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Do racismo e da sociedade totalitária: como o conceito de raça fomenta o poder do movimento totalitário

No documento O paradigma biopolítico da modernidade (páginas 30-33)

«Temos uma só tarefa, levar adiante a luta racial sem dó nem piedade.» Himmler

Na era imperialista, que compreende o período que vai de 1884 a 1914, a expansão era tida como o objectivo supremo e permanente da política. Para que a expansão se alcançasse em plenas condições, o próprio imperialismo exigia a invenção do racismo para a justificação dos seus actos. Foi assim que neste período surgiu um novo mecanismo de organização política e de domínio dos povos, a saber, a raça. Esta era, então, o princípio da estrutura política e a fuga

para a irresponsabilidade desprovida de qualquer aspecto humano. Assim, e apesar de o racismo ter sido criado na era imperialista, Hitler foi o mais eficaz de todos os homens a usar o princípio hierárquico do racismo – soube como usar a afirmação anti-semita da existência de um povo que era o pior de todos, sendo que o objectivo final era organizar o melhor de todos. Ainda com Hitler, percebe-se facilmente uma das principais diferenças entre o antigo governo pela burocracia e o moderno governo totalitário. No primeiro modelo, antes da Primeira Guerra Mundial, contentavam-se com a ociosa irradiação de poder, e obviamente, satisfeitos por controlar os seus destinos exteriores, deixavam intacta toda a vida espiritual interior. Ao invés, no segundo modelo, conhecendo-se melhor o valor do poder absoluto, interfere de igual forma quer com a vida exterior do indivíduo, quer com a interior. Portanto, neste caso, extinguiu-se a espontaneidade dos povos sob o domínio totalitário.

Regressando de novo ao caso específico dos judeus, após o declínio do Estado-nação, estes tornaram-se a “escória” da terra. O objectivo era transformá- los em mendigos sem identificação, sem nacionalidade, sem dinheiro e sem passaporte. Ora, isto foi o início da perseguição aos judeus alemães pelos nazis. Foi feita uma grande propaganda neste sentido e com as palavras acima mencionadas, cujo objectivo era espalhar o anti-semitismo entre os povos que simpatizavam com os judeus. Na realidade este tipo de propaganda funcionou na perfeição, não apenas porque fazia dos judeus o “refugo” da terra, mas também porque a maior parte das pessoas inocentes consideravam certas as únicas afirmações dos movimentos totalitários, de que não existiam direitos humanos alienáveis, ao contrário das afirmações das democracias que revelavam hipocrisia e cobardia. Deste modo, a expressão «direitos humanos» tornou-se uma irreflectida falsidade.

Os próprios nazis começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda a condição legal (isto é, da condição de cidadão de segunda classe) e separando-os do mundo para os juntar em guetos e campos de concentração; e, antes de accionarem as câmaras de gás, haviam percebido e verificado, para sua satisfação, que nenhum país reclamava aquela gente22.

22

A privação dos direitos humanos manifesta-se na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a acção eficaz. Os direitos de cidadão estão em jogo quando um homem deixa de pertencer à comunidade em que nasceu. Aqui perdem-se todos os direitos do homem, algo mais fundamental que a liberdade e a justiça, visto que ele não é privado da liberdade, mas sim do direito à acção. Assim, o mais nefasto é a perda da comunidade, pois é por aqui que o homem é expulso da Humanidade.

Os crimes contra os direitos humanos, especialidade dos regimes totalitários, podem sempre justificar-se pela desculpa de que o direito equivale ao que é bom ou útil para um todo, em contraste com as suas partes23.

Ao abordar a questão do racismo nestas condições, torna-se pertinente e necessário tratar do racismo de Estado, uma vez que foi usado de forma acentuada pelo nacional-socialismo. Na perspectiva de Michel Foucault, no final do século XIX dá-se o aparecimento do racismo de Estado, que é um racismo biológico e centralizado. Este tipo de racismo foi profundamente utilizado nas estratégias específicas do século XX. Foram precisamente os nazis que souberam utilizar na perfeição este racismo de Estado.

A transformação nazi, que retoma o tema, instalado no final do século XIX, de um racismo de Estado encarregado de proteger biologicamente a raça. Porém, esse tema é retomado, convertido, de certa maneira, no modo regressivo, de forma a reimplantá-lo e a fazê-lo funcionar, no interior de um discurso profético que era precisamente aquele em que aparecera outrora o tema da luta das raças. É assim que o racismo irá reutilizar toda uma mitologia, popular e quase medieval, para fazer funcionar o racismo de Estado numa paisagem ideológico-mítica que se aproxima da paisagem das lutas populares, que puderam, num determinado momento, apoiar e permitir formular o tema da luta das raças. E é assim que o racismo de Estado, na época nazi, irá ser acompanhado por toda uma série de elementos e conotações, como, por exemplo, os da luta da raça germânica subjugada durante certo tempo por aqueles vencedores provisórios que foram sempre, para a Alemanha, as potências económicas, os eslavos, o tratado de Versalhes, etc. (…) Portanto, reconversão ou reimplantação, reinscrição nazi do racismo de Estado na lenda das raças em guerra24.

23

Cf. Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 396.

24

Cf. Michel Foucault, É preciso defender a sociedade, Curso no Collège de France (1975-1976), Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006, p. 94.

1.3. As manifestações totalitárias como formas de opressão política: ideologia

No documento O paradigma biopolítico da modernidade (páginas 30-33)