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Rastros de minha aproximação a Merleau Ponty – de que falo quando invoco a noção de

Inspirações e entrelaçamentos entre etnografia e fenomenologia experiência CORPORAL como pauta para a pesquisa

2.1 Rastros de minha aproximação a Merleau Ponty – de que falo quando invoco a noção de

experiência corporal

Nos estudos sobre o que Christine Greiner chamava Teorias do Corpo em seu livro Corpo: pistas para estudos (in)disciplinares (2005) encontrei pela primeira vez uma citação dos estudos de Thomas Csordas acerca da noção de embodiment. Fiquei interessada no autor, mas não encontrei livros ou textos disponíveis nas bibliotecas que eu frequentava na USP. Eu realizava a pesquisa de mestrado, tinha uma bibliograia diversiicada para dar conta e desisti de continuar a procurar seus textos. O livro dela se tornou um roteiro bibliográico que guiou outras buscas em torno de minhas inquietações da época que pareciam ter como intuito “provar” a centralidade da experiência corporal na formação da pessoa (segundo acepção de Marcel Mauss). Anos depois de terminado o mestrado, Thomas J. Csordas é trazido para a Argentina para um seminário pautado em sua relexão sobre a noção de embodiment. Cursando o seminário já durante a pesquisa de doutorado, descubro que Csordas é antropólogo e um estudioso da obra de Merleau-Ponty. Meu interesse já nascente pela interface entre antropologia e fenomenologia se torna assim mais consistente. Mas, além disso, o encontro com os textos de Csordas me faz retomar o estudo do ilósofo Maurice Merleau-Ponty.

A primeira vez que ouvi falar de Maurice Merleau-Ponty foi em aulas de Filosoia enquanto cursava o Ensino Médio. A professora estudava em sua pós-graduação o ilósofo, cujo nome foi a única lembrança que restou por alguns anos. Eu não imaginava como seus escritos e seus interesses sobre a imbricação corpo-mundo me mobilizariam futuramente.

Durante a graduação, em aulas de expressão corporal, improvisação, jogos teatrais, o convite constante era o de se perceber corporalmente no espaço e no encontro com os outros corpos. Esse estado de atenção e presença era uma busca mais do que uma conquista ou uma “coisa” dada. Era um mistério. O exercício dessa simultaneidade de focos de atenção (ao próprio corpo, aos outros corpos, ao espaço) contaminava a vida diária para além dos tempos e espaços da sala de aula. Paralelamente, no mesmo período – inal da década de 90 –, tenho o primeiro contato com O Olho e o Espírito e A dúvida de Cézanne, de Merleau- Ponty, cursando a disciplina “Exercícios do Olhar: uma fenomenologia da Arte”, ministrada pela Profa. Carmen Silva G. Aranha no MAC-USP. Além das leituras, ela nos convidava a um exercício de desenho de observação no cotidiano (fora dos horários de aula) sem aprendizados técnicos prévios. Ele se pautava em outro exercício para a escolha dos temas dos desenhos, que consistia em deixar-se inclinar ao mundo e perceber as inclinações do mundo em nossa direção. Minhas caminhadas cotidianas pelo campus da USP, que

era simultaneamente casa, espaço de estudo, de trabalho, espaço cultural, são transformadas por essa proposição. Os caminhos em calçamento da praça do relógio, a vista desde a janela da moradia estudantil, as formas simples de móveis dentro do pequeno apartamento saltavam diante de mim e eu os buscava. Havia uma sensualidade na relação entre as formas do corpo e do mundo.

É preciso que o pensamento de ciência – pensamento de sobrevôo, pensamento do objeto em geral – torne a se colocar num “há” prévio, na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por nosso corpo, não esse corpo possível que é lícito airmar ser uma máquina de informação, mas esse corpo atual que chamo meu [..]. É preciso que com meu corpo despertem os corpos associados, os “outros”, que não são meus congêneres, como diz a zoologia, mas que me frequentam, que frequento, com os quais frequento um único Ser atual, presente, como animal nenhum frequentou os de sua espécie, seu território ou seu meio. Nessa historicidade primordial, o pensamento alegre e improvisador da ciência aprenderá a ponderar sobre as coisas e sobre si mesmo, voltará a ser ilosoia [...] (MERLEAU-PONTY, 2004, p.14/15)

Esse excerto habitava a capa de meu caderno de desenhos de observação. Ele me faz lembrar que a experiência sensual-sensorial de palpação entre corpo e mundo já me mobilizava de modo intuitivo, que o encontro com esse

fragmento de texto fora um achado que manifestava algo de indizível para mim até aquele momento sobre a interação corpo-mundo. Aquele modo de abordar o ato do desenho foi a experiência mais marcante do curso e talvez a metáfora mais elucidativa em relação à fenomenologia de Merleau- Ponty. Ainda que boa parte dos pensamentos do ilósofo fosse insondável para mim naquele tempo, a ideia da frequentação ou do assédio1 entre os corpos no mundo era

signiicativa para mim, assim como as inclinações recíprocas entre corpo e mundo. Eu tinha fascínio pela vida do corpo no espaço, pelos encontros entre corpos nesse espaço; era como se encontrasse pela primeira vez reverberações desse fascínio em um ilósofo e uma ilosoia. Sua crítica ferrenha à ciência clássica já presente nesse fragmento ou à ilosoia relexionante (2003) seria mais compreendida apenas nos últimos anos.

Em 2000, tendo terminado a primeira graduação, inicio como ouvinte o curso de Filosoia Contemporânea com Carlos Alberto Moura (FFLCH-USP), tradutor da Fenomenologia da Percepção no Brasil. Seu curso tinha como texto base a própria obra, discutindo o projeto do ilósofo como necessidade de ruptura com os projetos clássicos da Ciência, da Psicologia e da própria Filosoia. Moura introduziu

1 A tradução desse texto lida por mim à época (na edição da Coleção Os Pensadores) usava o termo “assediar” e seus desdobramentos em vez de “frequentar”, presente na tradução de Claude Lefort editada pela Cosac Naif.

o curso apontando a ênfase que Merleau-Ponty teria dado à experiência da contingência como marca de sua época: nela tudo pode ser outro do que é, não sendo mais possível airmar a universalidade, seja em noções como a de sociedade orgânica, seja em ideias como a de “civilização europeia”2.

Nesse sentido, a ilosoia contemporânea precisaria dar perspectiva histórica ao racionalismo, deixar de tomar como dados certos pressupostos que Merleau-Ponty dizia fazerem parte da sociedade moderna espontaneamente cartesiana (1999). “O primeiro ato ilosóico seria então retornar ao mundo vivido aquém do mundo objetivo, já que é nele que poderemos compreender tanto o direito como os limites do mundo objetivo...” (p.89). Segundo o autor, tal movimento proporcionaria o reencontro dos fenômenos ou o retorno às coisas mesmas, projeto já anunciado por Husserl, e seria a fundação de uma nova ontologia. Com isso Merleau-Ponty propõe uma revisão das categorias, especialmente das do dualismo – natureza - psique, res cogitans - res extensa, sujeito - objeto, alma - corpo – em que não se encontram soluções nem no empirismo, nem no intelectualismo.

[...] enquanto o corpo vivo se tornava um exterior sem interior, a subjetividade tornava-se um interior sem exterior, um espectador imparcial. O naturalismo da ciência e o espiritualismo do sujeito constituinte universal, ao qual chegava a relexão sobre a ciência, tinham em comum o fato de nivelarem a experiência:

2 Anotações de aula, segundo semestre de 2000.

diante do Eu constituinte, os Eus empíricos são objetos. O Eu empírico é uma noção bastarda, um misto de em si e para si, ao qual a ilosoia relexiva não podia dar estatuto. Enquanto tem um conteúdo concreto, ele está inserido no sistema da experiência, não é portanto sujeito – enquanto ele é sujeito, é vazio e se reconduz ao sujeito transcendental. (idem, p.88)

Para Carlos Alberto Moura, a Fenomenologia da Percepção é esse tratado ontológico, que estuda a aparição do ser para a consciência (1999, p.96). Nele Merleau-Ponty delimita a noção de campo fenomenal em oposição à possível confusão ou impermeabilidade de um “mundo interior” e a de fenômenos em oposição a “estados de consciência” (1999, p.90). É por meio dos fenômenos que o mundo objetivo se torna perceptível, seus objetos se constituindo por meio dos fenômenos3 , assim: “A experiência dos fenômenos

não é, como a intuição bergsoniana, a experiência de uma realidade ignorada em direção à qual não há passagem metódica – ela é a explicitação ou o esclarecimento da vida pré-cientíica da consciência [...]” (idem, p.92). Desse modo, em pleno século XX, Merleau-Ponty retoma a abordagem da experiência como noção possível e fértil para a relexão no campo ilosóico. Mais ainda, é do substrato da experiência

3 Nesse ponto, Merleau-Ponty avança da noção de campo fenomenal para a noção de campo transcendental: “Essa palavra significa que a reflexão nunca tem sob seu olhar o mundo inteiro e a pluralidade das mônadas desdobradas e objetivadas, que ela só dispõe de uma visão parcial e de uma potência limitada.”, Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p.95.

corporal, de uma experiência imbricada entre corpo e mundo que o ilósofo parte. Da ação dos corpos como formas (espaços corporais) habitando espaços no mundo vivido se constituem uma espacialidade corporal e uma orientação no mundo. Nessa interface é que Merleau-Ponty conigura uma noção complexa de esquema corporal e de arco intencional, enfatizando nelas o engajamento constante entre corpo atual e mundo atual, no qual há sempre uma consciência, que é corpo, ocupada em apreender, uma intenção ainda vazia, mas determinada (ibidem, p.56)

Encaminhamo-nos então para uma segunda deinição do esquema corporal: ele não será mais o simples resultado das associações estabelecidas no decorrer da experiência, mas uma tomada de consciência global de minha postura no mundo intersensorial, uma “forma”, no sentido da Gestaltpsychologie. Mas essa segunda deinição, por sua vez, já está ultrapassada pelas análises dos psicólogos. Não basta dizer que meu corpo é uma forma, quer dizer, um fenômeno no qual o todo é anterior às partes [...] Frequentemente os psicólogos dizem que o esquema corporal é dinâmico. Reconduzindo a um sentido preciso, este termo signiica que meu corpo me aparece como postura em vista de uma certa tarefa atual ou possível. E com efeito sua espacialidade não é, como a dos objetos exteriores ou das “sensações espaciais”, uma espacialidade de posição, mas uma espacialidade de situação. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.145/146)

Eu vinha investigando desde o mestrado (CAON, 2012) por meio da observação em campo e de uma literatura de cunho sócio-antropológica (BENJAMIN, 1994; LARROSA, 2002; GEERTZ, 1989; TURNER, 2005) essa noção de experiência e de experiência corporal. Ao mergulhar no estudo de parte da obra de Merleau-Ponty (2004, 2003, 1999) tais noções ganham um solo ilosóico, ontológico que se entrelaça à dimensão histórica e cultural em que luem. Nesse sentido, Merleau-Ponty (2013) fala no assentamento das ideias (como essências operantes) em nossa experiência e dessa num mundo que existe anteriormente a nós – num espaço e tempo culturais ao qual pertencemos (somos internos a ele), nele nos constituímos como dimensões de uma mesma carne. Ao mesmo tempo, tensiona a existência das ideias num tempo cultural sem nele encerrá-las, dizendo que se o espaço e tempo da cultura não são sobrevoáveis, ao mesmo tempo, a comunicação entre culturas constituídas se daria naquela região selvagem em que nascemos, na dimensão do Ser Bruto e do parentesco que temos com todas as famílias de coisas e seres-no-mundo. Nas obras do im da vida, ele compõe essa noção de Ser Bruto, de uma ontologia selvagem, em que radicaliza sua formulação sobre aquela imbricação corpo-mundo já presente na Fenomenologia da Percepção. Multiplicam-se em seus textos palavras-experiências: inerência, reversibilidade, aderência, pregnância, quiasma, coexistência, entrelaçamento, como marcas de um pensamento operante sobre essa sinergia

corpo-mundo (2003). Há um corpo com essa dupla pertencença ao em si e ao para si, como direito e avesso. Há outros corpos, com os quais me encontro, para os quais olho, pelos quais sou olhado e graças aos quais sou plenamente visível ou tangível. E há um mundo que nos engloba, que habitamos e pelo qual somos habitados, que é o exterior do interior do corpo, para o qual somos o exterior de seu interior – dois círculos concêntricos, duas esferas, dois turbilhões, diz Merleau-Ponty (2003, p.135), levemente descentrados quando nos interrogamos.

Ainda uma vez: a carne de que falamos não é a matéria. Consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente, atestado sobretudo quando o corpo se vê, se toca vendo e tocando as coisas, de forma que, simultaneamente, como tangível, desce entre elas, como tangente, domina-as todas, extraindo de si próprio essa relação, e mesmo essa dupla relação, por deiscência ou issão de sua massa. Essa concentração dos visíveis em torno de um deles, ou esta explosão da massa do corpo em direção às coisas, que faz com que uma vibração de minha pela venha a ser o liso ou o rugoso, que eu seja olhos, os movimentos e os contornos das próprias coisas, esta relação mágica, este pacto entre elas e mim, pelo qual lhes empresto meu corpo a im de que nele possam inscrever e dar- me, à semelhança delas, esta prega, esta cavidade central do visível que é minha visão, estas duas ilas especulares do vidente e do visível, do palpador e do

palpado, formam um sistema perfeitamente ligado no qual me baseio, deinem uma visão em geral e um estilo constante da visibilidade de que não poderei desfazer-me, ainda que tal visão particular se revele ilusória, pois ico certo, então, de que, olhando melhor, teria tido a verdadeira visão, e que em todo o caso, aquela ou outra, sempre existe uma. A carne (a do mundo ou a minha) não é contingência, caos, mas textura que regressa a si e convém a si mesma. (idem, p.141/142)

Nesse excerto, como um auge de elaboração complexa sobre/de nossa (co)existência no mundo, penso que há uma síntese possível dos modos como Merleau- Ponty me inspira, nomeando fragmentos de experiências- pensamentos difíceis de armar. Marilena Chauí fala na relexão em outrem presente no percurso do autor não como “[...] apropriação intelectual do pensamento de um outro; é o modo como esse pensamento, por sua própria força e paradoxo suscita o de Merleau-Ponty. É o trabalho de reativação sobre a sedimentação.” (2002, p.46). Do mesmo modo, a relexão com ou em Merleau-Ponty me leva a aproximações e descentramentos, me fascina e me interpela, reativando questões e experiências. Em Merleau- Ponty me encontro em sua indagação contínua; em sua ilosoia em movimento corporal, em busca do que sejam as experiências dos seres-no-mundo, nossos modos encarnados de perceber, estar-no-mundo e inaugurar

sentidos nele. Fascinam-me suas metáforas intercorpóreas numa ilosoia sensual, erótica. Como ilósofo que toma a ação artística ou o ato criativo como possível ilosoia, reencontro ainda nele minha hipótese de um corpo, cujos movimentos e ações são pensamento, são outros modos de elaboração sobre o mundo, que não apenas sua objetivação em forma de discurso verbalizado e/ou racionalizado. “Ora, essa ilosoia por fazer é a que anima o pintor, não quando exprime opiniões sobre o mundo, mas no instante em que sua visão se faz gesto, quando, dirá Cézanne, ele “pensa por meio da pintura”.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.33).