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2.3 PARA UMA CARACTERIZAÇÃO DO NOVO ROMANCE LATINO-AMERICANO

2.3.1 Realismo mágico ou maravilhoso

exemplo, no campo da moral, da religião, da sexualidade, que nesse tipo de romance seguia uma linha conservadora, no qual a moral cristã, a religião católica e a sexualidade moderada, sugeridas, eram parâmetros respeitados e constitutivos do discurso. No NRL, houve uma ruptura com os tabus que esses padrões sociais tinham desenhado, através da inclusão e valorização de outros cultos: africanos, indígenas, orientais, etc.; com a abertura à sexualidade e ao erotismo muito mais diretos, contundentes, prescindidos da culpa e da noção de pecado, tendo como intenção e consequência a elaboração de outro tipo de ética, contrária ao atavismo cristão, o qual gerou uma moral e um comportamento duplos, uma hipocrisia social que o romance tradicional testemunhava em seus relatos e que o NRL atacou fervorosamente.

Ideológica e politicamente os escritores do NRL tiveram uma atitude crítica e reflexiva sobre a realidade social de seus países e em muitos dos seus romances houve uma preocupação em revisar a história para tentar entender os problemas que afligiam o continente. Sua atitude foi de rejeição frente aos totalitarismos, às ditaduras, ao abuso de poder e à exploração capitalista, o que fez com que muitos deles – a maioria – abraçassem a causa socialista e comemorassem, com entusiasmo e efervescência, o triunfo da Revolução Cubana, que representava uma espécie de utopia e a realização do sonho por uma sociedade justa. Essa fé na Revolução contribuiu para a união de muitos intelectuais latino-americanos como também para a internacionalização do NRL (DONOSO, 1999, p. 59).

Entretanto, há três características do NRL que queremos destacar: o chamado “realismo mágico”, que Irlemar Chiampi prefere chamar de “realismo maravilhoso”, a reivindicação da cultura popular como fonte de material narrativo, e a transculturação narrativa e processos de hibridação.

2.3.1 Realismo mágico ou maravilhoso

Um dos termos preferidos pela crítica e pela publicidade para caracterizar o NRL, particularmente no momento do boom, foi o realismo mágico. Irlemar Chiampi diz que foi em 1925, com o historiador Franz Roh, que o termo começou a ser empregado, com um sentido fenomenológico para referir-se à realidade latino-americana, mas o que Roh destacou como mágico foi principalmente o ato de percepção (CHIAMPI, 1980, p. 21-22). Entretanto, é o

romancista venezuelano Arturo Uslar Pietri quem em 1948 no livro Letras y hombres de

Venezuela, utiliza a expressão para analisar criticamente o romance hispano-americano7.

Assim, o termo começa ser utilizado indiscriminadamente pela crítica e principalmente pela mídia para definir o romance latino-americano dos anos sessenta, que apresentava outra visão da realidade na qual o fantástico e o maravilhoso, convivem harmonicamente com o real, o cotidiano, a ponto de – o “real” e o “maravilhoso” – algumas vezes cruzarem-se sem lograr distinguir-se um do outro.

Porém, é em Alejo Carpentier, no prólogo ao seu romance El reino de este mundo de 1949, que encontramos uma clara definição do maravilhoso, sendo aquilo que “surge de una alteración de la realidad (el milagro), de una revelación privilegiada de la realidad, de una iluminación inhabitual o singularmente favorecedora de las inadvertidas riquezas de la realidad” (CARPENTIER, 1967, p. 6). Para o escritor cubano, o maravilhoso não tem que se buscar de uma maneira artificial, com fórmulas ou artifícios literários, como, segundo ele, fizeram os surrealistas. Ele surge da própria realidade, da natureza, dos mitos, lendas, tradições, etc., que caracterizam o continente americano. Por esta razão, uma característica fundamental para que apareça a “sensação do maravilhoso” é a fé: “Los que no creen en santos no pueden curarse con milagros de santos, ni los que no son Quijotes pueden meterse, en cuerpo, alma y bienes, en el mundo de Amadís de Gaula o Tirante el Blanco” (CARPENTIER, 1967, p. 6). Esta experiência o autor a vivencia na viagem que realiza ao Haiti. Lá, defronta-se com esse real maravilhoso e compreende que este não é só representativo desse povo, mas é um “patrimônio” da América toda que provêm das Crônicas da Conquista até as façanhas dos heróis da Independência:

A cada paso hallaba lo real maravilloso. Pero pensaba, además, que esa presencia y vigencia de lo real maravilloso no era privilegio único de Haití, sino patrimonio de la América entera, donde todavía no se ha terminado de establecer, por ejemplo, un recuento de cosmogonías. Lo real maravilloso se encuentra a cada paso en las vidas de hombres que inscribieron fechas en la historia del Continente y dejaron apellidos aún llevados: desde los buscadores de la Fuente de la Eterna Juventud, de la áurea ciudad de Manoa, hasta ciertos rebeldes de la primera hora o ciertos héroes modernos de nuestras guerras de independencia de tan mitológica traza como la coronela Juana de Azurduy (CARPENTIER, 1967, p. 7).

      

7 Para aprofundar mais na origem do conceito de realismo mágico, veja-se o capítulo “Avatares de um

Este prólogo tornar-se-ia um verdadeiro manifesto do real maravilhoso e teria uma ampla repercussão na fundamentação da estética do NRL, na sua proposta de identidade e na poética do redescobrimento, como bem indica Livia Reis (2009, p. 98): “O prólogo tornou-se um ícone do pensamento sobre identidade, na América Latina, e iria lançar as bases da poética de redescobrimento, que viria a desaguar no boom literário dos anos 60-70”.

Por outro lado, Irlemar Chiampi chama a atenção para as diferenças do termo

mágico e maravilhoso. O último pertence à tradição literária sendo consagrado pela Poética; o

primeiro faz parte de uma série cultural diferente:

Magia, em acepção corrente, é a arte ou saber que pretende dominar os seres ou forças da natureza e produzir, através de certas práticas e fórmulas, efeitos contrários às leis naturais. Como ramo do Ocultismo, a magia se situa sob o signo do conhecimento: a realidade se torna um símbolo, cujo sentido se deve desentranhar; a busca percorre um caminho que vai de símbolo em símbolo e no qual o sujeito sofre um processo de metamorfose gradativa até alcançar a gnose. Por ser um modo de conhecimento sintético do mundo e por implicar o comprometimento do sujeito (que sofre a mutação ontológica), a prática mágica difere do conhecimento científico. (CHIAMPI, 1980, p. 43-44).

Maravilhoso, entretanto, além de fazer parte da tradição literária, identificando a

intervenção sobrenatural e divina: fadas, anjos, deuses, demônios, etc., e o efeito que provocam no leitor, segundo a autora, seu uso é mais adequado para denominar o romance latino-americano porque etimologicamente provém do latim mirabilia, que quer dizer coisas admiráveis, opostas às naturalia; contém, além disso, o verbo “mirar”, no sentido de ver com intensidade, através de, “é um grau exagerado ou inabitual do humano, uma dimensão de beleza, de força e riqueza; em suma, de perfeição que pode ser mirada pelos homens” (CHIAMPI, 1980, p. 48).

Para a autora, maravilhoso é o termo mais indicado para se referir ao NRL, pois em qualquer das suas acepções: sobrenatural, fantástico, etc., diz melhor “sobre a forma discursiva do realismo maravilhoso, como a análise estilística da retórica construída para estabelecer as “passagens” de um significado ao outro” (CHIAMPI, 1980, p. 49).

Embora a conceituação e o esclarecimento de Irlemar Chiampi sejam úteis e pertinentes, o mais importante aqui é entender que, seja “realismo mágico” ou “realismo maravilhoso”, houve uma abordagem diferente sobre a realidade americana. A diferença de percepção fez com que a imagem que se construiu a partir daí sobre o continente também fosse distinta: muito mais complexa, mais estética, no sentido de ser mais rica, ornamentada,

graças à exploração na linguagem que em boa medida bebeu da fonte da tradição barroca tão bem aproveitada por muitos dos escritores do NRL.

O realismo mágico ou maravilhoso ajudou a ver a realidade e também o fantástico ou maravilhoso de uma forma mais dinâmica, pois com seu deslocamento de conceitos e de valores, apresentava muitas vezes o “real”, cotidiano, como acontecimentos de ordem fantástica, maravilhosa, enquanto que “maravilhoso” era apresentado como situações comuns, sem nenhum tipo de assombro. Basta pensar na naturalidade com que se descreve o diálogo de mortos de Pedro Páramo, a ascensão aos céus em corpo e alma de “Remedios la bella” ou as hipérboles de Cem anos de solidão, as intervenções dos orixás de Jorge Amado, ou, em outro sentido, a forma surpreendente com que Cortázar apresenta suas instruções para coisas completamente cotidianas e, aparentemente, simples (“para chorar”, “subir uma escada”, “dar corda a um relógio”, etc.) em Famas e Cronópios.