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Capítulo 1 Sem factos muito averiguados, não existe matéria de que escrever historia

1.1. O reconhecimento do erudito

Em 1878, João Capistrano de Abreu publicou um Necrológio de Varnhagen no

Jornal do Commercio. Tem-se aqui uma das primeiras leituras críticas de sua obra.

Capistrano destacava que a Varnhagen apaixonavam “problemas não solvidos”, “códices corroídos pelo tempo” e “livros que jaziam esquecidos ou extraviados”; reconhecia o “tirocínio acadêmico” do historiador e seu espírito “infatigável” de explorador; salientava a importância de sua pertinaz preocupação com a pesquisa e a autenticidade dos documentos; chegando a afirmar que, na HGB, há uma “massa cyclopica de materiaes”.17

Avaliações semelhantes a essa foram feitas: por Oliveira Lima – que afirmava ser “o traço dominante da individualidade de Varnhagen (...) a paixão da investigação histórica”18; por Basílio de Magalhães – que afirmava possuir Varnhagen “uma pasmosa capacidade de trabalho”19; por João Ribeiro – que garantia que “nenhum outro, depois dele, veio para excedê-lo e os seus discípulos conseguiram apenas completá-lo”20.

Mais recentemente, José Honório Rodrigues tampouco poupou elogios ao se referir ao trabalho de pesquisa testemunhado pela obra:

Varnhagen sobrepujou, em sua época, como historiador, todos os seus contemporâneos (...) como historiador incomparável do Brasil. Incomparável pela vastidão das pesquisas que realizou e dos fatos que revelou; incomparável pela

17 ABREU, 1931, p. 127 (a). Em sua correspondência ativa, Capistrano solicita a amigos que seguissem as

orientações fornecidas por Varnhagen para encontrar documentos em arquivos europeus. Capistrano utiliza-se de informações dadas por Varnhagen para solicitar a busca na Biblioteca Nacional, em Lisboa, e no Museu Britânico. É razoável supor que manifestava, desse modo, a seriedade que via no trabalho realizado por Varnhagen. Cf. Abreu in RODRIGUES, José Honório, 1977, p. 19/18, 140/147. Quando da edição do segundo volume da HGB, em 1857, Varnhagen publicou uma série de cartas de avaliação do primeiro tomo de sua obra. Dentre elas estava uma redigida por Alexandre Humboldt, para quem a obra do historiador “se fonde sur des pénibles et sérieuses recherches”. Cf. VARNHAGEN, 1857, s/p. (Pos-scriptium).

18 LIMA, 1903, p. 11.

19 MAGALHÃES, 1928, p. 53.

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publicação de inéditos que promoveu; incomparável pela perseverança com que caminhou pelos caminhos da história brasileira (...).21

Para José Honório Rodrigues, Varnhagen, no que se refere à revelação de fatos, fez “mais de que pode esperar o leitor desavisado”, devido à gigantesca pesquisa realizada, justificando a opinião de que “nenhum historiador nacional contemporâneo o iguala no conjunto da obra”. Retomando a expressão de Capistrano, o crítico reconheceu ser a obra “ciclópica”, “pelo esfôrço, pela perseverança, pela erudição, pelo conhecimento revelador” e afirmava que ela é “uma obra sem paralelo, pela vastidão da pesquisa realizada por tôda parte, pela acumulação dos fatos, pelos achados novos, pelo esfôrço de incorporá-los numa síntese”.22 Em trabalho posterior, José Honório Rodrigues retomou essas avaliações e reafirmou que a “História Geral do Brasil é, até hoje, a que reúne, sem contestação, o maior número de fatos”, constituindo-se, a seu ver, até aquele momento, na obra “mais completa da historiografia brasileira”.23

Maria Alice Canabrava partilha da mesma avaliação e vê Varnhagen como o iniciador da pesquisa sobre a história brasileira em arquivos estrangeiros. Para a historiadora, Varnhagen se distingue pela “análise crítica rigorosa [que] precede o reconhecimento da validade das fontes e sua erudição se nutre do conhecimento extenso das mesmas”. Essa atitude parece revelar, ainda segundo Canabrava, a influência de Leopold von Ranke. Para ela, o aturado esforço de Varnhagen para levantar a documentação e realizar sua exegese estava ligado à sua convicção de que “a verdade objetiva continha-se nos documentos”.24

Também para Arno Wehling, Varnhagen era um rankiano, cuja obra foi edificada sobre o “domínio da técnica de análise documental, investigação empírica e explicação hermenêutica”.25 Segundo ele, o método da história consistia, em Varnhagen, na exegese documental, e ao historiador cabia a tarefa de realizar a crítica rigorosa, sistemática e exaustiva das fontes. Se os cientistas de outras disciplinas realizavam experiências para comprovar suas teses, os historiadores realizavam cuidadosa recuperação das fontes documentais, graças às quais alçava-se ao patamar da cientificidade e da veracidade.

21 RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 170.

22 RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 175/187/196. 23 RODRIGUES, José Honório, 1969, p. 132-133. 24 CANABRAVA,1971, p. 418-419.

33 Wehling reitera, em inúmeras passagens, a influência rankiana sobre o historiador oitocentista: “em Varnhagen, como em Ranke (...) a providência divina era algo mais próximo e atuante na história”; “em Varnhagen, como em Ranke (...) esse pressuposto é fundamental”; “esta é, segundo parece, a chave da interpretação da visão rankeana da história, como também de Herculano ou Varnhagen.”26

Contudo, Wehling reproduz a dúvida que vem desde Capistrano de Abreu: “Não parece [Varnhagen] ter conhecido, pelo menos à época da primeira e segunda edições da

História geral do Brasil, a obra de Ranke, talvez pela dificuldade de leitura dos textos em

alemão”.27 Para Wehling, porém, o ponto central era que, “certamente influenciado pelo clima da culture savante” de sua época, Varnhagen entendia a escrita história como resultante da pesquisa e da exegese documentais. Um historiador rankiano seria, enfim, um historiador decidido a “escrever tal qual as coisas se passaram”, a partir de documentos cuidadosamente recolhidos e examinados; ou escrever uma “história crítica, fundamentada na obra de erudição (...), nos estudos paleográficos e diplomáticos (...)”. Uma história que, segundo Wehling, se opunha à “tradição da historiografia humanista”, que tinha seus modelos nos gregos e nos romanos.28

Conforme ensina nossa contemporânea e dominante história da historiografia, a história moderna surgiu no século XIX, com a obra de Ranke. Dataria de então a preocupação dos historiadores não apenas com a pesquisa arquivística, mas também com a

26 WEHLING, 1999, p. 49, 61, 62, 79, 129. Destaquei apenas algumas das passagens nas quais o autor

reafirma a similaridade entre os pressupostos da escrita da história varnhagenianos e os rankianos.

27 WEHLING, 1999, p. 136-137. Em nota, afirma-se que Clado Lessa elucidou a questão e remete o leitor

para a explicação dada pelo autor citado. Na consulta ao indicado trabalho encontra-se um trecho onde Clado Lessa está preocupado em rebater uma crítica feita por Capistrano de Abreu a Varnhagen: Capistrano cobrava do historiador o uso de uma teoria elaborada por um geógrafo alemão; para Capistrano, a omissão desse trabalho só se explicaria pelo desconhecimento da língua. Para Lessa, a explicação de Capistrano não tinha sentido, porque Varnhagen, além de filho de alemão, estudara a língua paterna. Cita então uma carta dirigida por Varnhagen ao general Francisco José Soares Andréia, comandante do Imperial Corpo de Engenheiros, datada de agosto de 1851. Nela, Varnhagen afirmava que fora ao Colégio dos Nobres habilitar-se em língua alemã. Lessa não estava preocupado com a questão de ter sido ou não Varnhagen influenciado pela obra de Ranke. Cf. LESSA, 1945, p. 61-63. Em outra passagem de sua biobliografia de Varnhagen, Clado Lessa informa que: “Não nos foi difícil rastrear a origem indocumentada desta opinião de Capistrano [sobre Varnhagen não saber alemão]. Em 1869 Varnhagen apresentou à Academia das Ciências de Viena uma pequena monografia escrita por êle originalmente em francês, e vertida por um amigo, a seu pedido, para a língua italiana, então um dos idiomas oficiais do império austro-húngaro, condição indispensável para que fosse inserta nas Atas desta sociedade. Ora, seria natural que o ministro do Brasil a escrevesse em alemão, se pudesse servir-se desse idioma, - foi o que seguramente conjecturou o historiador cearense.” Cf. LESSA, 1954, p. 144-145. Tomo 224.

34 comprovação de suas afirmativas. Diferentemente dos antigos, que se teriam limitado a narrar os acontecimentos, os historiadores modernos fundamentavam seus textos com extenso e erudito trabalho de levantamento de provas, como também realizariam o cuidadoso trabalho de anotar seu texto: as notas de rodapé eram entendidas como uma demonstração e prova de que o historiador pesquisou em diversos arquivos e manipulou e utilizou inúmeras fontes documentais para construir seu texto. Como parte inerente da elaboração de uma obra de história, haveria o trabalho de citar, parte indispensável do

métier do historiador moderno: a erudição fundamentaria a escrita da história e deveria ser

comprovada pelasanotações feitas ao texto.

Assim, o que importa na discussão não é bem se Varnhagen pôde ou não ler diretamente a obra de Ranke: o que faria dele um rankiano seria o fato de ele ser um historiador moderno. Assim como Ranke, Varnhagen ter-se-ia submetido às novas prescrições do trabalho de escrita da história, pesquisando e anotando seu texto, de modo a informar ao leitor o fundamento de suas certezas. Essa é a avaliação crítica da obra varnhageniana feita por seus estudiosos desde Capistrano de Abreu, que, pela primeira vez, estabeleceu um paralelismo entre a obra de Varnhagen e a do historiador alemão. Capistrano inaugurou uma tradição de avaliação da obra varnhageniana que afirma ser Varnhagen um autor moderno, porque sua obra pode ser aproximada e comparada àquela elaborada por Ranke.

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