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CAPÍTULO II A CONSTITUIÇÃO DE UMA PERFORMANCE

2.3 O CORPO COMO OBJETO DE ARTE

2.3.3 As razões do nu para os modelos vivos

Se o nu ainda é um tabu na contemporaneidade, há quem queira percorrê- lo. Conforme Hollivier (2019), a nudez no fazer artístico se dá através de sete razões da nudez, antropológica; filosófica; histórica; moral; política e técnica. Acreditamos que as razões se engendram e que, por isso, não pretendíamos categorizá-las, mas sim descrever os porquês da nudez dos modelos. Embora a palavra ‘razão’ implique aprioristicamente uma questão pragmática, as respostas claramente apontaram os sentidos do ficar nu para os modelos, considerando a temporalidade das vivências compartilhadas pelo oferecimento ao olhar do outro quando se é modelo vivo, ou seja, descrever a composição espaço-tempo de ser modelo vivo.

Ainda que a razão ‘religiosa’ e histórica não tenham sido demonstradas explicitamente, consideramos que estejam presentes, pois, de acordo com Hollivier (2019), existe a potencialidade da nudez nestas duas ‘razões’ e ela foi utilizada com fins religiosos como foco de atenção. Sobre a nudez, o autor vai dizer que:

Segundo o filósofo contemporâneo Giorgio Agambem (2009, p. 73) a nudez, na nossa cultura, é inseparável de uma marca teológica. De acordo com a narrativa do Génesis, Adão e Eva só se dão conta de estarem nus após o pecado que cometem. Embora não estivessem vestidos com traje algum, segundo os teólogos, antes do pecado eles se vestiam de um traje glorioso, um traje de graça e de luz, que é perdido após o pecado. Sendo assim, por motivos que confrontem aos religiosos ou por reafirmações essencialmente humanas da nudez, as razões que levam o trabalho da observação da figura humana acontecer com os modelos vivos nus estão intimamente ligadas às relações religiosas da sociedade (HOLLIVIER, 2019, p. 44).

Quando considera a razão histórica, Hollivier (2019) formula que o nu surgiu como forma de arte na Grécia antiga (séc. V a.C.), visando o aproveitamento visual de formas anatômicas. Em seguida, Hollivier escreve que:

Na arte renascentista, com Rafael, Michelangelo, Alberti e Pisanello, o trabalho de estudo da figura humana continuou sendo feito a partir de modelos vivos nus, ainda que as obras finais fossem entregues com as figuras vestidas, as vestimentas eram normalmente postas depois do estudo feito a partir dos modelos vivos nus. As fases que se seguiram continuavam desta mesma maneira, se estendendo até os dias de hoje. Algo que era praticado desde o séc. V a.C, devido ao aproveitamento educacional da observação de corpos nus, provavelmente não necessitaria mudar por questões morais ou religiosas, considerando que o entendimento da figura humana e a sua representação se prejudicariam se feitos a partir de pessoas vestidas. Sendo assim, por motivos que confrontem aos religiosos

ou por reafirmações essencialmente humanas da nudez, as razões que levam o trabalho da observação da figura humana acontecer com os modelos vivos nus estão intimamente ligadas às relações religiosas da sociedade (HOLLIVIER, 2019, p. 46).

Destarte, a perspectiva de Merleau-Ponty (2006) de um corpo fenomenal enraizado no mundo, um corpo constructo histórico, um corpo dotado de subjetividade e que se constitui com os outros, corrobora com o fazer artístico do modelo vivo. Em outras palavras, por mais que não se concorde plenamente com a teologia eurocêntrica postulada no texto escrito por Hollivier (2019), não se pode negar que as formas em que são narradas as práticas de modelo vivo (literatura especializada) também podem compor os espaços performáticos dos modelos vivo. Isto posto, ao mesmo tempo esse corpo de modelo vivo pode encontrar na sala de performance o local de subversão dos feixes de relações que compõem sua corporalidade frente aos mecanismos regulatórios de poder, no plano da heteronormatividade, por exemplo. A condição de ser mulher, como menciona Mayã:

[...] então ser mulher e posar é confiar um pouco mais que tá tudo bem, tipo, eu me sinto muito cerceada de muitos lugares pela minha corporalidade feminina, não tenho tanta segurança de andar sozinha na rua, tem muitos lugares que me sinto cerceada, e estar na frente de pessoas, homens e mulheres, que as suas sexualidades eu não conheço assim, nua, e dar um passinho a mais é tipo, um espaço que consegui conquistar para mim assim sabe, aqui dentro da minha cabeça assim sabe, tá tudo bem. E é ser também resistência em mais um lugar [...]. (Mayã, entrevista).

Com isso, a sala de performance deixa de ser um mero plano em que ocorre uma ação, dando contorno de espaço de segurança frente ao receio de ser mulher em outras trajetórias espaço-temporais (MASSEY, 2008). Semelhante a Mayã é a ponderação de Nadia em resposta a perguntas distintas:

Depois pensei que é assim mesmo, porque não sou uma pessoa com um corpo de narrativa comum, branca, europeia, enfim, mainstream. Ali tive um

insight de que eu estava satisfeita. Percebi que somente meu corpo já era

uma forma de resistência, mesmo que pouco eu tivesse refletido sobre uma narrativa poética ou qualquer elaboração mais profunda. [...] Como comentado anteriormente, somente o fato de eu existir como modelo já me penso como resistência a uma reprodução do establishment. Penso em minhas performances como respostas a realidade que vivo. Questões pessoais e sociais, que aparecem diariamente, sejam elas sutis ou grosseiras, vão sendo abordadas em minhas criações performáticas. Ser mulher, com traços orientais, com cabelos encaracolados, corpo robusto, uma forma estética que desafia só por ousar posar me faz querer mais (Nadia, em resposta ao questionário).

O corpo fora do padrão é o que alega o modelo vivo Leandro:

Senti a necessidade de colocar o meu corpo, que não está dentro dos padrões de beleza da publicidade e da beleza artística “clássica” (o corpo masculino magro, sem pelos, com musculatura avantajada e bem definida), na mira de outros olhares, e de compreender como esse corpo observado não é somente um objeto, mas um elemento expressivo, criativo e criador (Leandro, em resposta ao questionário).

Nesse ínterim, o nu masculino é diferenciado de acordo com Allan:

Mas assim, o fato de eu ser homem, o fato de eu ter um pênis na verdade, faz com que os olhares...É porque assim, a mulher sempre foi muito sexualizada né?! Na sociedade...é, é muito, é mais assim tranquilo tipo, é mais, tudo bem uma mulher se despir ou, tudo bem você ver uma mulher seminua ou nua na TV ou qualquer outra mídia, ou é... enfim. E já o homem e para ser mais específico o pênis ele sempre é tipo assim, “ah, meu Deus do céu um pênis”, não dá para ser visto. (Allan, em entrevista).

Quanto ao estranhamento causado pela exibição do órgão genital masculino, a resposta de Allan confabula com a do modelo Leandro:

Embora o corpo masculino seja bastante representado nas artes visuais, a nudez do modelo parece às vezes incomodar pela exposição do pênis, associado a sexualidade e a relações de desigualdade. Acho interessante a relação que se estabelece ao ter mulheres desenhando um homem, invertendo as relações que mantiveram as mulheres como objetos de representação da arte. (Leandro, em resposta ao questionário).

Como foi observado, as razões que levam modelos vivos a expor sua nudez são distintas e carregadas de subjetividade, ou seja, há uma relação multi-identitária entre gênero e outros aspectos que compõe esses corpos dos modelos, porque a experiência se apresenta de tal forma para cada um deles. Desta forma, as vivências espaço-temporais que nos constituem figuram no corpo do modelo vivo trajetórias de vivências entre-corpos que vão compor esse corpo do indivíduo que se oferece ao olhar do outro. Existe uma textura carnal no tempo. Igualmente, a temporalidade está associada ao espaço, no sentido de que as nossas experiências são situadas, têm direção e sentido espaço-temporal.

Em suma, a noção de tempo não pode ser associada à visão objetivista do tempo absoluto, fechado, mas sim de que é constituída no fazer-se. Tal perspectiva aproxima os atos de posar à ideia pós-estruturalista da geógrafa inglesa Doreen Massey (2008), isto é, o espaço geográfico como um campo aberto que é feito e desfeito em termos de encontros de diferentes histórias espaço-temporais.

Semelhantemente, uma obra a se fazer é a materialidade de encontros, de espaço- temporalidades, de existências, de extensões e profundezas, de densidade.

A nudez envolve por ser potencialidade em seu devir de modelo vivo. Faz parte do performar, do estar-com.

Desse modo, no presente capítulo, abordou-se a potência da carne deste corpo vivo e presente que, nu, compartilha suas geografias internas. O que ocorre não é uma performance no sentido de artefatos artísticos e grandiloquências, mas “uma coisa” tocante. O modelo que se dobra sobre si mesmo, que pela potência de seu corpo nu afeta o outro, constrói e constrói-se em seu fazer. A potência desta performance está nas relações como extensões dos corpos de quem olha e de quem é visto, que não necessariamente seja o artista e o modelo, respectivamente. Uma trama que se retroalimenta em um espaço performático que situa e elabora a relação do modelo com o outro, constituindo-se em um quiasma merleaupontiano.