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4.3 ENTRE OS NÚCLEOS E OS CREAS: CARTOGRAFANDO

4.3.1 Rastreio

Pode-se dizer que a atenção que rastreia visa uma espécie de meta ou alvo móvel. Nesse sentido, praticar a cartografia envolve uma habilidade para lidar com metas de variação contínua. Em realidade, entra-se em campo sem conhecer o alvo a ser perseguido; ele surgirá de modo mais ou menos imprevisível sem que saibamos bem de onde. Para o cartógrafo, o importante é a localização de pistas, de signos de processualidades. Rastrear é também acompanhar mudanças de posição, de velocidade de aceleração, de ritmo. O rastreio não se identifica a uma busca de informação; a atenção do cartógrafo é, em princípio, aberta e sem foco, e a concentração se explica por uma sintonia fina com o problema. (KASTRUP, 2010, p. 40). (Grifo meu).

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Já havíamos imaginado que cartografar o serviço das medidas socioeducativas em meio aberto nos CREAS já seria um grande desafio, considerando que existem cinco CREAS em Fortaleza. Contudo, a situação de Fortaleza, quanto ao tema, se mostrou bem diferente da realidade, já experimentada, de Sobral e de Paracuru. Nesses municípios de pequeno porte, o CREAS já foi instaurado com todos os seus respectivos serviços — Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI); Serviço Especializado em Abordagem Social; Serviço de Proteção Social Especial Para Pessoas com Deficiência, Idosos e Suas Famílias; Serviço Especializado Para Pessoas em Situação de Rua; Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA); Prestação de Serviços à Comunidade (PSC).

No município de Fortaleza, contudo, os CREAS funcionavam contando apenas com os primeiros quatro serviços, pois já existia uma operacionalização da medida de LA e PSC56, independente do CREAS, através de núcleos, divididos por áreas, as Regionais. Nossa capital se divide em seis Regionais, descritas no mapa.

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56Em 2005, a Prefeitura Municipal de Fortaleza iniciou a municipalização das MSE em meio aberto, tendo sido

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Fonte: Análise morfológica da Praia do Futuro, Fortaleza/CE. https://www.google.com.br/search?q=regional+fortaleza&rlz=1C1EODB_enBR572BR572&es_sm=93. Acesso 17 jan 2013.

Fonte: http://www.espiritismoemdebate.com.br/paginas_do_site/enderecos/ceara.html. Acesso 02 maio 2014.

Essa antiga formatação “dos núcleos” era disposta a partir da setorialização das

Regionais, de tal forma que, em cada Regional (com exceção da Regional IV) dispunha de um Núcleo de Liberdade Assistida. Assim, na Regional II havia o núcleo II e, assim respectivamente. Segundo o coordenador das medidas socioeducativas em meio aberto, como não havia núcleo na Regional IV, os socioeducandos que moravam naquele território eram distribuídos para outros núcleos das outras Regionais.

A medida de PSC era operacionalizada em um prédio no centro da cidade. Ou seja, existiam equipes de implementação da LA nos núcleos, nas citadas Regionais, e apenas uma equipe de implementação da PSC no Centro de Fortaleza, responsável por todos os adolescentes que cumpriam PSC no município.

Em 2012, diante da existência de cinco núcleos de LA e um de PSC, uma de nossas primeiras ações foi solicitar uma autorização à Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS) para que pudéssemos iniciar a pesquisa. Entregamos o ofício do mestrado, que foi protocolado e em seguida, ao ser apreciado, pudemos ter acesso às unidades. Antes mesmo de começarmos as visitas de fato, na sede da SEMAS, já ouvimos alguns funcionários em uma

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ouvir as falas que pontuavam um certo medo em relação a proposta da nova gestão, “o como ia ser”, não havíamos imaginado que essa transição fosse se fazer tão presente no campo.

Contudo, tivemos que nos deparar, também, com outro tipo de transição: o das unidades de atendimento de LA e PSC para os CREAS, seguindo a orientação da Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais57, que direciona o serviço de acompanhamento da medida em meio aberto — LA e PSC — como atividade dos CREAS. Assim, todo um conjunto de mudanças de metodologia de atendimento e de formatação do fluxo de acompanhamento socioeducativo, bem como de mudanças estruturais, inclusive do espaço físico, aconteceram e ainda estão acontecendo durante a pesquisa, para que o município de Fortaleza esteja de acordo com a “nova tipificação”; é como os profissionais se referem a ela:

“a nova” tipificação, apesar de já ter sido publicada no Diário Oficial da União em 2009.

Ao conversarmos com o coordenador das medidas socioeducativas em meio aberto de Fortaleza, fomos precavidas de que as unidades estariam nessa dupla transição, tanto pela gestão

como pelo fato de “temos que nos apressar para adequar as medidas o mais próximo possível do que orientada a tipificação”, relatou em uma de nossas conversas. Na ocasião, acrescentou que:

a rapidez também se deve à incerteza da disposição de funcionários, inclusive de seu cargo de coordenador por conta da mudança de prefeito. Alertou que não sabia como se daria a escolha dos novos técnicos e se mostrou preocupado se estes teriam afinidade e comprometimento; “um mínimo percurso nas medidas”58.

Com o decorrer da pesquisa, percebemos que parte desses temores se confirmaram: os técnicos, em sua maioria, foram desligados e substituídos por profissionais recém-formados e sem percurso na área social; apenas alguns poucos técnicos, “os antigos”, foram remanejados, bem como o citado coordenador, que foi despedido já que seu cargo não ela descrito na tipificação.

Dessa forma, o rastreio, como um movimento inicial da cartografia, nos convida a estabelecer um primeiro vislumbre, uma esboço de um traçado da realidade desse território. Quais seriam nossas primeiras impressões? O quê prematuramente se coloca que chama atenção ao nosso olhar? Quais os primeiros sinais de especificidade de algo? Qual o brilho que esse mundo das medidas cintila?

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57 Consiste no texto da Resolução n. 109, de 11 de novembro de 2009. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/

assistenciasocial/protecaobasica/cras/documentos/Tipificacao%20Nacional%20de%20Servicos%20Socioassiste nciais.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2013.

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Nossas primeiras impressões tiveram tom de reencontro, pois muitas falas, especialmente a do coordenador na medida, eram próximas à realidade vivenciada pela pesquisadora, enquanto ocupava as funções de educadora e de técnica nos municípios de Sobral e de Paracuru — vetor que não passou despercebido em nossa análise de implicação. Falas relativas à burocratização das práticas nas políticas públicas, da incerteza em manter o emprego devido à mudança de governante municipal, à insegurança quanto à continuidade do serviço, ao desafio da vinculação com os adolescentes, à dificuldade em fazer com que eles saíssem dessa vida de infração etc. Mas também fomos perpassados por sentimentos de estranhamento. Os atendimentos aos adolescentes em cumprimento de LA e PSC apresentava uma metodologia própria, eram realizados em núcleos–espaços de responsabilidade municipal, localizados nas Regionais do município e com uma equipe técnica normalmente composta por profissionais da psicologia, do serviço social, do direito e da pedagogia; todavia, não como um serviço do CREAS. Situação que estaria mudando, pois, como sinalizamos, Fortaleza estaria se adaptando às orientações da “nova” tipificação que já sinalizava que esse atendimento precisaria ser desenvolvido como um serviço do CREAS.