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Ramificações digitais e os mecanismos de pós-produção

Capítulo 1. As raízes modernistas da arte em redes sociais e a desmaterialização do objeto artístico:

1.4 Ramificações digitais e os mecanismos de pós-produção

A filosofia encara os anos oitenta como um redemoinho de incertezas no mar bravio do capitalismo; a crise econômica da década anterior mutilara os investimentos de bem estar social em alguns países europeus, a música se rendia a equipamentos cada vez mais sintéticos, o HIV se espalhava pelo mundo e a arte antevia o renascimento da pintura em tela após quase três décadas de experimentações diversas. Talvez a já comentada morte da arte tenha desenfreado temores nos museus e galeristas, de modo que a produção material da época aconteceu de forma estrondosa e muitas galerias importantes como a Gagosian10 e a Saatchi Gallery11 se estabeleceram a partir das obras acumuladas durante esse período.

Concomitantemente, o capitalismo se tornava informacional com o auxílio da indústria informática e a adoção dos bancos de dados; o dinheiro era contado a partir de dígitos na tela do computador, utilizado com cartões de crédito, e a revolução dos meios de comunicação da década de 50 agora transformava os lares em salas de lazer capitaneadas pela televisão, cuja imagem era formada por feixes de luz projetados num tubo. A informação tornara-se a nova moeda de troca capitalista, tanto nos avanços da ciência, como na economia e no setor de entretenimento. O eixo de atuação das forças de poder se deslocara dos meios puramente materiais também para um ambiente virtual, seguindo a arte. Há pouco tempo se soube que até mesmo Andy Warhol experimentara com a computer art através do Amica 100012, um computador pessoal já extinto. Embora continuasse imagem, a arte já estava desmaterializada por completo nos bytes que a compunham – ela poderia ser impressa e comercializada, o que ocorreu em diversas ocasiões, mas sua matriz fora para sempre modificada nesse sentido. A computer art se tornou web art13 (ou Arte em Rede, Arte da Rede) nos anos 90 com o advento da internet doméstica e ofereceu um novo leque de atuação para os artistas que já se aventuravam pela mídia eletroeletrônica. A real transposição ocorrida com essa nova fase da arte é que agora ela adentrava de vez o ramo da cibernética, incluindo a produção de imagens, som e vídeo digitais, ao passo que a produção agora poderia ser veiculada no ambiente virtual, tecnicamente ao alcance de todos que dispusessem dos aparatos para ganhar acesso.

10 http://www.gagosian.com/about/about-larry-gagosian 11 http://www.saatchigallery.com/gallery/intro.htm

12 http://edition.cnn.com/2014/04/24/us/andy-warhol-lost-art

O desdobramento mais atual da técnica artística com a internet se deu pós anos 90, mais precisamente devido às redes sociais, aplicativos online onde usuários criam um perfil e trocam informações diversas – textos, fotos, vídeos, etc. - com sua rede de contatos sempre em expansão. Ao mesmo tempo eles são produtores-atores e também consumidores. Para o artista, além de viabilizar um novo canal de comunicação, as redes sociais podem funcionar como ambiente de produção da própria obra, ampliando os suportes nos quais a arte pode ser feita. Essa nova forma de arte tornada possível pela internet aponta para uma mescla de comunicação e sociabilidade sem o intermédio de museus, galerias e não leva em consideração a pressão do mercado para a produção de obras. O artista fica livre para externar seu ímpeto criativo utilizando as subjetividades dessa comunicação colaborativa dos modos atuais de se viver, ao passo que a mensagem veiculada – intangível por sua natureza digital – encontra um meio desterritorializado para propagação e que suscita diferentes maneiras de interagir entre a obra e possíveis usufruidores. O ambiente plural da internet transforma a arte em informação enquanto dá seguimento à crise de representação ainda vigente, rompendo em definitivo com o ideal de contemplação do objeto puramente físico. A arte através das interfaces se constitui como um instrumento de crítica e de reflexão sobre a sociedade e os modos de produção da arte em si num ambiente de midiatização irrevogável.

As ideias que circulavam pela Arte Postal – via correio e de caráter material - também circulam pelas redes sociais, agora travestidas de avatares, interfaces em 3D, animações, vídeos e demais suportes que carregam esse intercâmbio de informações compartilhadas pelo caminho múltiplo e virtual da internet. O consumo de imagens pré-fabricadas originárias na Pop também continua, porém com uma velocidade de veiculação de dados impressionante, só possibilitada pelo desenvolvimento do aparato ultramarino de cabos de fibra ótica que conectam computadores aos servidores de internet, ao contrário da morosidade analógica vivida pelos artistas postais de antigamente. Essa maleabilidade na difusão, criação ou recriação das imagens já havia sido possibilitada com a vídeo-arte nascida nos anos sessenta, o que representou uma quebra na hierarquia entre produtores e consumidores de televisão a partir da criação do videoteipe, do Portapack e do videocassete para que as “possibilidades da televisão enquanto sistema expressivo viessem a ser exploradas por uma geração de artistas e

videomakers disposta a transformar a imagem eletrônica num fato da cultura do nosso tempo”

(MACHADO, 1988, p.9). Mesmo que essas experimentações tenham, num primeiro momento, sido feitas fora do circuito televisual oficial, elas serviram de função exploratória para que os artistas exprimissem suas inquietações em relação a estes novos meios de

comunicação disponíveis, a televisão e o vídeo, que haviam colocado novos problemas em relação à representação e aos conceitos estéticos até então vigentes.

Em seu livro ‘Pós-produção’, Bourriaud interpela leitores e artistas a utilizarem o vasto repertório imagético ao qual estamos submetidos e que continuamente se transforma. Segundo o autor, existem narrativas sociais e históricas – compostas de imagem, vídeo, som e a própria História – condicionantes à nossa percepção do mundo e da arte, e que devem ser modificadas pela figura do autor-consumidor, um personagem da contemporaneidade e que habita essa paisagem metamorfoseante em busca de retroalimentação para seu próprio consumo e criação. Desde a década de cinquenta, a produção de conteúdo midiático vem afetando o modo como nos relacionamos na esfera social, política, econômica e cultural, e a Pop Arte e a Arte Postal, ainda que essa teoria não tivesse sido postulada, já utilizavam elementos da pós-produção. Com a popularização dos meios de comunicação em massa, em especial a televisão, a sociedade midiatizada passou a sorver boa parte do material produzido através das atividades do dia a dia, ao passo que a virtualização do mercado financeiro – e, posteriormente, a arena cultural – foi, aos poucos, se transformando na grande realidade que ajudou a consolidar o capitalismo como a governança mundial. Se na primeira metade do século XX ainda estávamos ligados à materialidade do dinheiro e sua onipresença física, a partir da década de oitenta, com a informatização em massa dos meios de produção e também da comunicação, os dados computacionais se tornaram os agentes virtuais responsáveis pelo comércio e ditames da renovada paisagem cultural da época - agora regida pelo computador, ferramenta essencial de inclusão e consumo da modernidade. Se a arte moderna aspirava às tentativas de elaboração eterna da forma, com a arte contemporânea essa mesma forma se esvaía no ambiente intangível e impossivelmente mensurável da rede mundial de computadores. No universo da tela virtual, bits e bytes são manipulados, assim como todo e qualquer material disponível para acesso irrestrito, um território em constante expansão que é diariamente desenvolvido pelos seus utilizadores.

A internet maximiza os processos de pós-produção de Bourriaud por permitir a utilização de material invisível ao tato, real somente pela visão e audição dos internautas, também constituintes da arte em redes sociais. Os artistas desse ramo da arte contemporânea, que em momento algum se pretendem hegemônicos, são, em sua maioria, jovens e adultos cuja produção é pautada pelas ferramentas tecnológicas disponíveis em seu convívio diário. O território privilegiado para suas táticas criativas continua sendo a web, orientadas pela teoria

da pós-produção, pelo qual uma vasta gama de dados – entre material próprio e alheio – é manuseada para fazer arte.