

A produção de uma lei, no caso a Torah, pode ser igualmente indicada como um ele- mento racionalizante da vida social israelita. A partir da existência e aplicação desse código

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“Na sociologia de Weber, racionalização teórica significa e implica intelectualização” (PIERUCCI, 2013, p. 14).

jurídico/religioso foi possível estabelecer uma rígida disciplina a todos os que estivessem in- seridos nesse contexto, enquadrando toda a vida social juntamente com as atividades cotidia- nas no serviço a Deus.

A partir dessa legislação, a racionalização alcançou também toda a atividade religiosa exercida pelos sacerdotes. Seguindo o que estava prescrito no decálogo, as autoridades religi- osas deveriam excluir todo elemento mágico e orgiástico presente nos principais ritos religio- sos das culturas canaanitas15 (BERGER, 1985, p. 133). Uma busca clara de simplificar de forma racional todas as atividades religiosas. A própria instituição do monoteísmo evidencia esse caráter simplificador, a partir de uma aliança firmada pelo cumprimento diligente de uma lei estabelecida divinamente.

A emergência, construção e expansão da religião cristã deu continuidade à racionali- zação iniciada no judaísmo velho testamentário. O aspecto ético e a simplificação do culto cristão primitivo pode evidenciar isso. No entanto, a formação e o fortalecimento da Igreja Católica Apostólica Romana na Idade Média alterou, em parte, este caráter racional da reli- gião cristã. A reverência aos mortos, a referência e a recorrência aos santos, bem como a ado- ração à Maria podem ser indicativos de um retorno a magia no culto cristão. Berger (1985, p. 134) afirma que essa condução assumida pelo catolicismo foi um processo de “remitologiza- ção” no cristianismo. Este autor ainda afirma que

A nível teórico, pode-se dizer que a visão católica da lei natural representa uma “renaturalização” da ética; num certo sentido, seria um retorno à conti- nuidade divino-humana do ma´at do qual Israel saiu para o deserto de Ia- weh. A nível prático, a piedade e a moral católicas proporcionavam um tipo de vida que tornava desnecessária qualquer racionalização radical do mundo. (BERGER, 1985, p. 135).

O potencial secularizante no mundo ocidental, entretanto, ganhou novo impulso, com a sistematização e simplificação do culto e da teologia desenvolvida na Reforma Protestante, a partir do século XVI. A volta da valorização das leis ligadas ao decálogo e a racionalização da teologia pode ser encarada como exemplos da contribuição do protestantismo ao processo de secularização.

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A respeito desses rituais Silva (2008, p.115) afirma o seguinte: Assim, os cultos canaanitas eram festividades,

na maioria das vezes, cheias de orgias, que envolviam homossexualismo, pedofilia, sacrifício de crianças e mulheres virgens, auto-mutilação, sadismo, tortura de animais, etc.

Seguindo Weber, Pierucci (1998) afirma que o desencantamento do mundo foi criado pelo judaísmo antigo, mas foram os puritanos os verdadeiros promotores e seus radicais e autoconfiantes portadores. Aquele sociólogo, aliás, já afirmava que o capitalismo tem suas raízes no protestantismo, principalmente por este defender um ascetismo religioso não sepa- rado da vida em sociedade, mas inserido nela.

Além do mais, esta vertente do cristianismo revigorou o processo de distinção das es- feras de atuação das instituições políticas (Estado) e das religiosas (Igreja). Aliás, esta caracte- rística tem sido um elemento essencial para a compreensão do processo de secularização. Ne- la, as organizações políticas passaram a funcionar independentemente da autoridade religiosa. No entanto, esse processo não foi abrupto e simultâneo em todas as regiões da Europa. Em Portugal, por exemplo, o entrelaçamento das duas instituições pode ser evidenciado no siste- ma conhecido como Padroado – que será discutida no próximo capítulo.

Concomitantemente a esta conjuntura, a secularização foi experimentada, igualmente, no ambiente jurídico. Desta feita, o direito desenvolvido no período moderno passou por um processo que Weber conceitua como sublimação. Sobre isto, Pierucci cita este autor:

Esta sublimação levou ao resultado que hoje conhecemos, a saber, ao forma- lismo jurídico, que é, afinal, o que possibilita ao aparato jurídico ‘funcionar feito uma máquina técnico-racional (...) sintetiza Weber com metáfora da máquina que diz tudo’. (PIERUCCI, 1998, p. 15).

O mesmo autor continua munindo-se de um breve comentário de Catharine Colliot-Thélène que diz

A estrutura que comanda a evolução recente das doutrinas jusnaturalistas (...) é a parente próxima da estrutura do desencantamento: levanta-se o véu que cobria a realidade do direito, do mesmo modo como se retira o encanto que escondia das gerações anteriores a prosa do mundo terrestre. No breve perí- odo de um século, em poucas décadas, o conceito de direito repete em escala reduzida o processo de dessacralização e de redução da transcendência que é em si mesmo o processo de engendramento da modernidade. (...) Se o direito natural era a única forma de legitimidade que restava, uma vez desaparecida a crença nas revelações religiosas ou na santidade da tradição, a legalidade, por sua vez, é o que resta da legitimidade do Estado racional quando os valo- res sobre os quais esta legalidade repousava originalmente perderam seu po- der de convicção. (COLLIOT-THÉLÈNE, 1992 apud PIERUCCI, 1998, p. 18).

Neste sentido, a secularização permitiu a liberação das instituições político-jurídicas das regências estabelecidas pela autoridade religiosa, nas quais podem ser encontradas no monopólio exercido pela Igreja Católica e também pelas Protestantes em certas regiões do mundo ocidental no período moderno. A realidade social, portanto, não estaria sendo ordena- da primária e fundamentalmente pelas revelações e ditames de um ser divino representado por agentes de uma determinada instituição religiosa, mas pelas normas técnicas e teóricas estabe- lecidas pelo direito e estado laico que funcionam não por eclesiásticos, mas por juristas pro- fissionalizantes.

Em Weber, secularização estaria vinculada no desenvolvimento da Sociologia do Di- reito, na qual o termo está associado à própria enunciação ou codificação da norma jurídica e, por consequência, da regulamentação por códigos escritos de setores crescentes de atividade do sujeito individual e das relações entre indivíduos e grupos, que progressivamente vão dei- xando de ser regidos com base na crença no direito extracotidianamente revelado por imagi- nários poderes supra-sensíveis aos magos, sacerdotes e profetas (PIERUCCI, 2008, p. 12).