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A Proteção Da Reserva Da Vida Privada De Menores Enquanto Dever Parental, Em Especial Na Era Digital

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2.º CICLO DE ESTUDOS


MESTRADO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS - POLÍTICAS

A PROTEÇÃO DA RESERVA DA VIDA PRIVADA DE MENORES

ENQUANTO DEVER PARENTAL, EM ESPECIAL NA ERA DIGITAL

Amanda de Cássia Pereira Coutinho

Dissertação sob orientação da Prof.ª Doutora Luísa Neto

2019

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ÍNDICE

AGRADECIMENTOS 3

RESUMO 4

ABSTRACT 5

LISTA DE ABREVIATURAS E ACRÓNIMOS 6

INTRODUÇÃO 7

PARTE I - O PODER DEVER NAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS 11

1. A perspetiva histórica da criança na família 11

2. A Lei nº. 61/2008, de 31 de Outubro e o seu reflexo nas responsabilidades parentais

15 PARTE II – EM ESPECIAL, O DIREITO À RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA

PRIVADA DA CRIANÇA NO SEIO DA FAMÍLIA 24

1. O princípio do superior interesse da criança na era digital 30

2. A indisponibilidade do direito à imagem 37

3. A suscetibilidade de oposição à exposição por outrem 40

4. A recente atenção da jurisprudência 46

CONCLUSÃO 53

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 56

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AGRADECIMENTOS

Ao meu avô, que tanto me motivou para chegar até aqui, mas que não houve tempo suficiente em vida para ver a concretização deste trabalho.

Aos meus pais pelo amor incondicional, incentivo e apoio por todas as vezes que pensei em desistir.

À minha Orientadora, a Doutora Luísa Neto, pela sua atenção, seu profissionalismo e seus preciosos ensinamentos fundamentais para a elaboração deste trabalho.

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RESUMO

Com o desenvolvimento do Mundo Digital, a tecnologia tem mudado as relações sociais e juntamente o modo de se exercer as responsabilidades parentais. A vida conectada à Internet pode trazer muitos benefícios e oportunidades às crianças mas também pode colocá-las em perigo. Dedicar-se-á análise ao recente e hodierno fenômeno do sharenting à luz da concepção jurídica atual das responsabilidades parentais e das suas implicações nos direitos de personalidade, em especial quanto ao direito da reserva da intimidade da vida privada e ao direito à imagem dos menores. Questiona-se se será legitimidade dos pais, enquanto detentores das responsabilidades parentais, sobre a partilha de imagens dos seus filhos menores em redes sociais, ainda que por um grupo limitado de pessoas que eles próprios decidiram partilhar, sem observar, todavia, o previsto no artigo 1.878.º do Código Civil, id est, não considerando a opinião do menor de acordo com a sua maturidade? Discute-se ainda a importância dos limites do Estado, no que toca à sua intervenção neste fenómeno, uma vez que, ao analisar decisões de tribunais, são notórias as implicações que tais podem ter na vida do menor, quer no presente, quer no futuro, quando estiver na idade adulta. Assim, focamos a nossa questão no entendimento dos direitos de personalidade, essencialmente na defesa dos interesses das crianças em prol de certas práticas serem abusivas. Analisando decisões de tribunais é possível verificar as implicações que serão trazidas no momento presente à vida do menor ou ainda futuramente ao alcançar a idade adulta, tendo em vista que a exposição de menores nas redes sociais podem estar a violar os direitos de personalidade quando não atenderem ao princípio norteador do superior interesse da criança, o que nos dá fundamentos suficientes para perceber como abusiva certas práticas. Conclui-se, ad ultimum pela urgência de se adotarem mecanismos de proteção da privacidade on-line centralizada na criança, para que ao adentrar na vida adulta, possa conduzir sua vida sem a influência dos rastros digitais que seus pais possam ter deixado enquanto ainda eram juridicamente incapazes.

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ABSTRACT

With the spread of the Internet, smartphones and wireless networks, technology has changed social relationships and the way parental responsibilities are exercised in the digital age. Internet connected life can bring many benefits and opportunities for children, but it can also endanger them. An analysis will be devoted to the recent and current phenomenon of sharenting in light of the current legal conception of parental responsibilities and their implications for personality rights, in particular as regards the right to privacy and the right to image of minors. The question arises whether is it legitimate for parents, as holders of parental responsibilities, to share an image of their children on social networks, even by a limited group of people who have themselves decided, without respecting the provisions of article 1.878 of the Civil Code, id est, not considering opinion according to his maturity? It is also the importance of discussing the limits of the State's legitimacy to intervene in this phenomenon, analysing court decisions verifying the implications that will be brought in the present to the life of the minor or even in the futures as an adult, considering that exposure of children on social networks may be violating personality rights when they do not meet the guiding principle of the best interests of the child, which gives us sufficient grounds to perceive as abusive certain practices. Finally, ad ultimum that children-centered online privacy protection mechanisms are urgently need so when they become adults, they can lead their lives without the influence of the digital traces their parents may have left while still legally incapable.

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LISTA DE ABREVIATURAS E ACRÓNIMOS

CC - Código Civil

CDC - Convenção sobre os Direitos da Criança 
 CEDH - Convenção Europeia dos Direitos do Homem CPC - Código de Processo Civil

CPP - Código de Processo Penal

CRP - Constituição da República Portuguesa ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente OTM - Organização Tutelar de Menores RGPD - Regime Geral de Proteção de Dados RGPTC - Regime Geral do Processo Tutelar Cível

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INTRODUÇÃO

1. A presente dissertação de mestrado pretende, sobretudo, destacar os impactos das

novas tecnologias nas relações familiares, apontando problemas jurídicos numa série de questões relevantes, como os reflexos provocados pela violação da intimidade da vida privada da criança na Internet por intermédio daqueles que seriam os responsáveis pela sua protecção. O debate torna-se pertinente numa era em que a partilha de vários momentos da vida quotidiana, ou até mesmo íntimos, dos filhos menores é feita por apenas um clique na rede social, em que as manifestações de reações e comentários são exclusivamente para gáudio dos progenitores que aguardam uma validação externa daqueles que acompanham as suas redes sociais,1 tornou-se comum.

Dado os factos, constituiu-se assim, o nascimento de um novo fenómeno chamado

sharing, com origem na língua inglesa, que decorre da junção da palavra share - partilhar e parenting – parentalidade, que surgiu devido à preocupação com a superexposição em que, máxime os pais, estão a partilhar da vida privada dos seus filhos menores nas redes sociais.

Com o desenvolvimento da Internet, o diálogo e a comunicação tornam-se mais acessíveis, não fazendo assim a típica frase dos pais “não fales com estranhos” sentido, pois, são vários os estranhos que podem ter contacto com seus filhos por meio da partilha de uma simples fotografia, facilitando com que as informações possam facilmente recair nas mãos de criminosos, a colocar em risco a segurança de todos os membros da família.

2. Assim, o que se traz, de facto, à colação neste trabalho, é avaliar a partir de que

momento o direito à intimidade da vida privada e à imagem da criança possam estar a ser violados por aqueles a quem incumbe o exercício das responsabilidades parentais, neste caso específico, na era digital.

3. As configurações quanto ao direito à privacidade não podem continuar a ser restritas

ao tradicional right to be let alone, associando-o, hoje, ao direito à autodeterminação informativa, ou seja, à possibilidade do indivíduo de controlar as informações que lhe dizem respeito.

Repara-se que, com o avanço do sharenting, as crianças acabam por crescer com uma conceção diferente do que seria privacidade, podendo parecer normal para elas que tudo esteja

1 CRUZ, Rossana Martingo - A divulgação da imagem do filho menor nas redes sociais e o superior interesse da criança – In: Direito e Informação na Sociedade em rede: Atas do IV Colóquio Luso-Brasileiro Direito e

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8 sob domínio público, o que faz com que a ideia de privacidade possa vir a desaparecer rapidamente.2

4. Tratando-se dos contornos da responsabilidade parental, o principal conteúdo deve

corresponder aos interesses que os pais possam ter naquilo que for mais benéfico ao interesse dos seus filhos, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.878.º do Código Civil (CC).

O que nos interessa nesse estudo é a específica situação em que os interesses dos pais não coincidem com a vontade e o superior interesse do filho quanto à partilha de imagens e informações nas redes sociais.

Apesar de se reconhecer a importância de se debater quanto aos riscos oriundos das próprias partilhas que as crianças fazem de si nas redes sociais, debruçar-nos-emos, neste trabalho, exclusivamente, à análise dos riscos que os pais impõem aos filhos com as suas publicações.

Nesta senda, a relevante questão a que esta dissertação procurará responder é a seguinte: ser-lhes-á lícito dispor do direito de personalidade da criança, não obstante a opinião do menor deva ser considerada de acordo com a sua maturidade, conforme previsto no n.º 2 do artigo 1.878.º do CC? Poderá o Estado admitir/proibir os pais, ou representantes legais, de publicar fotografias, vídeos ou qualquer outro meio capaz de identificar os menores na Internet?

Tudo pois, os reflexos da Internet não geram impactos apenas nas relações humanas, mas também no âmbito do Direito, além de que o controlo das informações na era digital também é efetivado no aspeto temporal. Para Lívia Leal, isto acontece porque a Internet além de permitir um novo significado de espaço (aproximando quem está distante), ocorre uma continuidade temporal que transborda a memória humana, de tal modo que uma informação veiculada há anos atrás possa aparecer acessível a todos permanentemente, podendo ser resgatada a qualquer momento.3

5. Em termos metodológicos, o presente estudo será desenvolvido numa revisão

bibliográfica, tendo por base referências nacionais e internacionais das temáticas em causa: responsabilidades parentais, sharenting, direitos de personalidade, máxima, direito à imagem e o direito à reserva da vida privada. Posteriormente, levantar-se-ão, para discussão, casos reais

2 BROSCH, Anna - When the Child is Born into the Internet: Sharenting as a Growing Trend among Parents on

Facebook, In: The New Educational Review, 2016, p. 233. Disponível em:

<http://www.educationalrev.us.edu.pl/dok/volumes/43/a19.pdf >. Consultado em: 10-10-2019.

3 LEAL, Lívia Teixeira - O Cuidado na era digital: as novas facetas da afetividade no mundo tecnológico e seus impactos jurídicos – In: Cuidado e Afetividade: projeto Brasil/Portugal – 2016-2017, São Paulo, Atlas, 2017, p.

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9 com o intuito de identificar a legitimidade, ou não, dos pais para a sua exposição. E se esta, sendo positiva, avaliar se há limites para esta exposição além de verificar se o Estado tem legitimidade para intervir em caso de sharenting, como também quais seriam os limites para esta intervenção.

É com o propósito de centrar a nossa investigação, tornando-a tão clara e coerente quanto possível, que a dividimos em duas partes.

Na primeira parte desta dissertação, serão enquadrados os diversos conceitos e definições relevantes para análise, à luz do direito português quanto às responsabilidades parentais e à cabal caracterização da natureza deste poder dever, procurando analisar a perspetiva histórica da criança na família e a respetiva regulamentação que conduziu essa transformação. Para tal, incidir-se-á por abordar a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro que fez importantes alterações em matéria de responsabilidades parentais, cumprindo com um anseio antigo pela substituição da expressão poder paternal por responsabilidades parentais e o superior interesse da criança.4

Num momento seguinte, já no âmbito da Parte II, levar-se-á a cabo um estudo acerca do direito à reserva da vida privada da criança no seio da família, começando por analisar as consequências em que o fenómeno de sharing pode intervir na eficácia do princípio do superior interesse da criança. Seguir-se-á, uma análise ainda tanto quanto sucinta da indisponibilidade do direito à imagem além da suscetibilidade de oposição à exposição por outrem.

Por último, ainda na Parte II, discorrerá quanto à exposição dos menores nas redes sociais por parte dos progenitores e, para isto, apresentar-se-ão dados estatísticos de relatórios com a finalidade de demonstrar o atual cenário ocupado pela Internet na sociedade, assim como na família, para que, finalmente, possa ser abordado de forma específica, o estudo desta dissertação, com a análise casuística e posicionamento da doutrina.

Importa esclarecer que trataremos de analisar casos em que são os próprios progenitores a partilharem momentos íntimos das suas crianças e não ao contrário, isto é, casos em que é a criança que se expõe por livre iniciativa, assim que atinge uma certa “maturidade”.

4 “Ocorre que com a reforma de 2008, não foi apenas o divórcio que mudou [...] Aliás, como decorre do próprio

projeto de lei, que, na exposição dos motivos, declara que a motivação normogenética é conformar a lei com o casamento na era moderna, assente na liberdade de escolha e igualdade de direitos e de deveres entre cônjuges, afectividade no centro da relação, plena comunhão de vida, cooperação e apoio mútuo na educação dos filhos”. Cfr. LANÇA, Hugo Cunha - Cartografia do Direito das Famílias, Crianças e Adolescentes, Lisboa, Edições Sílabo, 2018, p. 117.

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6. Pretende-se, portanto, com a presente dissertação de mestrado, apoiar o avanço na

área em estudo, alertando para possíveis situações de violabilidade dos direitos da criança que urgem mudanças face ao comportamento da sociedade quanto à exposição da vida privada nas redes sociais.

Ex positis, trata-se de um campo cuja problemática tende a crescer em razão de estarmos

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PARTE I - O PODER DEVER NAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS

1. A perspetiva histórica da criança na família

Considerando que a vida privada e familiar tem mais influência na história do que as batalhas e os castelos normalmente narrados e destacados pelos historiadores5, torna-se

pertinente analisar a modificação da conceção de criança no núcleo familiar, perante as inúmeras transformações sociais que a humanidade já atravessou. Ultrapassamos a cabal soberania do pater para então chegarmos à presente noção de igualdade dos progenitores quanto aos deveres de proteção, educação e assistência aos filhos.

Na verdade, pode dizer-se que “sempre que uma criança contesta o sistema familiar em que vive, altera as relações com os pais ou desafia o processo de socialização, está a mudar o mundo”.6 O que vemos ainda é que apesar das crianças constituírem cerca de metade da

sociedade humana, viveram, ao longo da história e até há pouco tempo, numa condição de silêncio e de esquecimento, dado que “o padrão violento dos adultos na relação com as crianças não foi registado pelos historiadores haja vista que a história foi, durante muito tempo, considerada como o registo dos factos públicos e não da vida privada”.7

Inicia-se a compulsão de elementos por volta do ano de 450 a.C., quando vigorava a Lei das XII Tábuas, fonte de direito romano. Dela derivava o patria potestas, que equivalia ao poder do pai sobre os filhos, onde a sua derivação mais extrema era o jus vitae necisque, que se materializava no direito de vida e no direito de morte dos pais sobre os seus filhos.8 Os filhos

podiam, por exemplo, ser objeto de um negócio jurídico como a compra e venda, ou a locação, podendo também o pater-familias dispor de forma livre sobre os bens dos filhos.9 Tratava-se

de uma verdadeira soberania familiar, de cunho absoluto e perpétuo, à qual não punham termo nem a maioridade do filho, nem o seu casamento.10

Durante os séculos XII e XIII, foram concebidos por teólogos e canonistas, modelos da sociedade perfeita, onde era atribuído ao pai um direito absoluto sobre a família no chamado

5 SOTTOMAYOR - Maria Clara, Temas de Direito das Crianças. Coimbra, Almedina, 2016. pp. 17-18. 6 Idem, ob. cit., p. 18.

7 Ibidem, p. 17.

8 MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança: Era uma vez..., Coimbra, Almedina, 2010. p. 17.

9 RODRIGUES, Hugo Manuel Leite - Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2011. p. 17.

10 MOREIRA, Sónia - A Autonomia do menor no exercício dos seus direitos. In Revista: Scientia Ivurídica. Tomo

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patria potesta. Neste contexto, a família assume-se como instituição divina11: a religião não

formava a família, mas ditava as suas regras e estabelecia o direito. Juridicamente, a sociedade familiar era uma associação religiosa e não uma associação natural.12 Por um lado, serviria de

instrumento à Igreja, por outro estaria também ao serviço do Estado, como instrumento de controlo da sociedade em geral. Já a educação dos filhos, consubstanciava um dos fins do casamento.13

Neste contexto, a criança estava ao arbítrio paterno, pessoa que por exemplo, poderia aplicar sanções, privação de recursos, ou mesmo aplicação de castigos corporais ou morais. 14

Simili modo, a prática do infanticídio era comum e atingia sobretudo crianças que eram tidas

como ilegítimas, as do sexo feminino e aquelas se sofressem de alguma deformação física.15

Somente na Idade Média,16 o infanticídio passou a ser mal visto e alvo de censura pelos

seguidores do Cristianismo,17 sendo aqui pela primeira vez indicada a preocupação com a

criança e consequentemente abordado pela primeira vez o direito da criança à vida.18

Já no período entre os séculos XIV a XVI, com o surgimento do humanismo renascentista desenvolvido na Europa, inicia-se o processo de reconhecimento da consideração da criança como um ser com especificidades em relação aos adultos, evidenciando-se uma perceção humanista da infância.19 Nota-se esta especificidade, através do surgimento de

vestuário específico só para as crianças, no facto de estas começarem a serem retratadas nas pinturas e na preocupação pela educação e escolaridade.

Surgem também neste período, os jogos e os brinquedos, tendo em conta que a linha filosófica utilizada na época focava atenção na infância, como corolário da perceção da criança enquanto ser dotado de especificidades em relação ao adulto.

11 CAMPOS, Diogo Leite de - Lições de Direito da Família, 3.ª ed., rev., Coimbra, Almedina, 2016, p. 84. 12 AMIN, Andréia Rodrigues [et al] - Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos,

10.ª ed., São Paulo, Saraiva, 2017, p. 48.

13 CAMPOS, Diogo Leite de - Lições de Direito [...], ob. cit., p. 84. 14 MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança [...], ob. cit., p. 13. 15 MONTEIRO, A. Reis, idem, ob. cit., p. 15-16.

16 Entre os séculos V d.C. à XV d.C.

17 CAMPOS, Diogo Leite de - Lições de Direito da Família e das Sucessões, 2.ª ed., rev., Coimbra, Almedina,

2001, p. 27.

18 Nesta época que se reduziu o infanticídio de filhos legítimos, mantendo-se, contudo, até ao século XIX a prática

de infanticídio quanto a filhos ilegítimos. Cfr. DE MAUSE, Lloyd - La evolución de la infancia. In DE MAUSE, Lloyd - Historia de la infancia. Tradução espanhola de MARTÍNEZ, María Dolores López. 1.ª ed. Nova Iorque:

The Psychohistory Press, 1974, pp. 15 - 92, p. 47. A saber mais, foi por meio de diversos concílios, que a Igreja

foi outorgando certa proteção aos menores prevendo e aplicando penas corporais e espirituais para os pais que abandonavam ou expunham seus filhos.

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13 Foi na idade Moderna que a infância recebeu atenção do filósofo John Locke20, que

entendia o poder paternal como algo substituível, no sentido em que se trata de uma autoridade limitada face à igualde de todos os seres humanos e liberdade que lhes assiste.21 Este autor foi

o primeiro a lançar pedras para a construção do conceito de menoridade e a encontrar no interesse do filho a justificação para os poderes-deveres dos pais, fundando os seus direitos na sua qualidade humana.22

Para Locke, a relação entre pais e filhos é abordada através da noção de poder de domínio dos pais e a submissão dos filhos, sendo recusado às crianças o “estado de igualdade perfeita” de que beneficiam todos os seres humanos, pois “os seus pais possuem uma espécie de poder e de jurisdição sobre elas 23, negando às crianças a capacidade de exercer uma vontade

própria, a ser dever dos pais ditar-lhes o que fazer e regular as suas ações durante a menoridade.24

Diferentemente, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, consagrou a necessidade de se deixar amadurecer a infância nas crianças, ao que lhe subjazia a ideia de distinção da infância sendo esta uma fase para a humanização, considerando a criança como uma pessoa distinta dos adultos, portadora de características especiais e, portanto, necessitada de uma maior proteção.25

Somente com a Revolução Francesa, surgiram os ideais que clamavam pela liberdade e

pela valorização do indivíduo. Dá-se a abolição do patria potestas, que, porém, acaba por regressar no Código Civil de Napoleão, embora com uma formulação mais ténue.26 Apesar

deste contexto de libertação e afirmação dos direitos individuais, continuar-se-á a verificar, no que à família concerne, uma “imunidade de facto” aquando da violação de direitos dos seus membros.27

20 Filósofo inglês, 1632-170.

21 MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança: Era uma vez... [...], ob. cit., p. 24.

22 MARTINS, Rosa - Responsabilidades parentais no séc. XXI: a tensão entre o direito de participação da criança

e a função educativa dos pais. Lex Familiae – In: Revista Portuguesa de Direito da Família. Ano 5. Julho-Dezembro 2008, n.º 10, pp. 25 - 40, p. 28-29.

23 LOCKE, John - Segundo Tratado do Governo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 79. 24 LOCKE, John, idem, ob. cit., p. 81.

25 MARTINS, Rosa - Responsabilidades parentais no séc. XXI: a tensão entre o direito de participação da criança

e a função educativa dos pais. Lex Familiae – In: Revista Portuguesa de Direito da Família. Ano 5 - julho/dezembro 2008, n.º 10, pp. 25 - 40, pp. 28-29.

26 MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança [...], ob. cit., p. 26.

27 PINHEIRO, Jorge Duarte - A tutela da personalidade da criança na relação com os pais”. In: Scientia Iuridica

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14 Embora a família continuasse a ser dominada pelo chefe de família, o século XIX representa um período de transição.28 Inicia-se, nesta época, a progressiva intervenção dos

Estados na ótica de proteção da infância, quer através da ingerência nas questões de poder paternal, quer no domínio da regulamentação do trabalho infantil, fenómeno que se agrava com a industrialização.29

Com a Revolução Industrial, tornou-se recorrente a exploração de trabalho infantil nas fábricas, no desempenho de funções repetitivas e exaustivas,30 onde a criança passa a ser

privada de uma infância e do convívio familiar, para ser vista como instrumento de produtividade industrial, exercendo atividade como um pequeno adulto.

Na mesma época, nascia o primeiro Código Civil Português de 1867, em que a maioridade se atingia aos 21 anos31. O trabalho infantil era legalizado para menores de 10 anos

em fábricas, desde que tivessem instrução primária e compleição robusta conforme previsão do Regulamento de 16 de março de 1893. Ou seja, a autonomia dos jovens para administrarem sua pessoa e os seus bens era cerceada, mas em contrapartida, podiam ser usados desde a infância como instrumentos de lucro das fábricas e de sustento das famílias.32

Foi diante deste contexto que, apenas no século passado, se começa a verificar uma preocupação pela salvaguarda da infância, com o surgimento de sociedades protetoras da infância, a organização de fóruns, simpósios, debates e congressos com vista à consagração da criança como sujeito de direitos. Dessa forma, o século XX é visto como o Século da Criança, após a adoção da Declaração dos Direitos da Criança, em 1959.

No entanto, somente com a Convenção dos Direitos da Criança (CDC) adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de novembro de 1989, e ratificada por Portugal a 21 de setembro de 1990, é que se reconhece como criança todo ser humano com menos de 18 anos , exceto nos casos em que a lei nacional confere a maioridade mais cedo, com previsão no Código Civil no artigo 122.º. Além disso, a CDC traz o dever conferido aos Estados Partes em favorecer a elaboração de princípios orientadores adequados à proteção da criança contra a informação e documentos prejudicais ao seu bem-estar, conforme previsto na alínea e) do artigo 17.º.

28 CAMPOS, Diogo Leite de - Lições de Direito [...], ob. cit., p. 86. 29 MONTEIRO, A. Reis - Direitos da Criança [...], ob. cit., p. 27.

30 MARTINS, Rosa - Responsabilidades parentais no séc. XXI [...], ob. cit., p. 29.

31 Artigo 311.º: “A epocha da maioriade é assignada, sem distinção de sexo aos vinte e um annos completos. O maior fica habilitado para dispor livremente de sua pessoa e bens”.

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2. A Lei nº. 61/2008, de 31 de Outubro e o seu reflexo nas responsabilidades

parentais

No que a Portugal diz respeito, em 1867, após ter sido aprovado e votado pelas Cortes, entrou em vigor o primeiro Código Civil, também denominado de Código de Seabra.33

Norteou-se por uma desigualdade entre pai e mãe, de modo que o marido era o chefe da família e a mãe somente era ouvida nos casos em que pesavam o interesse dos filhos.

O Código Civil de 1867, partindo da incapacidade relativa da mulher casada, atribuía apenas ao pai a titularidade pelo exercício do poder paternal, reservando à mãe o papel de mera colaboradora do marido. As mães, como dizia a lei, participavam do poder paternal e deviam ser ouvidas em tudo que tivesse a ver com os interesses dos filhos.34

O Código de Seabra também diferenciava os filhos legítimos dos ilegítimos, fruto da mentalidade da época e, ainda que o artigo 166.º do referido diploma estabelecesse que os filhos ilegítimos estavam sujeitos ao poder paternal da mesma forma que os legítimos.35

Com a entrada em vigor do Código Civil de 1966, nada se modificou, : continuávamos ainda com o ideal de pater familias, mantendo assim o homem uma posição de supremacia face a mulher. A mulher cuidava dos filhos, era ouvida em assuntos respeitantes ao filho, mas a vontade imperante era do chefe de família, sendo à mulher atribuídas funções do marido apenas quando este se encontrasse impossibilitado.36

Segundo Joana Gomes Salazar, apesar do Código Civil, no essencial, ter acolhido as regras que presidiam à regulamentação do instituto do poder paternal do Código anterior, não deixou, porém, de reorientar o entendimento do instituto através de um novo tratamento sistemático.37

O poder paternal passa, com o Código Civil de 1966, a ser perspetivado pela lei civil como um dos efeitos da relação jurídico-familiar de filiação, pertencendo portanto, ao conjunto

33 Em 1845 foi constituída uma comissão com intuito de elaborar e redigir os códigos Civil e Penal. Apesar de ter

elaborado com sucesso o Código Penal de 1852, a comissão “não cumpriu o seu mandato quanto ao Civil”, motivo pelo qual, em 08 de agosto de 1850, é chamado a redigir um projecto de Código de Civil o desembargador da Relação do Porto, António Luis de Seabra”, que o apresentou em 1858. A partir deste momento é então nomeada uma subcomissão, de que faziam parte o próprio Seabra, Vicente Ferrer, Alexandre Herculando e José Júlio de Oliveira Pinto, com a incumbência de dar ao projecto a sua redação definitiva.

34 AMARAL, Jorge Augusto Pais de - Direito da Família e das Sucessões, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p.

233.

35 RODRIGUES, Hugo Manuel Leite - Questões de Particular Importância [...], ob. cit., p. 18. 36 RODRIGUES, Hugo Manuel, idem, ob. cit., p. 19.

37 SALAZAR, Joana Gomes - O superior interesse da criança e as novas formas de guarda, Lisboa, Universidade

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16 mais extenso dos efeitos da relação entre pais e filhos.38 Foi a partir de então que a titularidade

do exercício do poder paternal passou a pertencer a ambos os progenitores, apesar de haver funções específicas para cada um.39

Com a substituição da antiga Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1933 para a então entrada em vigor da CRP de 1976, houve significativas modificações ao Código Civil em 1977, tendo em conta que então algumas regras passaram a estar em desconformidade com a Lei Maior 40. Apenas com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro,

foi pela primeira introduzido no ordenamento jurídico português, o princípio da igualdade entre cônjuges de forma geral como também nas relações familiares, diga-se em relação também aos filhos.

Para Eduardo Sá, as transformações oriundas da nova Constituição da República de 1976 e, consequentemente, a Reforma do Código Civil de 1977, trouxeram uma conceção de família diferente: “o modelo da pequena família”, formada de aspeto igualitário e democrático, pautada na afetividade, solidariedade, respeito e auxílio mútuos, geradores de direitos e obrigações de ambas as partes.41

Um relevante avanço trazido em conjunto, foi a introdução do princípio da participação no qual prevê que os filhos devem obediência aos pais. Porém, de acordo com a maturidade dos filhos, os pais devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida, conforme previsto no n.º 2 do artigo 1878.º, do CC em vigor.

Com a Constituição de 1976 e a consequente reforma do Código Civil de 1977, o poder paternal passa a ser definido como um feixe de poderes funcionais atribuído pela ordem jurídica aos pais para que eles possam desempenhar a sua função de cuidar dos filhos, protegendo-os e promovendo a sua autonomia e independência.42

Finalmente, consagra-se a partir de então, em conformidade com o disposto nos n.os 3,5 e 6 do artigo 36.º, a igualdade entre os cônjuges, o que pressupõe que o poder dever quanto à educação e manutenção dos filhos passe a ser exercido por qualquer um dos progenitores, garantindo também a inseparabilidade dos filhos, exceto quando não cumpram os seus deveres

38 SALAZAR, Joana Gomes, idem, ob. cit., p. 56.

39 AMARAL, Jorge Augusto Pais de - Direito da Família [...], ob. cit., p. 234.

40 O Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro introduz alterações no Código Civil Português, em especial o

Livro IV – Direito da Família.

41 SÁ, Eduardo - O Poder Paternal, Volume Comemorativo dos 10 anos do curso de pós-graduação de menores – prof. Doutor F. M. Pereira Coelho, org. Guilherme de Oliveira, Coimbra, Editora Coimbra, 2008, p. 65. 42 SALAZAR, Joana Gomes, O Superior interesse [...], ob. cit., pp. 185-192.

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17 fundamentais para com eles. Para além deste, temos o artigo 67.º, enquanto princípio geral e norteador quanto à proteção da família como elemento fundamental da sociedade.

Para Jacinto Bastos, o poder paternal é a autoridade pessoal e patrimonial que a ordem jurídica atribui aos pais relativamente ao filho menor, no exclusivo interesse deste, na medida necessária a prover à guarda e educação do menor e ainda à direção dos seus interesses económicos.43 Para o referido autor, o poder paternal não se apresenta como estando em

oposição à ideia da reciprocidade igualitária da família moderna, porque a sua necessidade surge exatamente da existência de uma desigualdade, objetiva e substancial, gerada pela imaturidade do menor, para tratar adequadamente dos seus interesses pessoais e económicos, a qual é suprida pelos poderes de representação e de administração atribuídos pelos pais.44

A Recomendação n.º R (84) 4, adotada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa a 28 de fevereiro de 1984, optara pela utilização da expressão responsabilidades parentais e define-a como conjunto de poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar moral e material do filho, designadamente tomando conta da pessoa do filho, mantendo relações pessoais com ele, assegurando a sua educação, o seu sustento, a sua representação legal e administração dos seus bens.

De modo similar, a CDC, adota também o princípio de que ambos os pais têm responsabilidade comum na vida e no desenvolvimento da criança, e que constitui responsabilidade prioritária a educação e o bem-estar global da criança conforme o n.º 1 do artigo 18.º e n.º 2 do artigo 27.º.

De forma idêntica também a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, celebrada pelo Conselho da Europa a 25 de janeiro de 2016, utilizou a expressão responsabilidades parentais a propósito da titularidade exercício dos poderes-deveres que integram o poder paternal, de acordo com o n.º 3 do artigo 3.º, alínea b) do artigo 2.º, n.º 1 do artigo 4.º e alínea a) do artigo 6.º da Convenção.45

Assim, quando o legislador português acolheu a designação de responsabilidades parentais, aparentemente, aderiu a esta denominação internacionalmente adotada e que representa, simbolicamente, um deslocamento do eixo do conceito da vertente das faculdades

43 BASTOS, Jacinto Fernandes Rodrigues - Notas ao Código Civil, vol. VII, Lisboa, Almedina, 2002, p. 104. 44 BASTOS, Jacinto Fernandes Rodrigues, idem, ob. cit., p. 104.

45 FIALHO, António José - Guia Prático do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, 2.ª edição, CEJ,

Lisboa, 2013, p. 67. Disponível em:

<http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/guia_pratico_divorcio_responsabilidades_parentais.pdf>. Consultado em: 10-10-2019.

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18 para a vertente das obrigações.46 Trata-se, portanto, de um poder irrenunciável, conforme artigo

1882.º do CC, e intransmissível, inter vivos e mortis causa.

A Lei nº. 61/2008 de 31 de Outubro, n.os 1 e 2 do artigo 3.º, introduziram um anseio antigo de que as epígrafes da Secção II e da sua Subsecção IV do capítulo II do Título III do Livro IV do Código Civil fossem alteradas respetivamente para “responsabilidades parentais” e “exercício das responsabilidades parentais”. Foi este diploma legal que veio introduzir alterações ao regime jurídico do divórcio e as suas consequências para os filhos, como também substituir a anterior expressão “poder paternal” pela expressão “responsabilidade parental”, mudança de designação motivada, segundo o legislador, pela desadequação de um modelo implícito que apontava para o sentido de posse, num tempo em que se reconhece, cada vez mais, a criança como um sujeito de direitos.47

Para Jorge Duarte Pinheiro, a substituição da expressão não é, no entanto, isenta de crítica, resultando em equívoco e duplicação de termos. Equívoco, pois a palavra parental, no português jurídico, é o que diz respeito a parentes, a pessoas unidas por um vínculo decorrente de uma delas descender da outra ou de ambas procederem de um progenitor em comum, visto que as responsabilidades parentais são, originariamente, exercidas apenas por certos parentes, neste caso, os pais, parentes da linha reta ascendente. 48

Para Rosa Martins, esta expressão ajuda a transmitir melhor o modelo democrático de família atualmente em vigor, em que a relação entre pais e filhos é baseada no afeto, respeito mútuo e particular atenção à necessidade de autonomia própria do filho enquanto ser em desenvolvimento, sem descurar a atividade de direcção e supervisão da educação e formação do filho no contexto de uma relação interativa e dialética. 49

Antes da alteração da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, o artigo 1878.º tinha como título “conteúdo do poder paternal”. O poder paternal, tal como agora as responsabilidades parentais, sempre foi entendido segundo uma conceção filiocêntrica, o fulcro das finalidades visadas situa-se na pessoa do filho. 50

Ocorre, todavia, que a alteração de epígrafes e designação dispôs sobre alteração da secção II e da subsecção IV, do capítulo II do título III do livro IV do Código Civil, não sendo

46 LEAL, Teresa Ana [et al] - Poder paternal e responsabilidades parentais, 2.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2010, p.

13.

47 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-10-2011, Processo: 626/09.7TMCBR.C1, Relator: REGINA

ROSA. Disponível em: <www.dgsi.pt>. Consultado em: 11-05-2019.

48 PINHEIRO, Jorge Duarte - Estudos de Direito da Família das Crianças. AAFDL, 2015, p. 331.

49 MARTINS, Rosa – Menoridade - (In)capacidade e Cuidado Parental. Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 227. 50 AMARAL, Jorge Augusto Pais de - Direito da Família [...], ob. cit., p. 231.

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19 citadas substituições nominais em outros Livros do Código Civil, como no caso do Livro I acerca da matéria relativa a incapacidades, como também em outros diplomas legais a citar, a Organização Tutelar de menores (OTM), Decreto Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro.

Para Helena Gomes de Melo [et al], os conceitos de poder paternal e responsabilidades parentais são internacionalmente usados como sinónimos, tratando-se de mera preferência terminológica, podendo-se concluir que a norma deve ser interpretada latamente: todas as todas as referências ao poder paternal devem passar a ler-se como referidas a responsabilidades parentais.51

A responsabilidade parental enquadra-se num preceito de irrenunciabilidade conforme o que se encontra previsto no artigo 1882.º do CC, isto é, os pais não podem renunciar as responsabilidades parentais nem qualquer dos poderes-deveres que lhes são conferidos, no sentido em que se trata de um poder e mesmo de uma proibição com sentido de interesse público e ordem pública.

No caso de incumprimento, por parte de um dos progenitores, de alguma das responsabilidades parentais, pode o outro requerer ao tribunal, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa e em indemnização a favor da criança, do querentes ou de ambos, com base no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015.52

Além da substituição da expressão “poder paternal” pela “responsabilidades parentais”, foi introduzido também o exercício em comum de tais responsabilidades, quer nos casos em que os progenitores nunca tenham vivido juntos, quer nos casos em que vivam em união de facto, mas não tenham declarado que o exercício paternal devia ser exercido em comum. Foi posto termo também na presunção que havia onde o poder paternal pertencia ao cônjuge com quem estivesse a guarda do filho, presumindo-se sempre a mãe.53

Na constância do casamento, a titularidade do poder paternal pertence a ambos os pais, é o que está em epígrafe no artigo 1901.º do Código Civil. Ocorre, entretanto, que mesmo cabendo titularidade do poder a ambos, pode ser que apenas a um deles pertença o seu exercício.

Outra questão sanada com a entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, é a da distinção entre as questões de particular importância na vida do menor, que são exercidas

51 MELO, Helena Gomes de [et al.] - Poder paternal e responsabilidades paternais. 2.ª ed., Quid Juris, 2010, p. 13. 52 AMARAL, Jorge Augusto Pais de - Direito da Família [...], ob. cit., p. 233.

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20 por ambos os progenitores, e as questões relativas aos atos correntes da vida do menor, que cabem àquele progenitor com quem o filho reside habitualmente.

Antes da reforma, o exercício das responsabilidades parentais cabia a ambos os progenitores quando: na constância do casamento (n.º1 do artigo 1901.º); se, tendo cessado a vida em comum, tivessem os progenitores chegado a acordo homologado por sentença, sobre o exercício conjunto do poder paternal (n.º 1 do artigo 1905.º, n.º2 do artigo 1906.º e artigo 1.909.º); e também nos casos em que os progenitores vivam em união de facto, se tivessem declarado, perante o funcionário do registo civil, a sua vontade de que o poder paternal fosse exercido por ambos (n.º 3 do artigo 1.911.º).

Com a nova lei, introduz-se a regra segundo a qual as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância na vida do filho são exercidas simultaneamente pelos progenitores conforme encontramos nos artigos 1.906.º, 1.911.º e 1.912.º.

No entanto, deparamo-nos com os casos de exceções em que as responsabilidades parentais são exercidas apenas por um dos progenitores, nos casos, a saber: nas situações em que se verifica impedimento de um dos pais (artigo 1.903.º); havendo morte de um dos progenitores (artigo 1.904.º); e também, nos casos em que a filiação se encontra estabelecida apenas enquanto a um dos progenitores, divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, o tribunal pode decidir a quem caberá exercer as responsabilidades parentais, em harmonia com o interesse do menor, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto e de partilha de responsabilidade entre eles (n.º 7 do artigo 1.906º).

Tratando-se de casos onde os progenitores coabitam, estes devem exercer conjuntamente as responsabilidades parentais, id est, independente de serem casados ou viverem em união de facto, estes deverão decidir, de comum acordo, todas as questões que dizem respeito à vida do menor, quer seja situações de particular importância, quer seja situações da vida corrente do filho. Porém, não havendo acordo quanto às questões de particular importância, deve, o tribunal, decidir em conformidade com o que dispõem os artigos 34.º e seguintes do RGPTC.

Importante destacar que o n.º 3 do artigo 1.901.º, já prevê, de forma sublime, que quando não for possível alcançar a conciliação necessária, o tribunal ouvirá o filho antes de decidir, salvo quando circunstâncias ponderosas o desaconselhem.54

54 Antes desta referida última alteração legislativa, o menor só seria ouvido quando tivesse atingido a idade mínima

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21 Na prática do exercício das responsabilidades parentais por um dos pais, presume-se que este agiu de acordo com o outro, salvo quando a lei expressamente exija o consentimento de ambos os progenitores ou se trate de ato de particular importância, com a atenção de que a falta de acordo não é oponível a terceiro de boa-fé (n.º 1 do artigo 1.092.º, e n.º 1 do artigo 1.911.º). Estes casos são compreensíveis dado que, os atos da vida do filho são numerosos e sabe-se que, muitas vezes, pela situação da família moderna, torna-se inviável reunir constantemente com o intuito de obter acordos, por isso entende-se que a lei presumiu a existência de acordos.

Sabemos, porém, que a presunção da existência de acordos, não irá recair sobre todos os atos que integram o exercício das responsabilidades parentais, ressalvando-se os casos em que a lei exija expressamente o consentimento de ambos os progenitores. A exemplo, citamos o n.º 2 do artigo 16.º do Código de Processo Civil (CPC), que prevê a necessidade do acordo de ambos para a propositura de ações, e o artigo 18.º, também do mesmo diploma, quanto aos casos em que se verifica desacordo dos pais na representação do menor acerca da conveniência de intentar ação.

Partimos neste momento, no que diz respeito aos atos de particular importância da vida do filho. Para Jorge Augusto Pais de Amaral, trata-se de um conceito indeterminado. No entanto, para a qualificação de qualquer ato como sendo de particular importância deve optar-se por um critério objetivo em vez de lhe dar importância subjetiva que lhe é atribuída por um dos progenitores.55 Id est, trata-se de questões que pertencem ao núcleo essencial dos direitos

que são reconhecidos às crianças, conforme previsto na exposição de motivos dos trabalhos preparatórios do projeto de Lei n.º 61/2008.

Tratando-se de progenitores divorciados, que deixaram de viver juntos ou que nunca moraram juntos, o exercício das responsabilidade parentais relativas a atos da vida corrente do filho, cabe ao progenitor com quem ele resida habitualmente, ou ao progenitor com quem ele se encontra temporariamente; porém, este último, ao exercer as suas responsabilidades, não deve contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pelo progenitor com quem o filho reside habitualmente. (n.º 3 do artigo 1.906.º, n.º 2 do artigo 1.911.º e n.º1 do artigo 1.912.º.)

Salientamos ainda que, em caso de urgência manifesta, o legislador permite que qualquer um dos progenitores possa agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo

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22 que possível, como resulta da redação do n.º1 do artigo 1.906.º. Tratam-se de acontecimentos inusuais, onde os dois progenitores estarão a cooperar à volta dos assuntos que têm um interesse relevante para a vida do filho, dado que impor o exercício conjunto implicaria frequentes comunicações dos progenitores, algum dramatismo na sua resolução, maiores conflitos, mais incidentes de incumprimento, que em nada beneficiaria a criança, pelo contrário.56 Tudo

porque, parece subjazer que o exercício das responsabilidades, juntamente com os deveres, condizem a uma atribuição igualitária do exercício de ambos os progenitores, ou seja, a sua existência pauta-se no interesse do menor e não dos seus progenitores.

É assim que as responsabilidades parentais devem portanto, ser entendidas num contexto adequado, como poderes-deveres funcionais que devem ser exercidos altruisticamente no interesse do filho, em harmonia com a função do Direito, consubstanciada no objetivo primacial de proteção e salvaguarda do superior interesse da criança que nada mais é verdadeira razão de ser, o critério e o limite daquelas responsabilidades. 57

O artigo 18.º da CDC, prevê que cabe aos pais a principal responsabilidade comum de educar a criança, e o Estado deve ajudá-los a exercer esta responsabilidade, devendo o Estado conceder uma ajuda apropriada aos pais na educação dos filhos.

Até ao momento tratamos de precauções apresentadas quanto ao exercício das responsabilidades parentais no que diz respeito ao superior interesse da criança em relação a ambos os progenitores. Entretanto, ensejamos uma breve análise se o Estado poderia/deveria intervir no exercício das responsabilidades parentais, e se assim sendo, qual seria o limite dessa intervenção.

Para Joyceane de Menezes, embora não haja no âmbito do Direito de Família um limite estrito a definido entre o público e o privado, tal direito diz respeito à vida relacional entre os que compõem a unidade familiar, dentre interesses e valores pelos membros da família compartilhados, motivando decisões e projetos comuns, pertinentes à administração da família, ao planeamento familiar, à educação dos filhos e à vida doméstica. A família corresponde a um espaço de convivência, protegido contra as ingerências externas arbitrárias, onde não caberia

56 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-10-2011, Processo n.º 626/097TMCBR.C1, Relator:

REGINA ROSA. Disponível em: <www.dgsi.pt>. Consultado em: 02-10-2019.

57 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-04-2012, Processo n.º 612/09.7TMFAR.E1, Relator: MARIA

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23 ao Estado intervir, em razão aos muros que cercam o lar, na qual a ideia de privacidade está em oposição à vida pública.58

A nosso ver, a intervenção do Estado perpassa por situações complexas que recaem no princípio da dignidade da pessoa humana face à proteção da liberdade individual, autonomia da vida privada e familiar além do princípio da intervenção mínima do Estado, muito importante para que não haja ingerências do arbitrárias, a fim de manter a separação entre o público e o privado, garantindo assim, o livre desenvolvimento da personalidade, que é o objetivo principal das responsabilidades parentais.

Para Renata Multedo59, não cabe ao Estado interferências quanto à autodeterminação

da família, por se tratar de um espaço de livre desenvolvimento da personalidade, não podendo ser alvo de nenhuma intervenção legislativa ou judicial que esvazie o seu sentido. Entretanto, pondera a possibilidade de haver intervenção na vida privada familiar com intuito de assegurar, no caso concreto, a primazia de um interesse maior, nesta circunstâncias, sendo possível para proteger o superior interesse da criança.

E é este o travejamento que nos serve de parâmetro para a nossa análise hoc casu.

58 MENEZES, Joyceane Bezerra de - A família e o direito de personalidade: cláusula geral de tutela na promoção da autonomia e da vida privada, in Revista Direito UNIFACS, 2013, p. 15. Disponível em:

<https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/5456>. Consultado em: 10-08-2019.

59 MULTEDO, Renata Vilela - Liberdade e Família – Limites para intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais, Rio de Janeiro, Editora Processo, 2017, p. 51.

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PARTE II – EM ESPECIAL, O DIREITO À RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA DA CRIANÇA NO SEIO DA FAMÍLIA

Num mundo cada vez mais interligado com a sociedade da informação sem barreiras, que além de disponibilizar notícias aos utilizadores também permite comunicação em tempo real entre as pessoas, traz consigo dificuldades para distinguirmos o que seria objeto da privacidade humana, com aquilo que, por vontade própria, as pessoas tornam público. Acontece que, quando se trata de publicações relacionadas diretamente com a esfera da vida privada e familiar, muitos pais acabam por ameaçar o direito de privacidade dos seus filhos menores, dispondo nos media imagens e vídeos de momentos íntimos da criança sem refletir no que, a longo prazo, tais exposições podem causar prejuízos a vida dos seus filhos.

A noção de vida privada surge no período do Estado Liberal, século XVII e correspondia a um aspeto do status social da burguesia, onde a intimidade estava relacionada ao direito que aqueles tinham à propriedade, ao contrato e em intromissões físicas na propriedade das pessoas.

No entanto, foi apenas no final do século XVIII e início do século XIX, com o desenvolvimento industrial, que a reserva da vida privada passa a ser relacionada com a dignidade da pessoa humana e não com o direito à propriedade. O aprimoramento das técnicas e da ciência começam a pôr em risco a vida privada das pessoas, e a privacidade passa a ser vista como algo inerente à condição humana, como uma necessidade intrínseca do indivíduo.

Dentro da esfera jurídica, a primeira alusão ao direito à privacidade, reporta-se à obra do juiz Thomas Cooley, em 1880, quando sob o título A treatise on the law of torts utilizou a expressão “right to be let alone” – o direito de ser deixado só. Contudo, Cooley não relacionou a expressão com o sentido de privacy, tratando apenas sobre responsabilidade civil (torts)60.

Assim sendo, só em 1890, que surgiram os primeiros autores a defenderem a reserva da vida privada como algo que carecia de uma proteção jurídica. Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis61, advogados norte-americanos, publicaram um artigo jurídico na revista Harvard

Law Review intitulado The Right to Privacy - O direito à privacidade, onde defenderam a

existência do direito a ser deixado só, ou seja, o direito de ser deixado em paz e não ter a privacidade devassada por outros, independentes sejam esses de origem privada, institucional ou estatal, no exercício das mais diversas atividades62. O estudo, aparentemente, importava-se,

60 Thomas Cooley utiliza pela primeira vez a expressão to be let alone ao afirmar que: “The right to one´s person may be said to be a right of complete immunity: it to be let alone”. COOLEY, Thomas McIntyre - A treatise on the law of torts, Chicago, Callaghan, 1880, p. 29.

61 WARREN, Samuel D., BRANDEIS, Louis D. - The right to privacy, Harvard Law Review, Vol. IV, 1890. 62 CORREIA, Victor, Sobre a privacidade, Sinapis Editores, 2016, p. 64.

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25 com a necessidade de estabelecer um limite jurídico para intromissões da imprensa na vida privada.63 Contudo, há várias indagações quanto às razões que os levaram a escrever a

respeito da privacy. Para alguns estudiosos, tratou-se de uma resposta ao sensacionalismo utilizado pela mídia na época, enquanto que, para outros, especulou-se tratar de uma reação direta contra os abusos cometidos pela imprensa face à família de Warren, que era considerada uma das famílias mais influentes na sociedade de Boston no final do século XIX. Qualquer que seja a real motivação, não se pode negar a grande importância do artigo no âmbito da commum

law.64

Na Europa, a ideia de privacidade, surge no final do século XIX, com o término na 2ª Guerra Mundial e o avanço das telecomunicações, entretanto, sem acompanhar o entendimento anglo-americana de privacy 65. Não se pretendia um direito de isolamento absoluto, mas sim,

uma proteção jurídica relacionada com a dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Oliveira Ascensão, na sua matriz europeia torna-se diferente por ser um direito prevalentemente

defensivo, que coexiste com vários outros da mesma índole como os direitos à inviolabilidade do domicílio, ao sigilo de correspondência, à imagem [...].66

Quanto a Portugal, o direito à privacidade está relacionado com a proteção de mais de um prisma, não envolvendo apenas a relação do indivíduo com outras pessoas, mas também associado à sua vida em sentido mais amplo, como a proteção da sua imagem, dos seus escritos, das suas opiniões pessoais que a depender do seu próprio desejo, pode ser resguardado livre da curiosidade alheia.

Na senda da lição de Heinrich Hubmann, também Oliveira Ascenção, entende existirem três tipos de privacidade que precisam de ser respeitadas, e são denominadas de três esferas: a individual, a privada e a secreta. 67De acordo com o autor, a esfera individual está relacionada

63 Warren e Brandeis consideram a proteção do privacy uma necessidade ao escreverem que: “The intensity and complexity of life, attendant upon advancing civilization, have rendered necessary some retreat from the world, and man, under the refining influence of culture, has become more sensitive to publicity, so that solitude and privacy have become more essential to the individual; but modern enterprise and invention have, through invasions upon his privacy, subjected him to mental pain and distress, far greater than could be inflicted by mere bodily injury” WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. - The right to [...], ob. cit., p. 196.

64 WAGNER, Wienczyslaw J. - Le “droit à l’intimité” aux Etats-Unis. Revue Internationale de Droit Comparé,

v. 17, n. 2, p. 365- 376, abr./jun. 1965. p. 366).

65 Torna-se oportuno mencionar ainda, que o termo anglo americano “privacy”, não corresponde a palavra

“privacidade” em tradução literal para a língua portuguesa. Após a publicação do artigo de Warren e Brandeis, e seguidamente com as primeiras decisões acerca do assunto, o privacy revela assumir uma vocação para diversos direitos de personalidade, não apenas ao direito à privacidade.

66 ASCENSÃO, José de Oliveira - A reserva da intimidade da vida privada e familiar, In Revista da Faculdade

de Direito da universidade de Lisboa, Vol. XLIII – n.º 1, Coimbra Editora, 2002, p. 15.

67 ASCENSÃO, José de Oliveira - Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I (Introdução as Pessoas, os Bens) 2.ª ed.,

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26 com todos os elementos capazes de identificar a pessoa. Ou seja, “qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respetivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável” 68, conforme definido no artigo 3.º, alínea

a) da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, Lei da Proteção de Dados Pessoais. A esfera privada, corresponde a uma parcela da vida resguardada de todo o conhecimento àqueles que não integrem a vida familiar, conforme proteção constitucional prevista no n.º1 do artigo 26.º. Por fim, a esfera secreta é composta por aspetos mais pessoais, isolados, fechados à consciência.69

Dentro de um sistema tripartido, de modo similar a Oliveira Ascenção, temos a doutrina alemã que utiliza um sistema baseado em três esferas de privacidade: a vida pública que nos

remete à existência da vida em coletividade; a vida privada que corresponde à partilha apenas

com um grupo restrito de pessoas, podendo ser família ou amigos, e a vida íntima que seria tudo aquilo que deveria ser desconhecido a outras pessoas.70

Para o Tribunal Constitucional Alemão, o direito à reserva da vida privada equipara-se a uma autodeterminação, pela qual se abrange o direito do ser humano em fazer escolhas essenciais no que diz respeito à sua intimidade, comportando também o direito ao segredo, tendo em conta que a divulgação intempestiva de factos próprios do sujeito seja de molde a ameaçar o exercício efetivo de outras liberdades.71

Acontece, no entanto, que o entendimento não é pacífico. Para Pedro Pais de Vasconcelos, os limites de privacidade de certa pessoa, não serão os mesmos em relação a outra, e acrescenta que entre o íntimo e o público, haverá uma escala progressiva e gradual que não pode ser resumida a três esferas, obedecendo a critérios totalmente subjetivos e relacionados ao caso concreto.72

Em termos internacionais expressos, foi somente em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem que, pela primeira vez, se reconhece a defesa pelo direito à privacidade, ao afirmar no artigo 12.º que: “[N]inguém sofrerá intromissão arbitrária na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à proteção da lei”.

68 ASCENSÃO, José de Oliveira, idem, ob. cit., p. 123 ss. 69 ASCENSÃO, José de Oliveira, ibidem, ob. cit., p. 123 ss.

70 CABRAL, Rita Amaral - O direito à intimidade da vida privada, Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1989, p. 398 e ss.

71 NETO, Luísa - Novos Direitos. Ou novo(s) objeto(s) para o Direito?, Porto: UPorto, 2010, p. 67. 72 VASCONCELOS, Pedro Pais de - Direito de Personalidade, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 80 e ss.

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27 Posteriormente, a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, em 1950, determina no seu n.º 1 do artigo 8.º que: “Toda pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”.

Por fim, o Pacto Internacional relativo aos direitos civis e políticos, em 1966, declara no seu artigo 17.º que: “Ninguém será objeto de intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio, ou na sua correspondência, nem de ataques ilegais à sua honra e à sua reputação. Toda a pessoa tem direito à proteção da lei contra tais intromissões ou tais atentados”.

A CDC também aborda a questão e dispõe no n.º 1 do artigo 16.º que: “Nenhuma criança pode ser sujeita a intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou correspondência, nem a ofensas ilegais à sua honra e reputação”. No entanto o que se verifica, na maioria das vezes, é a ampla e excessiva divulgação, por parte dos progenitores, de imagens dos menores, não resultando de qualquer preocupação com o dever de proteção e segurança dos seus filhos, que se encontram a seu cargo.

Sabe-se que é cada vez mais difícil resguardarmos o direito à privacidade, visto que a vida privada é, como refere Luísa Neto, o conjunto de atividades, situações, atitudes ou comportamentos individuais, que não têm relação com a vida pública, que estão desta separados, e que estão estritamente ligados à vida individual e familiar da pessoa, são expostas pelos próprios membros do núcleo familiar, a quem caberia serem os responsáveis do resguardo da vida íntima.73

O direito à reserva da intimidade da vida privada, tem previsão constitucional no título II, capítulo I sobre os direitos, liberdades e garantias pessoais, respetivamente no artigo 26.º, n.º 1, que corresponde ao direito do ser humano, se assim o querendo, através de um critério facultativo, conservar na esfera não pública e reservada todos os dados pessoais que pertençam à sua vida privada e familiar, dispondo deste como titular do direito, impedir o acesso, emprego e revelação de seus dados, em moldes que não tenham sido por si previamente autorizados e, simultaneamente, beneficiando de um direito ao conhecimento, retificação, atualização e eliminação dos respetivos dados pessoais informatizados.74

O Código Civil estabelece no n.º 1 do artigo 80.º, que é dever de todos guardar a reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem. Note-se que este artigo, preocupa-se com os

73 NETO, Luísa - Novos Direitos [...], ob. cit., pp. 66 e 67.

74 MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui - Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª ed., Coimbra editora,

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28 factos que são compartilhados com uma pessoa, mas que não dá o direito a esta em tornar público à terceiros os pormenores íntimos da vida de quem assim querendo os compartilhou.

A título de exemplo, existem os casos do sigilo do padre quanto àquilo que lhe foi confessado por um fiel ou ainda nos casos dos médicos que são regidos ao sigilo face à proteção das informações de saúde de um determinado paciente. De modo semelhante, trazemos a importância de que exista também o mesmo dever nas relações familiares entre os seus membros, ou seja, deve haver discrição e sigilo para que os factos que componham a intimidade não venham a ser expostos fora do núcleo familiar, tendo em conta que pais e filhos têm o dever de se respeitarem mutuamente, conforme disposto no n.º 1 do artigo 1.874.º do CC.

Além do respeito mútuo, é dever dos pais zelar pela segurança dos filhos, como disposto no n.º 1 do artigo 1.878.º e, deste modo, o que pode traduzir também, que lhes cabe não só averiguar o modo de utilização da internet pelas crianças, mas como também zelar pela suas próprias condutas para que não violem o direito que lhes caberia assegurar.

Quanto a isso, Maria de Moraes afirma que a proteção garantida nos dias atuais, é insuficiente, posto que a tutela do direito à privacidade continua a passar por novos e grandes desafios.75 Perante o desenvolvimento tecnológico, máxime o crescimento de possibilidades de

sua violação provenientes da difusão da Internet, não podendo ser vista apenas para salvaguardar o sigilo íntimo da pessoa, mas deve-se expandir com intuito de proteger os dados pessoais diante das diversas possibilidades de violação trazidas pela ciência e tecnologia contemporânea.76

Interrogamo-nos também, quanto à proteção dos direitos de personalidade dos menores, por parte dos pais, sobretudo, quanto ao direito à imagem do menor, face ao crescimento das partilhas de imagens e vídeos nos espaços cibernéticos publicados pelos próprios progenitores a quem caberia o resguardo da privacidade dos filhos. A partilha de momentos vividos numa rede social, e a consequente espera de likes, ainda que por um grupo restrito de pessoas, satisfaz apenas o desejo daquele que publica, neste caso, um desejo de aprovação dos pais que, muitas vezes, se diverge do superior interesse da criança.

Nesse sentido, o que pretendemos averiguar centra-se nas possíveis medidas cabíveis quando o detentor da obrigação de salvaguardar o superior interesse do menor, é aquele que

75 MORAES, Maria Celina Bodin de - Na medida da pessoa humana, Estudos de Direito Civil Constitucional,

ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2010, p.57

(29)

29 divulga fotografias ou vídeos nas redes sociais, revelando momentos íntimos da vida da criança, estando, dessa forma, a violar sobretudo, o direito à imagem e a reserva da vida privada desta. Com isto, fortalecemos o entendimento que crianças e jovens devem ser vistas como titulares de direitos e não serem tratadas como pertença dos pais, não sendo dignas de opinarem sobre os seus próprios interesses e vontades, onde os adultos em jogo, detentores das responsabilidades parentais, não conseguem prever o quanto isso a longo prazo possa ser ameaçador e vir a custar muito caro na vida dos menores.

As políticas de segurança e privacidade nas redes sociais passam despercebidas na grande maioria das vezes, por parte dos progenitores, que não se apercebem que podem estar a favorecer o uso indevido dos dados e informações dos menores, afetando, dessa forma, o futuro dessas crianças. Futuro esse, ainda incerto dado que ainda não sabemos, ou nunca saberemos onde a tecnologia poderá ser capaz de chegar e destruir com o direito do ser humano de ser deixado em paz.

Nesse contexto, para Stefano Rodotà cada vez mais se torna frágil uma definição para “privacidade”, assim como o “direito a ser deixado só”, posto que “decaem em prol de definições cujo centro da gravidade é representado pela possibilidade de cada um controlar o uso das informações que lhe dizem respeito” 77. Ou seja, para o autor, na atual sociedade da

informação, a privacidade surge como a possibilidade de uma pessoa conhecer, controlar, endereçar, interromper o fluxo das informações com ela relacionadas. Por outras palavras, o direito de manter o controlo sobre as próprias informações, cabendo àquele que titulariza o direito à privacidade, interromper o fluxo das informações com ele relacionadas, como também exigir a circulação controlada de suas informações.78

Por fim, os pais possuem um papel muito significativo neste processo. Cabendo-lhes resguardar as crianças e promoverem um ambiente capaz de favorecer um desenvolvimento saudável para a personalidade destas, com respeito a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que o meio social onde se encontra, influenciará sua forma de ver o mundo, inclusive no que diz respeito ao entendimento de privacidade.

77 RODOTÀ, Stefano - A vida na sociedade de vigilância – a privacidade hoje, Organização, seleção e

apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes, Tradução Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda, Rio de Janeiro, 2008, p. 24.

Referências

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