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Lembro-me de que, quando era garoto, costumava ver os filmes do Tarzan no sábado. O Tarzan branco costumava bater nos nativos pretos. Eu ficava sentado gritando: “mate essas bestas, mate esses selvagens, mate-os!”. Eu estava dizendo: “Mate-me!”. Era como se um menino judeu assistisse aos nazistas levando judeus para campos de concentração e isso o alegrasse.

Hoje, eu quero que o nativo vença o maldito Tarzan e o envie de volta à Europa. Mas é preciso tempo para se libertar das mentiras e seus efeitos destrutivos nas mentes pretas. Leva tempo para rejeitar a mentira mais importante: que as pessoas pretas inerentemente não podem fazer as mesmas coisas que as pessoas brancas podem fazer a menos que as pessoas brancas as ajudem.49

A ciência tem o poder de produzir um discurso de autoridade, que poucas pessoas têm a condição de contestar, salvo aquelas inseridas nas instituições em que a ciência é produzida. Isso menos por uma questão de capacidade, e mais por uma questão de autoridade. É da natureza da ciência produzir um discurso autorizado sobre a verdade. A propósito, a reflexão de Eginardo Pires, para quem

[…] uma ideologia conservadora impera não apenas pela força de seus argumentos, mas também pelos recursos materiais de que dispõem as forças a quem ela serve, quando se trata de excluir ou limitar a presença dos que sustentam teses opostas, nos lugares onde se realiza a atividade social de produção e difusão de conhecimentos.52

Por isso, não se pode desprezar a importância dos filósofos e cientistas para construção do colonialismo, do nazismo e do apartheid.

O racismo é, no fim das contas, um sistema de racionalidade, como nos ensina o mestre Kabengele Munanga ao afirmar que o

“preconceito” não é um problema de ignorância, mas de algo que tem sua racionalidade embutida na própria ideologia.53

No caso do Brasil, o racismo contou com a inestimável participação das faculdades de medicina, das escolas de direito e dos museus de história natural, como nos conta Lilia Schwarcz em seu livro O espetáculo das raças.54 Já no século XX, na esteira do Estado Novo, o discurso socioantropológico da democracia racial brasileira seria parte relevante desse quadro em que cultura popular e ciência fundem-se num sistema de ideias que fornece um sentido amplo para práticas racistas já presentes na vida cotidiana. No fim das contas, ao contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade.55

Sobre o racismo científico e a relação entre raça e biologia, o desenvolvimento do capitalismo e os avanços tecnológicos da sociedade industrial fizeram emergir um tratamento mais sutil, mais

“fino”, da questão racial, como nos demonstra Fanon em “Racismo e cultura”.56

A substituição do racismo científico e do discurso da inferioridade das raças pelo “relativismo cultural” e pelo “multiculturalismo” não se explica por uma “revolução interior” ou por uma “evolução do espírito”, mas por mudanças na estrutura econômica e política que exigem formas mais sofisticadas de dominação. O incremento das

técnicas de exploração econômica é acompanhado de uma evolução das técnicas de violência e opressão, dentre as quais, o racismo.

Como ensina Fanon,

[…] a evolução das técnicas de produção, a industrialização, aliás limitada, dos países escravizados, a existência cada vez mais necessária de colaboradores impõem ao ocupante uma nova atitude. A complexidade dos meios de produção, a evolução das relações econômicas, que, quer se queira quer não, arrasta consigo a das ideologias, desequilibram o sistema. O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de exploração brutal dos braços e pernas do homem. A perfeição dos meios de produção provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem, logo, das formas de racismo.57

Em uma sociedade que se apresenta como globalizada, multicultural e constituída de mercados livres, “o racismo já não ousa se apresentar sem disfarces”.58 É desse modo que o racismo passa da destruição das culturas e dos corpos com ela identificados para a domesticação de culturas e de corpos. Por constituir-se da incerteza e da indeterminação, é certo que o racismo pode, a qualquer momento, descambar para a violência explícita, a tortura e o extermínio. Porém, assim que a superioridade econômica e racial foi estabelecida pela desumanização, o momento posterior da dinâmica do racismo é o do enquadramento do grupo discriminado em uma versão de humanidade que possa ser controlada, na forma do que podemos denominar de um sujeito colonial.

Em vez de destruir a cultura, é mais inteligente determinar qual o seu valor e seu significado.

Para Fanon, nesse estágio “o rigor do sistema torna supérflua a afirmação cotidiana de uma superioridade”.59 O que Fanon chama de

“rigor” pode ser entendido como a capacidade do sistema econômico e político absorver de modo cada vez mais eficiente os conflitos, inclusive os raciais. Mesmo que possam ser consideradas perigosas, pois oferecem possibilidades contestadoras de leitura de mundo e da ordem social vigente, as culturas negra ou indígena, por exemplo, não precisam ser eliminadas, desde que seja possível tratá-las como

“exóticas”. O exotismo confere valor à cultura, cujas manifestações serão integradas ao sistema na forma de mercadoria. Desse modo, o

cinema, a literatura, a música e as artes plásticas não precisam negar a existência do racismo; pelo contrário, produções artísticas de grande repercussão tratam do racismo e do sofrimento por ele provocado de modo direto. Não é apenas extirpando a cultura que o racismo se apresenta, mas “desfigurando-a” para que a desigualdade e a violência apareçam de forma “estilizada”, como “tema de meditação” ou “peça publicitária”60, e possam assim ser integradas à normalidade da vida social.

A permanência do racismo exige, em primeiro lugar, a criação e a recriação de um imaginário social em que determinadas características biológicas ou práticas culturais sejam associadas à raça e, em segundo lugar, que a desigualdade social seja naturalmente atribuída à identidade racial dos indivíduos ou, de outro modo, que a sociedade se torne indiferente ao modo com que determinados grupos raciais detêm privilégios.