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PARTE II – EM ESPECIAL, O DIREITO À RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA DA CRIANÇA NO SEIO DA FAMÍLIA

4. A recente atenção da jurisprudência

Perante todo o exposto, pretendemos mostrar a rapidez com que o sharenting se tem propagado mundialmente e que, embora tenha recebido muitas críticas, o fenómeno encontra- se cercado de complexidade cuja opinião/entendimento dependerá de como àquelas que se sentirem prejudicados, ou não, irão manifestar no caso concreto face aos seus progenitores.

Em França, no dia 02 de Setembro de 2014,110 o Tribunal de Apelação de Aix-en-

Provence, julgou o pedido de um dos progenitores separado, para a remoção de uma conta do

Facebook aberta pela mãe do seu filho de sete anos. A mãe alegara que a conta tinha sido criada

para que o menor pudesse jogar no tablet. Contudo, os magistrados decidiram aceitar o pedido do pai e ordenaram que a mãe fechasse a conta dentro de um prazo de dez dias após a sentença e, passado este período, sob pena de prisão. A decisão foi proferida em conformidade com a jurisprudência já estabelecida, a incluir uma sentença do Tribunal de Apelação de Agen, de 16 de maio de 2013,111 que ainda que sem ordenar o cancelamento de um perfil em determinada

rede social, consideraram que a abertura de um perfil no Facebook pela mãe, em nome da sua filha de 10 anos de idade, provavelmente, estaria a colocá-la em perigo.

Noutro julgamento, no dia 25 de junho de 2015,112 o Tribunal de Versailhes concedeu

favorável o pedido de um pai para que sua ex-esposa parasse de publicar fotos do seu filho de apenas quatro anos, como também excluísse os comentários e fotografias já publicadas do menor na sua conta do Facebook. O Tribunal ordenou que a mãe parasse de publicar qualquer informação referente à criança sem a devida autorização do pai além de excluir o conteúdo conforme o pedido. O Tribunal declarou ainda que a publicação de fotos da criança e

comentários relacionados a ela no site do Facebook, não se trata de um ato comum, mas que exige o acordo de ambos os pais (tradução nossa).

Coincidentemente a 25 de junho de 2015, o Tribunal da Relação de Évora, num acórdão relatado pelo Desembargador Bernardo Domingos, constitui uma esperançosa resposta quanto à proteção do direito à imagem dos menores em Portugal. De forma inédita, entre todos os tribunais portugueses de segunda instância, determinou que os pais de uma menor de 12 anos de idade deveriam “abster de divulgar fotografias ou informações que permitam identificar a

110 CA Aix-En-Provence, 6e ch. C, 02 Septembre 2014, n.º 13/19371, JurisData 2014-019786. 111 CA Agen, ch. mat. 1, 16 Mai 2013, n.º 11/01886, JurisData n.º 2013-009716.

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filha nas redes sociais”.113 Trata-se de um assunto que detém grande repercussão na opinião

pública face à indagação se os pais, enquanto detentores das responsabilidades parentais, poderiam ou não serem proibidos de publicarem fotos dos seus filhos menores nas redes sociais, ainda que perante um grupo restrito de pessoas, sem que estivessem a violar os direitos de personalidade dos seus filhos.

Mas, trazemos a indagação: tratando-se de publicações que causem desconforto, perigo ou até mesmo cyberbullying,114 poderia o Estado aplicar medidas tendo em conta a existência

do princípio da intervenção mínima do Estado na família? É certo que o Estado não tem o condão de impor paradigmas do que seria certo ou errado para a educação dos filhos, porém incumbe-lhe cooperar com os pais para educação, conforme disposto na alínea c) do artigo 67.º da CRP.

Outra questão importante quanto ao acórdão, refere-se ao facto de ter sido uma decisão proferida em sede de recurso num processo de regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais referente à filha menor, que em nada versava sobre condutas inadequadas dos pais quanto à exposição da menor. Assim, neste caso, entendemos que ainda que seja uma apelação interposta proferida no âmbito de um processo acerca da regulação das responsabilidades parentais, o tribunal tem o dever de proteger a criança, visto que esta é a parte mais fraca dentro da família.115

Entende-se ainda que por se tratar de um processo de jurisdição voluntária, possibilita ao tribunal ser livre para conhecer sobre outros factos que não sejam levados pelas partes ao seu conhecimento (n.º 2 do artigo 986.º do CPC), além de não ter que estar sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (artigo 987.º do CPC).

Note-se que, apesar de “conveniente e oportuna” (artigo 987.º do CPC), não poderá corresponder ao livre critério do(s) julgador(es) a valer de casuísmo e baseando-se em critérios

113 Acórdão de 25.06.2015, Proc. n.º 789/13.7TMSTB-B.E1, Relator Bernardo Domingos. Disponível em:

<https://www.dgsi.pt>. Consultado em: 04-05-2019.

114 Expressão proveniente da língua inglesa, é definida por Hugo Tavares como um ato hostil repetido e deliberado

de ameaça e ofensa (denegrir, humilhar), feito através de tecnologias da informação (telemóveis, internet, etc.), implicando necessariamente que o provocador/abusador e a vítima sejam menores de 18 anos, caso contrário, envolvendo maiores de idade passa ser denominado assédio de menores. Cfr. TAVARES, Hugo, Cyberbulling na

adolescência ..., ob. cit., p. 174.

115 SOTTOMAYOR, Maria Clara - Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 5.ª ed., Porto, Almedina, 2011, p. 31.

48 subjetivos,116 é necessário que a decisão seja fundada em princípios regulatórios, doutrina e

jurisprudência a que no caso em questão refere-se à proteção da imagem e à reserva da vida privada da criança.

É verdade que a situação que nos propomos a análisar e a seguinte decisão proferida pelo tribunal, deve ser uma conduta dita como habitual aos pais em abster os menores de certas exposições. Isto porque, não caberia a lógica de que os progenitores que não estivessem intentado ações ao tribunal para regulação das responsabilidades parentais, não estariam proibidos de publicações dos menores, tendo em vista que não há decisão de um tribunal que os proíba expressamente.

Se àqueles pais que nunca tiveram intervenção de um tribunal, não tivessem que resguardar a imagem dos menores, certamente estaríamos diante de uma violação do princípio da igualdade conforme o artigo 13.º da CRP. Os perigos causados pelo sharenting estão presentes, independentemente, de estarmos a falar de filhos de pais casados, divorciados ou que vivem em união de facto.

Posteriormente, a 09 de fevereiro de 2017,117 o Tribunal de Apelação de Paris, numa

solicitação feita pela progenitora, decretou a proibição de publicar fotografias, em qualquer meio, da vida quotidiana dos seus filhos sem o consentimento do outro progenitor.

A solicitação partiu da mãe dos menores, com idades de 09 e 06 anos à data do julgamento, num processo de divórcio, alegando que o pai publicara na sua conta do Facebook várias fotografias dos menores. O Tribunal declara que a proibição se faz necessária a fim de “respeitar o exercício conjunto da autoridade parental, que exige o consentimento de ambos

os pais quanto às decisões a serem tomadas com vistas ao interesse da criança”, o que

demonstra a preocupação do Tribunal com o perigo que o excesso do uso das redes sociais pelos pais podem causar ao expor fotografias das crianças. Em consonância com o artigo n.º 371-1 do CC francês, conforme já citado anteriormente.118 Afirma o entendimento que a difusão

de uma fotografia do filho menor sem o consentimento do outro pai seria, na legislação francesa, contrária ao interesse da criança. O que, decerto, discordamos, na medida em que, por vezes, a importância da audição da criança quanto ao incómodo da sua exposição pode ser adversa à perceção de ambos os pais.

116 MARQUES, J. P. Remédio - Acção Declarativa à luz do Código Revisto, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora,

2008, pp. 109 e ss.

117 CA Paris, Pôle 3, chambre 4, 9février 2017, n.º 15/13956. 118 Cfr. Parte I, n.º 2. Sobre Responsabilidade Parental.

49 De modo similar, vemos a decisão do dia 23 de dezembro de 2017119, referente ao

processo n.º 39913/20015, onde o Tribunal de Roma, decidiu obrigar uma mãe a remover as fotos do seu filho de 16 anos da rede social, como também a condenou a um pagamento de uma multa pecuniária ao filho. A decisão faz parte de um processo complexo, no qual um juiz de primeira instância designou um tutor face à suspensão das responsabilidades parentais de ambos os progenitores.

Apesar de estarem presentes outras questões em causa, atentamos para a partilha de fotos e informações pessoais do menor por parte da mãe em redes sociais, especificamente Facebook e Instagram. Contudo, o que chama atenção neste caso, está nas oitivas feitas ao menor pelo juiz, onde ele se manifesta a respeito das publicações feitas pela sua genitora, alegando que fica “aborrecido com o facto de que ele passa como se estivesse doente e que os seus colegas são cientes do que é publicado na web sobre ele 120” (tradução nossa). Acrescenta

ainda, quanto ao seu desejo de estudar nos Estados Unidos: “para ter mais oportunidades de emprego...quero ter a vida de um garoto normal... que esperança eu tenho na Itália, onde todos conhecem a minha história... o que posso fazer como zelador?” (tradução nossa). Ao se referir à mãe, indaga o menor: “de acordo com ela, uma pessoa que diz que ama pode escrever essas coisas” (tradução nossa) refere-se, ao mostrar as capturas de ecrã das páginas sociais pelas quais a mãe teria incluído fotos da família e detalhes de disputas legais.

Com base nos factos, em maio de 2017, o juiz determinou que a mãe removesse informações e fotos do menor, reiterando a decisão anterior que ordenava que a mãe parasse de publicar os dados pessoais do menor além de remover os já publicados. Contudo, a mesma incumpriu a decisão, conduzindo para uma aplicação coercitiva indireta, de acordo com artigo 614.º bis do Código de Processo Civil Italiano, que determina o pagamento de uma multa em caso de descumprimento da decisão. Além de se basear no artigo 96.º da Lei n.º 633/1941 sobre os direitos autorais italianos, que prevê que o retrato de uma pessoa não pode ser exibido, reproduzido ou colocado no mercado sem o seu consentimento, salvo em algumas exceções.

Importante retratar, além disso, que se trata de um menor de 16 anos, em que a lei italiana atribui ampla margem de autodeterminação. Entretanto, ao relatarmos as situações de menores sem capacidades de discernimento, onde um dos pais discorda da publicação, a

119 ALTALEX. Tribunal de Roma. Processo n° 39913/20015. Disponível em:

<https://www.altalex.com/~/media/altalex/allegati/2018/allegati%20free/tribunale_roma_ordinanza_23_dicembr e_2017%20pdf.pdf>. Consultado em: 03-10-2019.

50 jurisprudência italiana orienta-se pelo entendimento por descartar a foto, dado que conforme o Código Civil Italiano, o consentimento deve ser de ambos os progenitores.

É oportuno refletir de outro modo, que as publicações podem trazer perigos aos filhos, mas também, muitos pais partilham momentos dos filhos com um intuito positivo de demonstração de afeto, felicidade ou mesmo para diminuir distâncias entre familiares a amigos [...], podendo, em alguns casos, tratarem até de uma questão de demonstração de orgulho dos pais para mostrar o crescimento de um filho.121

Sabemos que o que, de facto deve ser levado em consideração primeiramente, seria a utilização do bom senso por parte dos progenitores em não revelar fotografias e vídeos nas redes sociais que possam por em risco a segurança dos menores. Contudo, o que vemos acontecer demasiadamente são, na verdade, o crescente número de pais que, por negligência ou vaidade, expõem os menores de forma desnecessária.

Ainda não há casos no Brasil, como já vistos nos países citados anteriormente, entretanto a advogada de direito digital Alessandra Borelli, acredita que em um futuro próximo se venha a ter casos semelhantes, porém ainda é impossível prever como a justiça brasileira atuará.122 Atualmente a violação do direto à imagem é passível de pagamento de indemnização

até mesmo chegar a penalidade de seis anos de prisão.

Todavia, o que vemos é que os tribunais não se encontram com um entendimento pacífico sobre o assunto, apesar de se pautarem no superior interesse do menor. Vemos que o Estado não se encontra, e nem deve, estar numa posição de autoridade com fins de ditar aquilo que os pais possam compreender como melhor para a educação dos seus filhos, mas sim, resguardar os menores para o seu superior interesse quando estiverem ameaçados.

Simili modo, que em um futuro próximo possamos a vir a ter filhos que se sintam

incomodados com a exposição indevida dos pais durante a infância, pode ser também que para maioria isto não represente um problema.

Apesar não termos uma significativa demanda de menores nos tribunais a reivindicarem à proteção da privacidade no que diz respeito a exposição pelos pais nas redes sociais, acreditamos que num futuro muito próximo possamos vir a ser surpreendidos, visto que as

121 OBSERVADOR. Publica as fotos dos seus filhos nas redes sociais? Talvez não devesse. 12-07-2015.

Disponível em: <http://observador.pt/2015/07/12/publica-fotos-dos-seus-filhos-nas-redes-sociais-talvez-nao- devesse/>. Consultado em: 02-10-2019.

122 REVISTA CRESCER. Privacidade das crianças na Internet: quem deixou você postar isso? 12-06-2018.

Disponível em: <https://revistacrescer.globo.com/Criancas/Comportamento/noticia/2018/06/quem-deixou-voce-

51 gerações expostas aos media, podem, hoje, ainda ser demasiado jovens para tomarem medidas legais contra os seus progenitores, porém, por se tratarem de direitos de personalidade e sendo esses imprescritíveis poderão, facilmente, serem reivindicados quando atingirem a vida adulta.

Vejamos o caso de um filho de figuras públicas. A título de exemplo, tomemos um casal de Bloggers que partilham a sua vida íntima nas redes sociais. Para ambos os progenitores pode ser normal dispor as suas vidas privadas na medida em que são remunerados por patrocinadores e empresas pela ampla divulgação. E o menor? Não teria o direito de abster a sua vida, em detrimento das prendas, ter que vestir as roupas que foram oferecidas e a privacidade da sua vida, já que ambos os pais concordam primeiramente com a sua própria exposição e, consequentemente, com a dos seus descendentes? Entramos nesse ponto para a reflexão que, no caso concreto, também estamos perante a possibilidade de casos em que o superior interesse da criança não se coadune com o interesse dos pais.

Tratando-se da partilha de imagens dos menores e, certos de que não há nenhuma legislação portuguesa que proíba, expressamente, os progenitores de tal prática, no entanto, posicionamo-nos pelo entendimento de que não seria necessário a criação de uma lei específica para que se pudesse ser conferida a tutela do direito à imagem nas redes sociais, dado que os artigos 79.º e 80.º já do CC já os garante, tendo em conta, coibirem a difusão,123 independente

de onde ela ocorrer, inclusive na Internet (entendimento nosso).

A título de exemplo, analisamos uma determinada situação em que seja selecionado um mecanismo capaz de delimitar um grupo restrito de pessoas para visualizarem determinada imagem nas redes sociais. Não estariam do mesmo modo os progenitores a violarem o direito à imagem do filho? Na nossa opinião, primeiramente, o mais importante faz alusão ao bom- senso e proporcionalidade quanto ao uso das imagens respeitantes o filho, atitude que seria muito pertinente por parte dos pais para que se evitasse uma possível divulgação sem precedentes. Em seguida, adotar um regime jurídico para cada tipo de definição de privacidade nas redes sociais, traria dificuldades quanto a sua própria delimitação, ou seja, criaríamos embaraços em provar à data das publicações e se as opções de privacidade estavam restritas ou acessíveis a todos na altura dos factos.

É de suma importância que a divulgação das imagens e informações levem em consideração a proteção e o superior interesse do menor, onde a construção do conteúdo deva

123 Com exceção nos casos de criança desaparecida onde é admitido que ocorra a divulgação da sua imagem desde

que, para isso, haja o consentimento de ambos os pais, por entender que se trata de atos existenciais graves e raros que pertencem ao núcleo essencial dos direitos que são reconhecidos às crianças, competindo sempre a decisão de publicar a ambos os pais. Cfr. BOLIEIRO, Helena, GUERRA, Paulo – A criança e a família ..., ob. cit., p. 177.

52 ponderar a sua autonomia, a exemplo de impedir que ocorra a partilha quando o menor se manifesta contrariamente a sua exposição, práticas a ridicularizá-lo, em poses sensuais ou mesmo que exposição à hostilização. Tudo pois, uma vez publicados, facilmente poderão ser reproduzidos, inclusive para fins criminosos. Id est, uma vez publicadas somos incapazes de medir o alcance que essas publicações terão.

Em suma, conforme Anne LongField, no relatório Who Knows What About Me?, não sabemos ainda quais serão as consequências do sharenting para a vida das crianças, mas, de facto, o que sabemos é que o fenómeno tende só a aumentar. 124 Acontece que, atualmente,

muitos empregadores, antes de contratarem funcionários, analisam as redes sociais dos candidatos em processos de seleção, com o intuito de obter mais informações sobre eles. Atentamos ao facto de que as informações e dados partilhados durante a infância podem conter rastros que influenciarão também à vida profissional, podendo gerar constrangimentos e traumas no local de trabalho. Todavia, é preciso que os pais parem para pensar no que tal pode vir a significar para a vida delas no presente e como isso pode impactar as suas vidas futuras quando adultas. Quanto aos Estados, cabe-lhes monitorarem a situação e fortalecer legislações de proteção de dados, com vista a uma proteção genuína das crianças. E aos pais, falta por vezes a sensibidade e o bom senso para verificarem se a partilha está direcionada para o superior interesse da criança, ou se não advém, exclusivamente, de um interesse pessoal deles.

124 CHILDRENSCOMMISSIONER. LONGFIELD, Who Knows What About Me? 2018. Disponível em:

<https://www.childrenscommissioner.gov.uk/wp-content/uploads/2018/11/cco-who-knows-what-about- me.pdf.>. Consultado em: 06-10-2019.

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CONCLUSÃO

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