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Capítulo 1 Sem factos muito averiguados, não existe matéria de que escrever historia

1.4. Varnhagen revisitado

O estudo de Anthony Grafton pode nos auxiliar a analisar a compreensão que Varnhagen tinha do papel da erudição na escrita da história. Desde o Necrológio escrito por Capistrano de Abreu no final do XIX, Varnhagen foi apontado como um seguidor dos pressupostos da escrita da história estabelecidos por Ranke: um historiador-pesquisador incansável e um autor preocupado com a autenticidade e fidedignidade dos documentos que utilizava como fontes. Porém, o mesmo Capistrano de Abreu, quando se viu às voltas com o trabalho de preparar uma primeira reedição da HGB, assustou-se diante do que encontrou: Varnhagen não seguia à risca o que Ranke estabelecera. Contudo, assim como Ranke, Varnhagen seguia pressupostos metodológicos da escrita da história muito próprios de seu tempo, do tempo em que também Ranke escrevia. Como um homem da erudição, o historiador se apresentava enquanto autoridade no assunto tratado. Conseqüentemente, o texto herdava de seu autor a própria autoridade.

Duas pistas podem ser seguidas. Uma primeira: Afrânio Peixoto, talvez com uma ponta de ironia, perguntava se Varnhagen, ao deixar de citar, não se dava “ao luxo de

60 GRAFTON, 1998, p. 127/129.

46 querer ser aprovado, sob palavra”. Ou seja, as palavras do historiador deveriam alcançar tão alta validade ou serem dignas de tamanha consideração, que se estabeleceriam acima de qualquer suspeição. Talvez seja razoável afirmar que Varnhagen realmente desejava que o leitor se colocasse “sob sua palavra”.

Uma segunda pista: Clado Lessa afirma que, caso se tivesse o trabalho de contar as notas existentes nos livros de Varnhagen, seria possível verificar que ele “não foi mais parco em citações que a maioria de seus contemporâneos”.61 Ou seja, não seria uma característica ímpar de Varnhagen a escassez de citações: assim como seus contemporâneos, ele escrevia sem maiores preocupações com a anotação de sua obra. Vejamos.

Em 1851, Varnhagen escreveu ao IHGB sugerindo a publicação da obra de Gabriel Soares de Sousa, restabelecida em sua versão original. Esclarecia então que a obra do autor quinhentista apresentada era o resultado de seu trabalho de cotejar os vários códices da obra que localizara. Lembrava que graças a esse trabalho merecera a aprovação da Academia Real de Ciências de Lisboa, que, como prova de reconhecimento, o acolhera como seu associado. Do mesmo modo como a obra fora recebida na Europa, esperava vê-la no Brasil. Porém, Varnhagen também destacava que fizera anotações à obra de Gabriel Soares:

Para melhor inteligência das doutrinas do livro acompanho esta cópia dos comentos que vão no fim. Preferi êste sistema ao das notas marginais inferiores, que talvez seriam para o leitor de mais comodidade, porque não quis interromper com a minha mesquinha prosa essas páginas venerandas de um escritor quinhentista.62

Por um lado, apontava a importância de se anotar um livro: para que ele ficasse mais claro para seu leitor - “para melhor inteligência das doutrinas do livro”. Nesse sentido, é lícito afirmar que Varnhagen compreendia o trabalho da anotação como digno de atenção e dever de ofício dos que se debruçavam sobre obras antigas. Por outro, ele discutia qual a melhor forma para apresentar essas anotações: elas deveriam ser postas ao final da página, o que seria mais cômodo para o leitor, ou ao final do texto? Ele conhecia e discutia processos diferentes de anotação e explicava sua opção pelos “comentários ao final do texto”: porque desse modo não haveria intromissão nas “páginas venerandas” do autor. Ou

61 LESSA, 1954, vol. 224, p. 194.

62

47 seja, as notas eram essenciais, mas elas não deveriam jamais ser um obstáculo ao fio da narrativa. Seriam as anotações realmente indispensáveis?

Na Introdução escrita para os Breves comentários (...) à publicação da obra de Gabriel Soares na Revista do IHGB, Varnhagen faz um desabafo carregado de significado e bastante esclarecedor de suas convicções:

Nos presentes commentarios, não repetiremos quanto dissemos nas Reflexões

criticas (...). Além de havermos em alguns pontos melhorado nossas opiniões,

evitaremos aqui de consignar citações que podessem julgar-se nascidas do desejo de ostentar erudição; desejo que se existiu em nós alguma vez, quando principiantes, por certo que já hoje nos não apoquenta.63

Nesta altura de sua vida, confessa que, quando jovem estudante, vivera “apoquentado”, ou seja, atormentado com coisas pequenas, sem importância, e, dentre elas, a de redigir citações. Afinal, segundo Varnhagen, na juventude, um autor era obrigado a exibir-se e alardear seus conhecimentos, pois essa era a fórmula a ser seguida por aqueles que pretendessem ser reconhecidos e aceitos no mundo das letras. Nessa circunstância, a redação de citações era uma maneira de mostrar para todos que ele era um homem de erudição. Contudo, uma vez que esse patamar de reconhecimento fosse alcançado, não precisava mais preocupar-se com “aparentar”, ou seja, mostrar e provar, ser um erudito. Não haveria mais necessidade de se “apoquentar” com a elaboração de citações profusas, simplesmente para “ostentar erudição”.

Provavelmente, portanto, Clado Lessa estava correto ao afirmar que Varnhagen, em seus primeiros trabalhos, indicava as fontes de que se servia. Essa era a perspectiva do próprio Varnhagen: um principiante devia exibir seus conhecimentos para se afirmar enquanto um homem de letras. Será que Varnhagen se absteve de multiplicar suas citações porque já considerava seus leitores suficientemente informados sobre as fontes que utilizara, ou porque, àquele momento, já se considerava reconhecido como erudito e, enquanto tal, dispensado de multiplicar suas referências? É razoável supor que existisse, em meados do século XIX, uma compreensão bastante própria do que significava ser um homem erudito.

Para nos aproximarmos da noção, pode ser útil recorrer aos dicionários de época, com o propósito de resgatar a compreensão que então se tinha da palavra – o que nos

48 limitaremos a fazer nos dicionários de língua portuguesa. Em 1789, Antônio de Morais Silva reeditou, reformando e acrescentando, o Diccionario da Lingua Portugueza que fora composto por D. Rafael Bluteau entre 1712 e 1728. Essa é considerada a primeira edição do Diccionario... de Morais. Em 1813, Morais Silva reeditou seu Diccionario onde pode-se ler que erudito é tudo o que é “dotado de erudição”, enquanto erudição é definida como “saber, noticias litterarias”.64 Um homem erudito era aquele que detinha muita informação, conhecimento sobre coisas “litterarias”, ou seja, sobre as “lettras, sciencias, estudos”.65 Esse homem era considerado “douto”, ou “instruído, ensinado em alguma arte, scencia”.66

Portanto, parece razoável afirmar que Afrânio Peixoto estava correto ao supor que Varnhagen desejava “ser aprovado sob palavra”. Para Varnhagen, uma vez que se tornara um homem cuja erudição era reconhecida por seus pares, ou que se tornara, em uma palavra, “douto”, acreditava não precisar mais prová-la a todo momento. Por mais que, ao findar o século XIX, estudiosos como Capistrano de Abreu passassem a cobrar, da geração de historiadores de meados do século, uma postura mais criteriosa frente ao trabalho da citação, tudo indica que esse não era ainda um pensamento dominante entre eles.

Vimos, no início deste capítulo, Varnhagen dirigindo-se ao Imperador, em 1852, para lhe apresentar os pressupostos que o haviam orientado na redação da HGB, que proximamente teria seu primeiro volume publicado. Afirmava então que “sem erudição no assumpto não existe matéria de que escrever historia”, pois seria a erudição, a seus olhos, que possibilitaria ao historiador ter sua obra recebida não como uma “uma novella ou romance”. Ou seja, era preciso que o historiador fosse reconhecido como um erudito pelos receptores de sua obra. Restava ao historiador, portanto, provar ser um homem de erudição.

64 MORAIS SILVA, 1922 (1913), p. 73, vol. I. A escolha do dicionário de Morais Silva para a busca do

significado das palavras à época se justifica por ser ele então reconhecido como um trabalho sério e de valor. Justifica-se sobretudo porque, além de redigir uma biografia de Morais Silva, conforme se verá em capítulo posterior desta tese, Varnhagen fazia uso de seu dicionário. Nas anotações à obra de Gabriel Soares, em vários verbetes encontram-se referências ao trabalho do lexicógrafo. Cf. VARNHAGEN, 1971 (1851) (Comentário). No Prefácio, publicado no segundo volume da primeira edição da HGB, Varnhagen discutiu a questão da ortografia das palavras empregadas e, acerca o uso de onde, donde e adonde, remetia o leitor para o Diccionario de Morais. CF. VARNHAGEN, 1857, p. XIV (Prefácio). Em nota à seção sobre a Conjuração Mineira, remetia o leitor para o Diccionario de Morais onde encontraria o sentido da palavra conluio, empregada na frase. Cf. VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. II, p. 312, nota 21. Nesta tese, o dicionário de Morais será várias vezes utilizado para se buscar o significado contemporâneo de palavras empregas por Varnhagen.

65 MORAIS SILVA, 1922 (1913), vol. II, p. 231. 66 MORAIS SILVA, 1922 (1913), vol. I, p. 641.

49 Como daria testemunho, a favor de si mesmo, de que era um homem da pesquisa e da exegese documentais? Aos nossos olhos, o historiador deveria permanentemente apresentar as provas de suas assertivas. Essa não era exatamente a perspectiva de Varnhagen.

Em 1877, ele redigiu um longo Prólogo para a segunda edição do primeiro volume da HGB. Na oportunidade, reapresentava o vasto processo de pesquisa realizado e o longo tempo dispensado para preparar a HGB:

(...) rebuscamos antigos documentos nos archivos, não só do Brazil, como de Portugal, da Hespanha, da Hollanda e da Italia; percorremos pessoalmente todo o nosso littoral; visitamos os Estados Unidos, várias Antilhas e todas as republicas limitrophes; - tudo, há mais de trinta annos (...).67

No mesmo texto, comparava seu trabalho ao de Rocha Pitta e afirmava que, diferentemente do historiador baiano, que “não recorrêra ás mais puras fontes da história”68, ele não se poupara “a nenhuns esforços, a fim de remontar ás fontes mais puras”.69 A nova edição da HGB, afiançava, era superior à obra de Rocha Pitta, graças aos “muitos mais factos inéditos apurados”.70 Ele concluía seu Prólogo informando o leitor de que pretendera que a obra saísse “tão compacta quanto possível”, para torná-la mais barata. Por esse motivo, optara por não reproduzir “em cada um delles [dos volumes] os documentos já extensamente explicados no texto”71. Advertia, então, que adotara o mesmo procedimento usado na primeira edição da HGB:

Depois de haver reduzido as nossas explicações a mui poucas páginas, as essenciaes de satisfação ao público, não as julgando de um interesse permanente, maximè para os estranhos, tivemos por mais acertado o deixal-as para um pequeno folheto separado, que opportunamente será publicado.72

Muito provavelmente esse “folheto” jamais foi publicado. Em nenhuma das biobliografias de Varnhagen a ele se faz referência. Também não há, nos fichários da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e no da Biblioteca Nacional de Lisboa, qualquer texto indexado do autor que possa ser o mencionado folheto. Muito provavelmente também nos manuscritos do historiador não existe tal texto, porque Clado Lessa teve amplo acesso à

Biblioteca Varnhagen do Itamaraty, onde estão depositados seus papéis, e não faz menção à

67 VARNHAGEN, 1877, p. X. (Prólogo). 68 VARNHAGEN, 1877, p. XIII. (Prólogo). 69 VARNHAGEN, 1877, p. X. (Prólogo). 70 VARNHAGEN, 1877, p. XV. (Prólogo). 71 VARNHAGEN, 1877, p. XVII. (Prólogo). 72 VARNHAGEN, 1877, p. XVII. (Prólogo).

50 existência de texto inédito manuscrito de seu biografado. Porém, ao leitor de seu Prólogo, Varnhagen solicitava que tivesse resignação diante das sentenças emitidas por uma “autoridade insuspeita”; a esse leitor não deixava opção senão a de concordar com os “incontestáveis” argumentos apresentados por ele, frutos “das provas que, mediante aturado estudo, conseguimos reunir”.73 Entretanto, não necessariamente essas provas precisavam ser apresentadas, porque o autor, enquanto uma autoridade ou um erudito, tinha a prerrogativa de atribuir a seu texto a “carta de recommendação”.74

Resta ainda destacar e analisar duas palavras empregadas pelo próprio Varnhagen. Em maio de 1842, conforme visto, o encontramos declarando, em correspondência ao então primeiro-secretário do IHGB, que recolhia “os elementos para a organização de uma conveniente História geral do Brazil”. No Post Editum ao primeiro volume da HGB, datado de 1854, ele explicava que existiam tipos diferentes de narrativa histórica, e empregava a palavra conveniente:

Uma coisa é a Historia Geral (...) de um Estado, e outra são as actas das suas cidades e villas; os annaes e fastos das suas provincias; as chronicas dos seus governantes; as vidas e biographias de seus cidadãos benemeritos. Aquella não impede que nestas se trabalhe, em cada qual tem a narração proporções convenientes.75

Em 1857, em carta dirigida ao primeiro-secretário do IHGB, destacava que um dos méritos da HGB, percebido por um sócio da agremiação, estava na capacidade demonstrada por seu autor de “combinar a conveniencia com a verdade”.76

A outra palavra, elocução, Varnhagen a emprega em 1852 quando afiançava ao Imperador que “sem factos muito averiguados” não haveria matéria com que escrever a história e, exatamente por isso, eles eram, em grau de importância, muito superiores a uma “esmerada elocução”.77 Isso não implicava uma desconsideração da importância de uma esmerada elocução. O que se destaca é que ao empregar as palavras conveniente e

elocução, Varnhagen nos coloca frente a conceitos bastante diferentes dos nossos. Se

73 VARNHAGEN, 1877, p. XIII. (Prólogo). Max Fleiuss afirmava que Varnhagen “escrevendo sobre a

historia, não procurava discutir, nem averiguar mais: dictava sentenças; em sua consciencia de de mestre, que realmente era, julgava sem appellação”. Cf. FLEIUSS, 1930, p. 412.

74 As expressões “autoridade insuspeita” e “carta de recommendação” foram empregadas por Varnhagen para

qualificar afirmações de Toqueville por ele transcritas. Cf. VARNHAGEN, 1877, p. V. (Prólogo).

75 VARNHAGEN, 1854, p. 479. (Pos Editum). 76 Varnhagen in LESSA, 1961, p. 250. 77 VARNHAGEN, 1948 (1852), p. 229.

51 novamente recorrermos ao Diccionario de Morais Silva, poderemos ler que “conveniencia” é definida como: “accomodar os meyos á conveniência da obra, i. é, como convèm”.78 Ao passo que “elocução” era “a parte da Rhetorica que ensina a fallar com escolha de palavras e boa collocação”.79 Assim, para escrever uma história “conveniente”, o historiador não poderia prescindir da “elocução”: era preciso que ele acomodasse sua escrita segundo o gênero em questão e que cuidasse da forma da composição – aliás, Varnhagen já dissera que um historiador deveria ser, além de um erudito e filósofo, um literato.

Ao anunciar que colocara as notas à obra de Gabriel Soares ao final do texto, para não “interromper com a minha mesquinha prosa essas páginas venerandas de um escritor quinhentista”, Varnhagen adotava uma estratégia de anotação. Porém, escolhia essa forma porque, a seu ver, a anotação não poderia “interromper” as “venerandas páginas” do colono quinhentista. Ou seja, uma narrativa histórica deveria ser feita de maneira que o leitor a percorresse sem interrupção, sem nenhum tipo de interpolação. Parece razoável supor que ao empregar essas expressões, referindo-se à obra de Gabriel Soares, Varnhagen apresentava sua avaliação acerca da forma da escrita da história. Talvez essas expressões nos auxiliem a entender por que o historiador, depois de tanto se dedicar à pesquisa, não realizou com regularidade o árduo trabalho da citação, que dele cobraram seus anotadores.

Isso não significa, porém, que Varnhagen não se sentisse na obrigação de anotar seu texto. Vejamos dois exemplos. Um primeiro: em 1854, no Post Editum acrescentado ao primeiro volume da HGB, ele informava a seu leitor:

(...) não duvidamos de que em uma nova edição, se a chegarmos a preparar, teremos de dar a alguns pontos maior desenvolvimento: e se a preparar outro, talvez que lhe sejam de não pequeno auxilio, sem ir mais longe, as nossas notas no fim de cada pagina.80

Ao que tudo indica, se seguirmos a avaliação de Capistrano de Abreu e mesmo de Clado Lessa, esse trabalho de citação não chegou a ser feito a contento, pelo menos de acordo com o que modernamente se esperaria. Afinal, em 1877, Varnhagen reeditou sua

HGB e colocou no frontispício da obra o chamamento: “muito augmentada e melhorada

pelo auctor”. Foi essa a edição utilizada por Capistrano para preparar a terceira reedição,

78 MORAIS SILVA, 1922 (1913), vol. I, p. 465.

79 MORAIS SILVA, 1922 (1913), vol. I, p. 653. Acerca da discussão da conveniência dos estilos nos gêneros

literários, ver a discussão feita no terceiro capítulo desta tese.

52 que saiu incompleta, em 1906. Foi nela também que trabalhou Rodolfo Garcia para preparar a chamada terceira reedição completa da HGB. Nos dois casos, eles trabalharam muito na anotação da obra.

Um segundo exemplo: no Post-facio à Historia das luctas (...), Varnhagen insistia com seu leitor para que confiasse em suas afirmativas, porque tivera “para isso razões”. Razões, lembrava, que vinham respaldadas por “quarenta anos” de trabalho dedicados à “apuração de fatos”. Porém, no que se refere às provas, lamentava não poder todas fornecer porque não as tinha mais à mão. E justificava: suas mudanças constantes o obrigavam a não “acumular papéis” e lhe era impossível guardar “tantos fatos na memória”:

Não foi o texto de Frei Domingos Teixeira (...) que me deu argumentos para escrever que os capitulados no Maranhão (...) voltaram a Pernambuco (...); podendo entretanto assegurar que tive para isso razões que me convenceram, bem que não as apontei; e que espero tornar a encontrar. (...) Na vida que tenho levado, mudando tantas vêzes de residência, de país, até de continente, nem sempre tenho podido ter nos meus papéis e apontamentos a ordem que desejara. Os originais, aliás pouco bem escritos, uma vez dados à imprensa, para não amontoar papéis, são logo inutilizados; e, às vêzes, entre tantos fatos, não me é possível conservar tudo na memória. Muitos outros fatos tenho conseguido apurar, no longo curso de perto de quarenta anos, a respeito dos quais, se hoje me pedissem as provas, eu não saberia dá-las, nem indicar o processo mental seguido no seu achado.81

Em 1957, contratado pela editora Melhoramentos para preparar uma terceira edição da História da independência do Brasil, Hélio Viana redigiu uma Explicação onde apresentava um histórico das edições existentes da obra e expunha os critérios que adotara para atualizar as notas do texto de Varnhagen, “com antigas e novas fontes documentais”. Sobre as citações elaboradas pelo próprio autor da obra, Viana informava que: “desdobramos as bibliográficas, geralmente muito resumidas, assim como identificamos pessoas, obras e referências parcialmente indicadas no texto ou em notas”.82 A simples contagem do número das anotações feitas por Hélio Viana ao Prefácio da obra em questão são uma amostra do que dizia: das 29 notas desse texto, apenas duas foram redigidas por Varnhagen! Do mesmo modo que os críticos anteriormente apresentados, Viana apontava a parcimônia com que Varnhagen construía suas anotações.

81 Varnhagen apud. LESSA, 1954, vol. 224, p. 193-194. A História das luctas... foi publicada pela primeira

vez em 1871, em Viena, e reeditada no ano seguinte, em Lisboa. Cf. FLEIUSS, 1930, p. 431.

53 Poder-se-ia argüir que, não tendo Varnhagen publicado a História da

independência, o que ocorreu apenas anos depois de sua morte, não teria sido concluído o

trabalho de preparação. Contudo, ele chegou a redigir um Prefácio para a obra, em que destacava que o trabalho do “historiógrafo” era de o de cotejar “os documentos e as informações orais apuradas” que conseguira “ajuntar”. Por isso, afiançava que a importância daquela obra estava, primeiramente, em trazer “não pouca novidade”. Em segundo lugar, esperava que ela fomentasse a coleta de novos documentos e informações, “enquanto há de alguns sucessos testemunhas vivas ou possuidoras de documentos”. Apesar de parecer incentivar a busca de novas fontes, Varnhagen valorizava seu trabalho, porque, afinal, garantia que dava “notícias de tôdas as publicações, jornais e folhetos que foram sucessivamente dirigindo a obra da Independência”.83

Porém, no que se refere à anotação da obra, informava: “Não nos sendo possível estar em cada página citando as provas do que afirmamos (...) contentar-nos-emos de indicar as principais daquelas em que, segundo nossos exames, manifestamente se equivocou o conhecido orador contemporâneo (...)”.84 Por que não lhe era possível apresentar as provas de suas assertivas? E por que só apresentar aquelas que comprovassem o erro de um “orador contemporâneo”? Porque, a seu ver, o trabalho do historiador consistia sim em recolher e apontar “novos documentos e informações fidedignas” e, na seqüência, emitir “certos juízos” e dar “com critério e boa-fé e imparcialidade (...) o seu veredicto”.85 Ao leitor cabia se fiar na palavra do autor, que se apresentava como um ardoroso investigador da verdade.

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