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Reacção do Povo face ao Golpe de

No documento António - tese final (páginas 194-200)

Capítulo 1 1 Conceptualização teórica

2. Estado da Arte

3.1. Reacção do Povo face ao Golpe de

António Manuel de Sousa Duarte

Movimento de 1383 e 25 de Abril de 74 – burgueses e capitães, do «putsch» à revolução

O Movimento Social que levou à Revolução de 1383 tem sido um dos marcos da História de Portugal que cimeiramente tem apaixonado os investigadores nacionais.

Percebe-se que o encadeamento dos factos então ocorridos persista em gerar uma aura de fascínio e curiosidade pessoal e, concomitantemente, uma sede de investigação científica que nem o passar dos anos destruiu.

Antes de tudo revela-se essencial não perder de vista a complexa situação social que então se verificava: o povo esfaimado, vítima de guerras sucessivas e de formidáveis vagas de pestes.

Também numa óptica político-económica o horizonte não se apresentava mais pacífico e não menos convulso: a nobreza desagregava-se, o clero perdia poder e nascia uma «proto-burguesia» capitalista.

Logo depois, vem a questão da ambiguidade dinástica resultante da crise de soberania suscitada pela morte do rei D. Fernando e, esta, conjugada com o facto, mal visto, do casamento de sua filha, D. Beatriz, com Juan de Castela.

A seguir, a conturbada e conflituante regência de D. Leonor Teles de Meneses, que correspondeu a um flagrantemente escrutinado período tão curto quanto imbrincado de ocorrências polémicas e que agravaram o estado de sítio que se fazia sentir entre o povo e por todo o território.

Surge então o assassinato do Conde de Andeiro, a designação do Mestre de Avis como Regedor e Defensor do Reino e a entrada numa nova fase da vida de Portugal que culminará nas guerras com Castela e nas cortes de Coimbra.

E tudo isto se passou em apenas dois anos!

Segundo António Borges Coelho (1975, p. 27), precisamente na análise do Movimento de 1383, “o golpe de Estado parece ser a situação de ruptura política em que o poder muda de mãos mas não sai da mesma fracção de classe e não altera, significativamente, as estruturas sociais e políticas”. Para Coelho, “revolução, ao contrário, é toda a alteração violenta no domínio da classe ou fracção de classe no poder, o que proporciona alterações significativas na estrutura jurídico-política (ou tentativa de dissolução) dos elos sociais anteriores”.

Explicita Borges Coelho que não há a seu ver como negar o carácter revolucionário do Movimento de 1383. Alega que a vitória da nova facção sobre o espectro do poderio

aristocrático, representado pela aliança dos nobres portugueses com Castela, fica a dever-se, em muitas cidades e vilas do País, à acção popular.

Concordando o autor da tese com este pressuposto, será importante, ainda assim, centrar a análise do presente objecto de estudo numa outra vertente consideravelmente determinante.

Com efeito, dando como adquirido que o povo, a arraia-miúda, os ‘ventres-ao-sol’, aderem rapidamente ao Movimento desencadeado pelo Mestre de Avis e seus homens, está claro que não são esses grupos e os representantes desses estratos sociais os dinamizadores do Movimento – e isto é, também, inequívoco. Esse povo consiste naqueles que os revoltosos manipulam, sem aspas note-se, para cimentar o golpe e para dessa forma coartar qualquer capacidade de reacção aos governantes depostos.

No âmbito desta tese de doutoramento não se pode considerar sustentável a ideia segundo a qual lenhadores, madeireiros, malteses, braceiros, pastores, mancebos, homens de soldada, cabaneiros, oficiais e trabalhadores de serviços, marinheiros, pescadores, estejam imbuídos de espírito revolucionário. Sim, sentiam-se explorados, estavam em vias de abandonar os campos em direcção às cidades, mas não possuíam uma definida consciência de classe que os fizesse pretender compreender, e muito menos integrar em termos de acção, um movimento organizado de deposição da governação.

Ora o mesmo se não passa com os mercadores-proprietários, mesteirais e artesãos sediados nas cidades e, designadamente, em Lisboa, profissões que se arvorarão, essas sim que não outras, na base que determinará a acção e a eficácia da acção revoltosa.

Foi Jaime Cortesão, quem, em 1930, verdadeiramente provocou a polémica sobre se 1383-83 correspondeu a uma crise ou a uma revolução ou, como alguns defenderam, a um episódio apelidado de «Interregno».

Seguido na controvérsia, postaram-se de um lado os defensores de uma concepção «revolucionária» opondo-se-lhes aqueles que apostaram numa perspectiva «nacionalista».

“Para aqueles a resolução da crise dinástica tem como fundo uma «Revolução» burguesa, «social»; para os últimos, é o aparecimento de uma consciência nacional que caracteriza convulsões, pelo que não devem ser consideradas mais do que uma «Crise», que pode apelidar-se de «Revolução Nacional»”34.

António Manuel de Sousa Duarte

Movimento de 1383 e 25 de Abril de 74 – burgueses e capitães, do «putsch» à revolução

De permeio surgem Jaime Cortesão, António Sérgio e Joel Serrão, historiadores mais moderados e que relacionam directamente os sucessos de 1383-85 com a estrita intervenção dos grupos burgueses.

Alinhado com Álvaro Cunhal surgiu muitas vezes António Borges Coelho, que investiu todas as forças do seu saber na defesa intransigente da Crónica de Fernão Lopes, obra sem a qual, é bom de ver, a teoria marxista da Revolução de 1383 não teria como se sustentar. Teoria de que Álvaro Cunhal foi um acérrimo defensor, situação que merece uma breve análise, embora se deva acautelar que não parecem comparáveis os graus de militância e liderança política e o nível de investigação académica.

Nada de novo se for tida em conta a linha que separa o político e o politólogo.

Na mira dos dois estiveram, por exemplo, autores como Oliveira Marques ou António José Saraiva. Mas também Marcello Caetano e, até, o escritor Antero de Quental.

Neste ponto convirá saber o que refere o Portal da História.

“Seria um absurdo histórico que o novo regime, surgido da insurreição, com dois anos de vida, em guerra vitoriosa com Castela, preparasse e convocasse umas cortes para aí ver aprovado o triunfo do inimigo”. Assim, para Cunhal, “se os argumentos de João das Regras não tivessem sido aceites pelos nobres legitimistas, os senhores do novo regime teriam acabado por seguir o oferecimento de Nun'Alvares: despachar o Mestre de seu estorvo”. E sintetiza: “A justificação jurídica teve o mérito de alargar o campo dos que apoiavam a revolução burguesa e de arrancar ao inimigo a bandeira da legalidade, do direito e da tradição”35

.

Segundo o político, “as cortes de 1385 foram, na sua época, um parlamento revolucionário, surgindo por um momento na história portuguesa como expressão de uma vontade nacional soberana. Não bastou a justificação jurídica de João das Regras para investir o Mestre nos poderes da realeza”. As cortes afirmam expressamente que nomeiam e escolhem D. João para rei e senhor e outorgam que se chame rei. E acrescenta Cunhal: “As decisões das cortes de 1385 marcam, na sua multiplicidade e autoridade, a decisiva influência burguesa na direcção da política central. São as cortes que nomeiam o Conselho do rei, impondo uma maioria burguesa: quatro letrados e quatro representantes dos concelhos, num total de catorze

35 O Portal da História. O amadurecimento da crise. Álvaro Cunhal. Todas as citações de Álvaro Cunhal foram

membros”. E para que não subsistam quaisquer dúvidas sobre o sentido genético do facto, ajunta Cunhal que “as cortes de 1385, embora realizadas já depois do esmagamento dos focos de rebelião camponesa e proletária, são, pelas suas resoluções, uma prova do carácter de classe da revolução e do retumbante triunfo da burguesia”.

Trata-se, claramente, de um registo linguístico mais próprio do século do político do que do tempo dos acontecimentos. Daí a utilização de palavras como «proletária», um termo cujo étimo é latino – proles – mas que só passou a fazer parte do vocabulário político a partir do início do capitalismo industrial36.

Igualmente conhecido pelo seu interesse por matérias das áreas cultural e histórica, aquele que foi o líder histórico do Partido Comunista Português reflecte sobre o factor bélico inerente ao mandato do Mestre de Avis, Regedor e Defensor do Reino e, a partir dali, D. João I, rei de Portugal.

Para Álvaro Cunhal, “uma das preocupações das cortes foi assegurar, pelas suas medidas, a continuação vitoriosa da guerra, uma guerra que interessava às classes populares e, particularmente, à burguesia”. E na verdade, sob a óptica do político, vistas assim as coisas pela sua natureza de guerra nacional contra a nobreza e seus associados castelhanos e pelas novas soluções tácticas encontradas no terreno militar, “tal guerra era bem uma guerra revolucionária da burguesia”.

Burguesia, aqui sim, um conceito utilizado no tempo certo porque são bem conhecidas as conotações negativas que Cunhal faria do termo no período pós-25 de Abril, numa conjuntura em que a palavra burguês passou a ser sinónima de reaccionário e não de revolucionário.

Por esta razão, da vitória conceptual de D. João nas cortes de Coimbra não se pode autonomizar a pressão física exercida por Nuno Álvares Pereira que, de fora, acompanhou todo o evoluir da situação acompanhado de mais de trezentos escudeiros e cuja presença contribuiu para que a cimeira não se alongasse no tempo mais do que o necessário e assim evitar que as forças às ordens de Castela pudessem antecipar, e materializar, as suas intenções invasoras.

36 O rei Sérvio Túlio usou a palavra «proletarii» na Roma Antiga para designar aqueles que apenas serviam para

António Manuel de Sousa Duarte

Movimento de 1383 e 25 de Abril de 74 – burgueses e capitães, do «putsch» à revolução

Como decorre da História, os romanos nunca adiavam uma guerra porque tal significaria dar vantagem ao adversário. Em Portugal, Adriano Moreira avisa que a indecisão não pode demorar mais do que a dúvida sob pena de hipotecar o futuro. O povo limita-se a proverbiar: «Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje» porque «O que tem de ser tem muita força».

Ao lado da luta das classes contra o inimigo estrangeiro e ao ataque frontal e sem tibiezas dos historiadores que designa de burgueses – no mau sentido, bem entendido – do século XX, Álvaro Cunhal denuncia a tentativa de sonegarem aqueles o que diz ser o carácter essencial da Revolução: que essa luta nacional foi ao mesmo tempo e fundamentalmente uma revolução de classes da sociedade contra outras classes, uma revolução da burguesia – a boa, a revolucionária – e seus aliados contra a nobreza territorial. E acrescenta: “A revolução de 1383 confirma o ensinamento de Marx e Engels, segundo o qual ‘no pano de fundo da luta entre burgueses citadinos e nobreza feudal aparece o camponês rebelde e atrás dos camponeses os rudimentos revolucionários do proletariado moderno’”, afirmação que permitirá inferir a existência de um «proto-proletariado».

E refere Cunhal, que “em todos os grandes movimentos burgueses houve explosões independentes da classe que era a precursora, mais ou menos desenvolvida, do moderno proletariado”.

Ao ler estas conclusões de Álvaro Cunhal, ou do também historiador marxista António Borges Coelho, sobre a crónica de D. João I, resulta óbvio e por demais evidente o papel histórico atribuído ao povo, em tudo anacronicamente semelhante ao desempenhado na Revolução dos Cravos pelos milhares de cidadãos que saíram à rua e encheram o Largo do Carmo até à rendição de Marcello Caetano às mãos do Movimento das Forças Armadas (MFA).

De resto esta similitude de processos e de passos deram origem a um tão surpreendente estudo sobre os dois ‘golpes revolucionários’ da autoria de Vasco Gonçalves, o já falecido ex-primeiro-ministro pós-25 de Abril, conhecido pela liderança política no período designado por ‘Gonçalvismo’ vivido em pleno Período Revolucionário em Curso (PREC).

Um período durante o qual os cantores de intervenção, designadamente aqueles que eram conotados com o PCP, pediam força ao «camarada Vasco» e lhe prometiam em nome do povo que seriam «a muralha de aço».

Na verdade, mais de seis séculos depois do Movimento de 1383/85, importa tentar perceber as linhas de convergência que possam ajudar a melhor compreender estas duas datas tão marcantes e tão significativas na História de Portugal e do seu povo.

Por isso, a Revolução há-de adquirir desde logo um carácter nacional, social e popular.

Tanto em Abril de 74 como em 1383, a luta pela independência nacional funde-se com a luta contra os privilégios das classes mais altas, pela obtenção do poder político. Ambas as revoluções, ambas burguesas e pequeno-burguesas se identificam assim com a luta pela independência nacional. Uma contra o duro autoritarismo imposto por Oliveira Salazar, outra pela defesa da soberania, as duas em nome do povo, embora manipuladas por novos grupos liderantes: em 1383, os burgueses e mercadores ricos; em 1974, uma plêiade de oficiais que ambicionam o exercício de um novo poder.

Para Oliveira Marques, 37 “é verdade que a sua origem popular, com desconfiança por tudo aquilo que era nobreza ou alto clero, lhe deu um sentido crítico que o fez incomparável no panorama do tempo e lhe temperou as subserviências de valido do Paço”. Por essa razão, tempera o seu parecer e desafia: “os relatos dos principais acontecimentos partidários e a caracterização das mais importantes figuras não podem ser tomados como a verdade intocável que a grande massa dos historiadores portugueses lhes têm conferido”. Defende ainda Marques que “muitos dos episódios afamados da Crónica de D. João I valem antes como romance histórico de alto nível literário (pela movimentação das massas, pela psicologia dos homens, pelo desenrolar dos actos) do que como testemunhos de uma realidade passada”.

Em Marques, que sibilinamente analisa a estrutura e o tom da obra de Fernão Lopes numa óptica muito mais literária e muito menos histórica, “as melhores páginas históricas de Fernão Lopes são talvez as da Crónica de D. Fernando, sobretudo quando se referem a factos controláveis e isentos da possibilidade de partidarismo”.

Numa alusão directa, embora condescendente, ao facto de o cronista medieval ter escrito tanto e de forma tão aprofundada e acalorada sobre D. João I e as incidências da vida do monarca com as quais Fernão Lopes não conviveu, justifica “a probidade do cronista-

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