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A RECEPÇÃO DE HOTEL BRASIL, O MISTÉRIO DAS CABEÇAS DEGOLADAS

As cinco resenhas a respeito do romance Hotel Brasil giram em torno de critérios sociais. Entre as cinco, duas foram escritas pelo mesmo resenhista, Antonio Carlos Ribeiro Fester57. Ele observa que “não bastassem seus ensaios, sua teologia da libertação, a ficção de Frei Betto ocupa- se dos privados dos direitos fundamentais” (FESTER, 1999a). Há, para o resenhista, uma correlação entre a obra ensaística de Betto e sua obra ficcional. Ambas, segundo ele, se preocupam com aqueles que são despojados de seus direitos. Fester, então, se preocupará em apresentar a temática da ficção bettiana livro a livro, a fim de ratificar a afirmação anterior:

Em Uala, o amor, temos a questão indígena; em A menina e o elefante, a coragem de assumir a alteridade, a identidade; em O Vencedor, o drama das drogas; em Alucinado som de tuba, a criança que mora na rua; com A vida

suspeita do subversivo Raul Parelo (contos) e com o romance O Dia de Ângelo,

a repressão. O que Frei Betto entende por Direitos Humanos está magistralmente expresso naquela que talvez seja sua obra máxima, Entre todos os homens, o romance em que biografa Jesus (FESTER, 1999a).

Ao apontar os principais assuntos abordados por Betto em sua literatura ficcional, Fester enfoca a questão dos direitos humanos. Embora essa problemática, aos olhos do resenhista, pareça mais evidente em Entre todos os homens, ainda assim, pelos temas por ele elencados, é possível afirmar que a obra ficcional bettiana se preocupa com os direitos essenciais dos seres humanos. A temática, portanto, é visivelmente social: a questão indígena, as crianças de rua, a repressão, as drogas, bem como a alteridade (enfoque mais subjetivo do que os anteriores). Segundo Lehnen, “na literatura brasileira contemporânea, o conceito do „direito a ter direitos‟ se manifesta de maneiras diferentes” (LEHNEN, 2018, p. 15). Na obra ficcional de Betto – ao menos parece ser o que Fester deseja demonstrar em sua resenha – os direitos humanos se referem a uma gama de direitos, tais como: o direito a ser diferente (alteridade), o direito à liberdade (repressão), o direito à infância (crianças de rua), o direito à recuperação (drogas), bem

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Embora as duas resenhas sejam parecidas, de tal modo que a resenha “Hotel Brasil” (1999a) possa ser vista como um resumo de “Brasil assassino?” (1999), há um parágrafo adicional que a torna peculiar. Todavia, uma vez que o resenhista é o mesmo e que as resenhas são sobre o mesmo romance, elas serão analisadas conjuntamente, com a devida distinção de referência bibliográfica.

como o direito à terra e à cultura (indígenas). Contudo, ao afirmar que o que se “entende por direitos humanos está magistralmente expresso” em Entre todos os homens, uma releitura dos evangelhos, Fester aponta a construção de um Cristo que priorizava a vida e reivindicava os direitos de todos os seres humanos58.

Ao se referir especificamente ao romance Hotel Brasil, Fester afirma que Betto nos dá “um retrato da realidade brasileira excludente” (FESTER, 1999). Ele ainda dirá que aparecem “mais uma vez, em sua obra, os excluídos, o submundo, este Brasil tão difícil de se viver, tão pouco hospitaleiro como o hotel do livro” (FESTER, 1999). Se “mais uma vez” os excluídos adentraram a obra de Betto é porque, como visto no parágrafo anterior, já haviam adentrado previamente. Sendo assim, novamente a temática dos direitos humanos se faz presente na narrativa bettiana. Sua tônica agora é a inclusão social em um país tão pouco amistoso para com seus filhos e filhas. Além do que, na leitura de Fester, o Brasil do romance é uma metáfora do nosso país. A falta de hospitalidade do hotel Brasil, onde os inquilinos eram assassinados dentro de seus quartos, é metaforicamente traduzida como a falta de hospitalidade do nosso país.

Ainda que de forma superficial, Fester aponta aspectos literários em sua resenha. Ele fala a respeito da representação das personagens em Hotel Brasil. Em sua compreensão, “a construção de cada personagem (muitas vezes um capítulo) fornece-nos um retrato de vida, denso e sintético, da gente que habita o Brasil” (FESTER, 1999). Novamente ocorre a analogia do Brasil real com o hotel Brasil. As personagens, desse ponto de vista, teriam sido pensadas a fim de retratar personagens-tipo, representando a variedade e a diversidade cultural e social do povo brasileiro. Outra parte referente à questão formal da obra trata acerca da trama. Para Fester, o romance acontece “em tom monocórdio, como o de muitos filmes de Alfred Hitchcock, com uma trama bem urdida e amarrada, em que nenhuma frase é ociosa, o livro nos retém” (FESTER, 1999).

A resenha de Márzia Figueira também apresenta critérios sociais em sua análise do romance. Segundo a resenhista, “o que não é coincidência [na narrativa] é o Hotel Brasil. Retrato em preto e branco, sem retoques, do Brasil de hoje, enredado em uma história policial que reserva ao leitor suspense, espanto e surpresas” (FIGUEIRA, 1999). Semelhantemente à resenha anterior,

58 Esta é a mesma impressão que tive ao analisar o romance Entre todos os homens (atualmente com o título Um homem chamado Jesus). A fim de ratificar a leitura de Fester, segue um trecho de minha análise da relação autor- personagem no romance em questão: “Nesse contexto, a relação do autor de Um homem chamado Jesus e seu protagonista pode ser entendida da seguinte maneira: em ambos, autor e personagem, existe certa preocupação com a defesa da vida e com a luta pelos direitos de cada ser humano, especialmente dos menos favorecidos e daqueles que se encontram excluídos da sociedade” (CASAGRANDE, 2011, p. 83).

há novamente por parte do resenhista uma correlação entre o nome de nosso país e o nome do hotel descrito no romance. O romance Hotel Brasil, por essa ótica, seria uma espécie de representação do Brasil dentro da ficção.

A trama, segundo Figueira, é tão bem construída que o leitor chega a se perder na elucidação do crime. As pistas deixadas pelo autor ao longo do texto não são suficientes nem para o delegado nem para o leitor desvendarem o crime, ao menos do ponto de vista de Figueira. Por essa razão, a resenhista afirmará que “a investigação prossegue [...] com o delegado confuso e aturdido, exatamente como o leitor, que também se perde na trama” (FIGUEIRA, 1999). Ao fim de sua resenha, há um elogio à forma como Betto constrói a narrativa, que parece ter agradado à resenhista. Se o delegado, uma personagem, e o leitor ficam perdidos em meio à trama, o autor sabe muito bem o que está fazendo:

Quem não se perde é o autor: Frei Betto, que pela primeira vez investe no romance policial, embora não atinja a perfeição de Entre Todos os Homens, gênero em que pode ser considerado mestre, dá conta do recado direitinho. Com

Hotel Brasil não chega a ser um Rubem Fonseca, por exemplo, mas em

compensação o final surpreendente que inventou para sua história é um notável achado (FIGUEIRA, 1999).

Assim como na resenha primeira, há novamente um voto de louvor ao romance Entre todos os homens. Se Fester havia dito que Entre todos os homens é a obra máxima de Frei Betto, Figueira diz que com o Cristo romanceado Betto atinge a perfeição literária. Ambos os resenhistas parecem entender que embora Hotel Brasil seja um bom romance, não há, nele, contudo, a mesma robustez literária de Entre todos os homens. Não obstante, ao afirmar que “com Hotel Brasil [Frei Betto] não chega a ser um Rubem Fonseca”, a resenhista confronta a obra de Betto com a daquele que é tido como o grande nome do romance policial brasileiro. Segundo Jauss, “a implicação estética reside no fato de já a recepção primária de uma obra pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, pela comparação com outras obras” (JAUSS, 1994, p. 23). Ao comparar a obra de Betto com a obra de outro autor, a crítica atribui um primeiro juízo de valor à ficção bettiana. Portanto, se a obra de Frei Betto não passou pelo crivo da avaliação histórica, uma vez que faz parte da literatura contemporânea, ainda assim sua valoração estética pode ser concebida por meio da comparação com outras obras literárias.

A terceira resenha a ser analisada se inicia apontando a religiosidade do autor, valendo- se, desse modo, de critérios biográficos para a análise da obra literária. Segundo Alécio Cunha, resenhista, “à primeira vista, pode parecer estranho que um religioso como Frei Betto, uma das

principais bases teóricas da Teologia da Libertação, aventure-se pelo gênero que consagrou escritores como Dashiell Hamett e Raymond Chandler e é, em essência, o ponto de partida para as tramas intrincadas de Rubem Fonseca” (CUNHA, 1999). A fim de repensar tal estranhamento59, Cunha apresentará as demais incursões ficcionais de Betto, alegando que o autor já é veterano na escrita da ficção. Assim, ele dirá que “ele [Frei Betto] tomou a liberdade com textos bíblicos no incompreendido „Entre Todos os Homens‟, uma visão lírica e plural do cotidiano de Jesus Cristo. Lidou também com o erotismo em contos de seu livro „O Aquário Negro‟, publicado pelo Círculo do Livro, em 1986” (CUNHA, 1999). Algo parecido já havia sido aventado pelos resenhista de O Dia Ângelo, que também observara a religiosidade de Betto como uma particularidade própria desse autor. Ninguém estranharia um escritor que fosse médico, advogado, professor ou funcionário público. Contudo, o fato de Betto ser um frei que escreve ficção chama a atenção do público leitor. Isso ocorre, principalmente, porque o gênero romanesco exige certa liberdade criativa por parte do autor, bem como aborda temas polêmicos, por exemplo, a sexualidade. Paira a ideia, entretanto, que determinados assuntos seriam tabus para um escritor religioso, que utilizaria de sua pena apenas para fazer proselitismo, tornando sua obra ficcional extremamente didática ou catequética. Contudo, não é isso que se percebe em Betto, criando o autor até certo embaraço em leitores mais desavisados, que compram o livro pensando se tratar de um texto ficcional que caminharia para uma vertente mais religiosa, uma vez que tal literatura estaria amparada pelo endosso religioso de um frei60.

59 Não é apenas Cunha quem demonstra estranhamento pela ficção escrita por um frei. Há uma espécie de entrevista/resenha sobre Hotel Brasil, na Folha de São Paulo, cujo título é: “Policial de Frei Betto tem sexo sem procriação”. Uma vez que o catolicismo, denominação da qual Frei Betto faz parte, prega o sexo legítimo apenas para a procriação, e não para o prazer, a chamada para o livro apresenta uma tônica de estranhamento para com a religiosidade do autor. O texto de Cynara Menezes, que foca basicamente na religiosidade do autor de Hotel Brasil, segue da seguinte maneira: “O mal sai da boca, mas não da pena, parece dizer Frei Betto com seu novo livro, ‘Hotel Brasil’, um policial ambientado no submundo carioca, em que o dominicano não se frustra em descrever cenas de sexo, homossexualismo, prostituição e até incesto. Os mais conservadores poderiam dizer que Frei Betto, 55, ‘pecou’. Afinal, reza o catecismo, também se peca por pensamentos – e escrever é pensar. Tratando-se de um autor religioso, há trechos curiosos para o leitor que imagina a vida celibatária em um mosteiro. Cenas bastante diretas aparecem em todo o livro, descrevendo paixões que se incendeiam a toda distância de conceitos tidos como fundamentais pela Igreja, segundo a qual o sexo não deve ser motivado por outras razões que não a procriação. Aliás, nem se fala nisso. Não é a primeira vez que Frei Betto ousa penetrar em searas mundanas: em 86, um conto erótico de seu livro ‘O aquário Negro’ (Círculo do Livro) chegou a ser publicado com exclusividade por uma revista masculina” (MENEZES, 1999).

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Há um relato de leitura de um leitor comum, extraído do SKOOB, sobre o romance Minas do Ouro. O leitor registra sua experiência ao ler um livro de Frei Betto pela primeira vez. Ele diz: “Minas do Ouro é o primeiro livro que li do Frei Betto. Acabei me enveredando por suas páginas por se tratar de um romance histórico, mais precisamente história do Brasil. Até então, só havia lido do autor algumas matérias escritas para a revista Caros

Na continuidade da resenha, Cunha mudará a tônica da crítica, pautando-se, agora, em aspectos sociais, bem como na estrutura narrativa do romance, ainda que o faça de forma bastante superficial. O resenhista dirá que “a pensão do título, localizada bem no coração da marginália carioca, pode ser lida como uma referência ao caos político, econômico e social no qual mergulha a realidade brasileira contemporânea” (CUNHA, 1999). Novamente, entende-se que o título do romance é uma metáfora de nosso país. O caótico subúrbio carioca é uma representação diminuta, salvaguardadas as devidas proporções, da desordem política, econômica e social da nação brasileira. Em relação à estrutura do texto narrativo, Cunha observará que “o romance, antes de mais nada, traz um thriller policial bem engendrado, repleto de cenas de suspense. Aliás, o elemento surpresa é muito bem construído ao longo do livro, envolvendo reviravoltas e envolvendo leitores” (CUNHA, 1999). Figueira, resenhista há pouco analisada, bem como Cunha, entendem que tanto o suspense quanto um final surpreendente são elementos imprescindíveis para um bom romance policial. A respeito desse quesito, Betto satisfaz a ambos os críticos.

Há, contudo, uma última resenha que leva a metáfora social, destacada nas resenhas anteriores, às últimas consequências:

No país real, diariamente a economia exclui mais gente, destinada a ser vítima e instrumento da violência e da morte de quem não tem como viver. Como na parábola do Hotel Brasil, as vítimas são entorpecidas e se lhes arrancam os olhos para que morram, sem gritar nem chamar atenção. Vivendo na corda bamba e enganando quotidianamente a morte, há crianças de rua que resistem e oprimidos que lhes são solidários. No belo e envolvente relato do “Hotel Brasil”, como no país real em que vivemos, ainda há tempo e espaço para o amor e a paixão. Antes que nos arranquem os olhos e nos impeçam o coração de pulsar e sentir, é urgente deter o ritual assassino, na própria estrutura dos Hotéis Brasil que existem por aí, mais perto de nós do que imaginamos (BARROS, 1999).

Nesse excerto, a questão social se aprofunda. O Brasil é apresentado como o grande assassino do romance, que vitima seus próprios cidadãos ao não conceder-lhes os direitos básicos necessários à sobrevivência humana. Desse modo, a economia excludente não apenas nos degola

Amigos. Sabia de antemão, pelas matérias, que ele não é um cristão qualquer e que faz (ou fez) parte do movimento da teologia da libertação. Historiado [no] Brasil e alguém de que gostaria de saber mais. Estava aí. Comprei e li o livro [...] Narrado de maneira concisa e ritmicamente deleitável, Frei Betto mostra que sabe escrever e prender o leitor da primeira à última página. Sem interrupção. Fazendo do romance uma excelente maneira de se conhecer e se enveredar pela história de Minas Gerais. E não pense que por ser Frei a narrativa terá um tom pudico e casto. Em seu miolo, o texto apresenta cenas de pura gastronomia erótica e sensual, além de uma certa pitada de humor e crítica a todas as esferas (social, filosófica, política, religiosa). Por fim, gostaria de ter aprendido história do Brasil com livros assim” (SKOOB. Resenhas – Minas do Ouro. T., Leonardo. Postado em 28/01/2015. Disponível em: https://www.skoob.com.br/livro/resenhas/189428/mais-gostaram).

e nos arranca os olhos, como também acaba por nos deixar sem os demais órgãos vitais à vida. Bem observa o resenhista, que “é urgente deter o ritual assassino” que tem vitimado tantos moradores desse imenso hotel chamado Brasil.

Embora os quatro resenhistas estejam de acordo sobre o hotel do romance ser uma forma metafórica de referência ao Brasil real, apenas três, entre as quatro resenhas, fazem referência à forma bem elaborada da construção do enredo, de modo que a narrativa cativa o leitor por causa do suspense e dos elementos surpresa, imprescindíveis em um romance policial.