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CAPÍTULO III: COSTURANDO A METODOLOGIA

3.1 Reconhecendo a História Oral

Os objetivos desta pesquisa estão pautados nas análises das trajetórias de vida de pessoas trans, das estratégias para a construção social e as potencialidades nestas trajetórias, tendo como referencial teórico-metodológico a história oral.

A história oral é a ciência do indivíduo e suas memórias, de suas experiências, histórias e trajetórias de vida, identificando identidades sociais por meio de contação destas histórias. Decorre de uma apresentação com relação à história e às configurações sócio-culturais, privilegiando o restabelecimento do vivido conforme entendido por quem viveu (ALBERTI, 1990).

A história oral é uma ciência e arte do indivíduo, que visa aprofundar a essencialidade da memória por meio de conversas sobre as experiências vividas, suas memórias e o impacto sofrido na vida de cada um. Portanto uma pesquisa que se apoie na história oral é inviável sem o trabalho de campo e a ética permeia este trabalho (PORTELLI, 1997).

A história oral muda a forma de escrever a história, não tem sujeito unificado, é contada de multiplicidades de pontos de vista, e a imparcialidade tradicional reclamada pelos historiadores é substituída pela parcialidade do narrador. “Parcialidade” aqui permanece simultaneamente como “inconclusa” e como “tomar partido”: a história oral nunca pode ser contada sem tomar partido, já que os “lados” existem dentro do contador. E não importa o que

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suas histórias e crenças pessoais possam ser, historiadores e “fontes” estão dificilmente do mesmo “lado”. A confrontação de suas diferentes parcialidades – confrontação como “conflito” e confrontação como “busca pela unidade” – é uma das coisas que faz a história oral interessante (PORTELLI, 1997 p.38-39).

Como uma forma específica de discurso, a história oral conjura uma narrativa do passado e o oral o meio de expressão, a forma de expressão, que deve ser dialógica, pois não se atem apenas ao discurso do entrevistado, mas também ao que os historiadores fazem, ao que ambos fazem juntos (PORTELLI, 2001).

Para Selau (2004) a denominação da história oral define-se melhor como fontes orais, não crendo na existência de uma história oral por excelência, considerando que a entrevista não se constitui na história em si, e sim uma construção que o entrevistado faz de seu passado com base nas experiências e suas memórias. Assim, pode-se dizer que história oral tem a capacidade de apresentar relatos e suas subjetividades, bem como favorece o estudo das representações e atribui um papel central nas relações entre memória e história, propiciando discussões mais apuradas dos usos políticos das memórias.

A principal crítica à expressão "história oral" relaciona-se à concepção de que nas sociedades modernas não existem discursos orais puros, e à interpretação de que um depoimento oral só ganha sua plena significação em defrontação ao documento escrito (FERREIRA, 1998).

Pollak (1989) afirma e destaca que a memória é “seletiva”, ou seja, nem tudo fica gravado e registrado, fato corroborado pela ideia de pertencimento.

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis. Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, em que se inclui o território (no caso de Estados), eis as duas funções essenciais da memória comum (POLLAK, 1989 p. 9).

Halbwachs defende o caráter social da memória, com participação determinante do grupo social de pertencimento na reconstrução das lembranças, definindo a memória com o fenômeno social (HALBWACHS, 1976 apud BARROS, 1989).

55 Para Le Goff (1990) “estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento”.

No artigo "Sonhos Ucrônicos Memórias e Possíveis Mundos dos Trabalhadores" (PORTELLI, 1993), discorre sobre o conceito de Ucronia – emprestado da ficção científica. Ucronia é um presente alternativo, aquilo que poderia ter acontecido, um desdobramento histórico que não ocorreu, contrastando com o mundo desejável e o existente, transcendendo a realidade, recusando a identificação e satisfação com a ordem existente. Deste modo, Portelli (1993) explicita a necessidade de se considerar a ucronia dentro das histórias de cada um, e que há uma coincidência da ucronia e o ápice da vida.

Como explica também Bosi (1994), antes de ser atualizada pela consciência, toda lembrança “vive” em estado latente, potencial, e a lembrança é a sobrevivência do passado, ativadas pelo presente e suas interações, trazendo novas percepções e valores para as experiências do passado, sendo a memória dependente das relações sociais. Por esta razão que a autora afirma que “[a] memória dos velhos desdobra e alarga de tal maneira os horizontes da cultura que faz crescer junto com ela o pesquisador e a sociedade em que se insere” (BOSI, 1994).

Para Alberti (1996) a “história oral permite não apenas compreender como o passado é concebido pelas memórias, mas principalmente como essas memórias se constituíram”.

Mas acreditamos que a principal característica do documento de história oral não consiste no indeditismo de alguma informação, nem tampouco no preenchimento de lacunas de que se ressentem os arquivos de documentos escritos ou iconográficos, por exemplo. Sua peculiaridade - e a da história oral como um todo - decorre de toda uma postura com relação à história e às configurações sócio-culturais, que privilegia a recuperação do “vivido” conforme “concebido” por quem viveu (ALBERTI, 1990, p.5 apud ALBERTI, 1996).

A memória não deve ser apenas detentora de apática de eventos, mas uma fonte de criações, de significações e ressignificações, dando sentido ao passado e forma a vida contextualizando historicamente, fato útil ao pesquisador, pois as mudanças na vida que tomem consciência subjetiva podem afetar o relato e/ou a percepção do evento. Alguns narradores ocultam fatos de que após suas ressignificações, eles os percebem de outra forma e a informação mais interessante pode estar no que se esconde e no que os

56 levaram a esconder do que no que contaram, embora sejam capazes de reconstruir suas ações mesmo que sejam destoantes das atuais (PORTELLI, 1997).

A história oral foi escolhida para esta pesquisa por possibilitar o resgate das histórias de vidas através das narrativas rememoradas com seus elementos significativos num dado momento histórico e ressignificadas durante estas narrativas, denotando a continidade histórica e que este processo não está acabado.

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