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A Escrita de Borges152 foi o primeiro espetáculo com a participação dos dois grupos. O texto, escrito e interpretado pelo ator Alexandre Vargas, foi uma costura de contos e passagens da trajetória de vida do escritor argentino. Interpretando o próprio Borges, suas personagens e seu pai, Alexandre Vargas fez uma imersão e um passeio nas histórias criadas pelo autor, sem sair de sua biblioteca.

A dificuldade de entendimento, foi unânime tanto num grupo quanto no outro: não poderia ser diferente, já que não conheciam a obra de Borges e estavam pouco familiarizados com a linguagem de teatro.

Dentre os alunos da escola pública, todos experimentaram sentimentos confusos que variaram entre “alegria de estar ali”, entusiasmo, medo, nervosismo, susto e angústia. Apenas um aluno, respondeu que “deu para rir e curtir”. O espetáculo não poderia, de forma alguma produzir riso, mas foi possível observar certo mal-estar transformado em graça. No início do espetáculo foi difícil conter a algazarra provocada pelos cochichos, risos e troca de lugares. Foi necessário que eu estivesse atenta, indo de grupo em grupo para pedir silêncio. Muitos saíram porque não conseguiam ficar quietos. Os barulhos das facas sendo atiradas na madeira ou nos livros dispostos sobre o palco serviram tanto para chamar

151 Nas noites de espetáculo eram entregues as questões: por que você veio ao espetáculo? O que sentiu? A

que você atribui esses sentimentos? Optei por analisar a recepção deste espetáculo por ter sido o único cuja soma das respostas é significativa: pude recolher 14 respostas, sendo 4 da escola pública e 10 da particular. Nos espetáculos posteriores optei por entregar as questões às professoras que conduziam os alunos para que as respondessem na escola e não obtive as respostas. Percebi que não houve o envolvimento dos professores em estimular uma conversa sobre o espetáculo e a escrita dos alunos. Cf anexo C, p. 170.

a atenção do olhar dos que estavam totalmente dispersos quanto para jogar outra vez os que estavam em silêncio nos comentários aflitos. Por diversos momentos pensei que o ator não conseguiria levar o espetáculo até o fim e fui tomada de grandes dúvidas sobre a validade da iniciativa pelo incômodo que aquela situação provocava no público habituado. Depois de um tempo de acomodação e muitas saídas, pouco a pouco o silêncio foi se restabelecendo.

Uma aluna desta escola escreve em sua resposta sobre como se sentiu no espetáculo: “apesar de muitos não notar fala do passado que não esqueceu o seu e em suas gerações pode expressar suas letras (...) palavras hoje faladas por pessoas que não conheciam Borges como merecia”. Destaco três interessantes expressões desta resposta. A primeira diz respeito ao pôr-se fora do grupo, perceber-se diferente dos demais. Estaria se referindo ao comportamento do grupo que, na falta de disposição para ouvir, não teria acompanhado o texto? Estaria se referindo à dificuldade de se entender o texto, superada por ela? Ou está dizendo que já leu Borges antes e por isso pôde entender melhor que os outros que não leram? A segunda diz da sua percepção sobre a importância do texto canônico, do texto que sobrevive a diferentes gerações, e a terceira, que vem de forma inseparável da segunda, me parece um certo lamento pelo desapego das novas gerações ao texto, à leitura ou ao autor: “palavras hoje faladas por pessoas que não conheciam Borges como merecia”: ela estaria fazendo uma crítica à geração que não conhece Borges como deveria, como num saudosismo, ou ao ator com cuja leitura ela não concorda?

Percebe-se uma diferença clara entre as respostas dos dois grupos, apesar de ninguém assinar as respostas. Enquanto os da escola pública, que estão cursando o ensino fundamental, ainda estão se familiarizando com a escrita e têm certa dificuldade de elaborar o pensamento, os outros, no ensino médio, têm um domínio maior sobre a elaboração

escrita de suas respostas. Esta talvez seja a diferença mais gritante que se destaca ao lê-las. Fica claro também que os alunos da escola particular estão familiarizados com a linguagem técnica do teatro: para dizer o que sentiram ou em que se interessaram usam os termos: expressão corporal, tonalidade de voz, interpretação do ator; diferenciam narrador, ator e personagens; estão interessados no gênero, na classificação do espetáculo, querendo descobrir o que é um monólogo e “na sua organização: cenários, figurinos, trilha sonora entre outros fatores que o tornam interessante”, usando as palavras de um aluno.

Percebe-se também que foram informados sobre o espetáculo antes de tomar a decisão de vê-lo: sabiam em que o ator havia se baseado para a construção tanto do personagem como do espetáculo e sabiam que se tratava de um texto de Borges. A disposição para ir ao espetáculo e para ficar até o fim é determinada também pelas informações acessadas; nesse sentido, o trabalho preliminar de informar, conversar, distribuir textos ou posterior de desencadear um debate sobre o espetáculo, sobre o autor abordado ou sobre a performance do ator, através até mesmo do catálogo distribuído, é uma etapa importante para que essa experiência faça sentido para além do momento de apreciação.

O grupo da escola particular ficou nas primeiras cadeiras e muito atento do início ao fim, participando inclusive do debate feito com o grupo após o espetáculo e que durou cerca de uma hora. Não queriam parar de perguntar sobre tudo: como o ator tinha buscado o caminho para selecionar e montar os textos? Como tinha sido sua experiência com o estudo dos tigres e com a interpretação de um personagem que ia ficando cego? Como ele via Borges? Por que teria escolhido Borges? Estavam curiosos sobretudo com o equilíbrio e a preparação corporal do ator, queriam saber o que o diretor havia pensado, como foi o processo.

Os professores e os alunos da escola pública não participaram do debate.

Está claro que esse interesse está marcado pelo fato de os alunos estarem se preparando para ser um grupo de teatro. Não é possível, e nem quero aqui, estabelecer comparações rígidas entre os dois grupos. Gostaria apenas de registrar como foi a participação e o envolvimento dos alunos e dos professores.

A maioria das respostas do grupo da escola particular sobre o que sentiram no espetáculo e a que atribuem tais sentimentos, como nas respostas do outro grupo, aponta para o fato de se sentirem perdidos, confusos, em conflito, em parte por que não conheciam o texto, “eu não sabia praticamente nada sobre Borges”, em parte pela atuação do ator: seus movimentos, as facas e por estar representando vários papéis numa montagem de textos, num enredo não muito claro e nada linear. Uma aluna se defende sobre não ter entendido parte do espetáculo “acho que este sentimento foi geral”.

Duas das respostas dão uma idéia interessante do que foi a experiência para além da confusão e do conflito: “eu senti, que era como se as histórias contadas no espetáculo fosse real, era como se essas histórias estivessem acontecendo na frente dos meus olhos. Eu atribuo isso à interpretação do ator no personagem e nas falas, pois ele falava e interpretava de um tal modo, que me fazia imaginar as histórias na minha frente”; “Estava sentado bem na frente, parecíamos estar dentro do espetáculo, interagidos; às vezes parecia que as facas que o ator jogava iriam escapar e acontecer algum desastre. Os textos de Borges também são misteriosos, deu pra perceber bastante isso mesmo sem conhecê-los bem a fundo.”

Dentre as respostas do grupo da escola pública, somente 4, 2 descrevem como primeiro motivo de ir ao espetáculo, o convite do SESC ou dos professores. Uma destas respostas vem seguida de “me interesso muito por teatro” e certa familiaridade com a

linguagem do teatro torna-se visível quando diz que foi uma “interpretação muito boa”, mesmo que não tenha conseguido “entender a mensagem da peça”. Outras duas respostas colocaram em foco a curiosidade: fui “para ver o que ia acontecer lá”, “para assistir o que ia acontecer de bom, e pelo jeito era bom porque tinha bastante gente para curtir no espetáculo”. Essa curiosidade, que foi o principal motivo da aceitação do convite, revela uma total falta de informação sobre o que iriam ver. A continuação da segunda resposta deixa aparecer também uma dúvida sobre se gostou ou não do espetáculo, já que o julgamento de valor vem pela quantidade de outras pessoas que se reuniram pelo mesmo motivo.

As 10 respostas do grupo da escola particular sobre o motivo da ida ao teatro destacam o incentivo da professora, o convite do SESC e da escola, a vontade de assistir espetáculos e de conhecer, conversar e adquirir experiências com pessoas desse meio, a curiosidade, o gosto pelo teatro, a oportunidade de assistir de graça, o fato de querer conhecer os textos de Borges e por querer saber como é um monólogo.

Gostaria de destacar duas das respostas em especial: “eu vim ao espetáculo, pois me disseram que já que eu não conhecia Borges, era bom eu ir para conhecer um pouco dele, e também porque me disseram que este espetáculo era ótimo”; e “um dos motivos que impulsionou a ida ao espetáculo “A Escrita de Borges” foi a oportunidade de assisti-lo de graça (...) Por outro lado, há o interesse pela poesia, teatro e sua organização (cenário, figurino, trilha sonora entre outros fatores que o torna interessante). Houve também o ponto “descompromisso”, pois para o que se gosta sempre se arranja um tempo extra...”

Nesta primeira resposta fica clara a necessidade de indicação, da avaliação de um outro mais especializado a julgar. Se disseram que o espetáculo é ótimo e que se deve conhecer um pouco sobre Borges, então se tem um motivo nobre para ir ao espetáculo: é

impossível deixar de relacionar essa resposta à preocupação de um dos alunos, expressa no questionário inicial, sobre como escolher um bom espetáculo. Com a indicação da escola, da professora e do SESC, sente que poderá assistir a um ótimo espetáculo e por isso decide ir. Não quer se aventurar na descoberta do que é bom ou ruim segundo seu próprio julgamento.

Na segunda resposta vem em destaque o fato de poder ir ao teatro de graça: se fosse pago não iria? Por não ter dinheiro ou por achar que não valeria a pena gastar dinheiro com isso? Mais adiante escreve que foi importante também o fato de ir sem compromisso “pois para o que se gosta sempre se arranja um tempo extra”. Deixa claro que a ida foi uma escolha sua e no seu tempo livre. Parece estar dialogando com o colega que diz: “gosto de ir a teatros, uma pena que não tenha muito tempo...”. De fato pelas respostas ao questionário inicial e, especialmente os que estão se preparando para o vestibular, a agenda desses adolescentes anda muito cheia: estudo, cursos de línguas, aprendizado de algum instrumento, o grupo de teatro, etc...Vários deles deram como motivo de não ir ao teatro o fato de não terem tempo. Mas esse aluno desafia a falta de tempo, ou a desculpa dos outros.