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CAPÍTULO I DEVIRES A CONSTRUÇÃO DE UM M OVIMENTO

I. 1 “Já disse o homem que depois morreu e ficou a memória.Que existe uma coisa na roda

I.2. Reconstituições utópicas

Os discursos se ignoram ou se excluem, mas por vezes os discursos também se cruzam em suas práticas descontínuas. Essas possibilidades permitem pensar sobre alguns elementos presentes nos discursos que circulam por e através da construção de fronteiras no MST. Messiânicos ou não, os movimentos ocorridos no finais do século XIX e na primeira metade do século XX são tidos como grupos que buscavam construir um outro mundo para seus seguidores.69 Não se pode falar de rupturas se não se falar também de permanências nas descontinuidades discursivas. O que evidentemente não é o mesmo que falar de continuidade, muito menos de se tentar decifrar a natureza desses discursos, mas pensar sobre a reconstituição de certas permanências.

Nesse caso, o desejo da construção do novo pode ser pensado como sendo da ordem das regularidades.70 Heranças de outros tempos, outros lugares? Talvez, mas heranças reconstituídas. E, de qualquer forma, concepções naturalizantes, mas não naturais que (re)

69

Ver: MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos Movimentos Sociais no Campo. Rio de Janeiro: FASE, 1989. p. 12/13.

70

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio, 4º edição, 1998, p.53.

produzem noções sobre um novo e que descortinam aqui a historicidade das produções utópicas pelas quais muitos grupos depositaram seus sonhos e certezas.

As possibilidades e impossibilidades da utopia, da ruptura de ordens já estabelecidas para que uma outra ordem possa ser construída, perpassam discursos e atravessam tempos. Tanto a palavra quando os sentidos de utopia - não lugar - foram propostos no século XVI por Thomas More. Nos séculos seguintes as produções utópicas apareceriam sob distintas conotações, e apresentadas por diferentes autores. No século XVIII, na França, Saint-Simon falava em grandes transformações sociais, inclusive num novo tipo de sociedade, a "sociedade industrial". Na Inglaterra, início do século XIX, Robert Owen falava em reforma social sob a idéia de um novo mundo moral.

Do século XIX vieram, ainda, as utopias fourieristas. Das idéias de Charles Fourier, um mundo novo, um Éden harmonioso, surgiu. Suas críticas, recuperadas como concepções libertárias de transformações sociais profundas, foram dirigidas à sociedade industrial da época, à sociedade, à economia, às instituições, incluindo a própria família monogâmica que, em sua opinião, seria antinatural, capaz de matar o amor pela monotonia, e ainda, responsável pelo patriarcado e despotismo masculino.71

Contudo, mesmo descrevendo outros mundos e relações ideais, de modo geral, é possível pensar que as idéias utópicas nesses momentos desenvolveram suas ações de modo distante das lutas políticas clássicas. Característica observada no posicionamento dos principais pensadores utópicos do período que evitavam tomar partido, seja em favor dos movimentos conservadores ou dos movimentos liberais ou revolucionários. É possível que interessasse mais a Charles Fourier, Saint -Simom e Robert Owen modificar a sociedade

71

Ver PETITFILS, Jean-Christian. Os socialismos utópicos. Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo: Zahar Editores, 1977, pp. 89-107.

fora dos caminhos tradicionais da política. Assim, pouco importava se seus projetos se realizassem sob um rei ou uma república.

Através de idéias e descrições de novas formas de sociedade e comunidade destes autores, assim como àquelas veiculadas na literatura - com suas descrições ingênuas e apaixonadas de cidades futuras - a utopia passou a ser apresentada como uma descrição de um mundo imaginário e edênico, situado fora do espaço e do tempo, uma cidade ou uma comunidade harmoniosa onde projeta-se sonhos, e por vezes, fantasmas. 72

Elias Thomé Saliba analisou a construção das utopias românticas na história européia, entre fins do século XVIII e meados do século XIX. Em suas análises, este historiador percebeu que as utopias românticas, nestes séculos, anunciavam uma certa mudança de sentidos. As utopias possuíam um elemento diferenciador: carregavam consigo uma concepção singular de história e de temporalidade. Ao contrário das utopias anteriores, que almejavam um mundo estável, um universo ideal, não raro a-histórico, quase que fora do tempo, as utopias românticas manifestaram um visível caráter dinâmico ou, pelo menos, uma ansiosa e reiterada preocupação em ligar-se, de algum modo, a uma série histórica anterior. 73

Ao contrário dos elementos atuais que configuram as utopias no MST, as utopias de outros tempos não tinham por característica se colocarem no futuro, como é de regra num projeto revolucionário: situavam-se no passado – lugar de onde a “revolução” deveria ser recuperada, ou simplesmente, em tempo algum. A utopia, assim, além de sem lugar era também sem tempo. E, embora o futuro aparecesse em algumas delas, era um futuro mítico, inexistente mesmo enquanto possibilidade. Revolução, nesse sentido, era um conceito que

72

Idem, 10.

não estava presente no interior das construções utópicas. Construções organizadas, (re) produzidas de acordo com características específicas e determinantes da própria natureza do tipo de utopia que se queria.

Os movimentos messiânicos, marcados por um forte fanatismo religioso, são exemplos de produções utópicas, nas quais a busca do místico, do espiritual, não é colocado o problema da revolução social. Também entre os discursos substancialmente religiosos que se faziam presentes nas décadas de 1970 e 1980, no Brasil, através das teologias da libertação, é possível perceber que se falava muito nesse “novo” mítico, mas pouco ou quase nada de revolução. O que remonta também algumas correntes de pensamentos utópicos que procuraram conciliar o evangelho com o "Capital", buscando assim - por meio de um elo religioso reforçado - ligar a cidade terrestre à "cidade de Deus".74

No MST, sobretudo, ao longo do transcorrer de 1980, o "novo" em seus discursos e ações, aparece fortemente amparado pela Igreja. O padre Arnildo Fritzen75, em entrevista à Revista Mundo Jovem publicada em julho de 1986, ilustra um pouco essa particularidade:

Hoje, por exemplo, a grande novidade da Fazenda Annoni é que eles mesmos já tem uma equipe de formação, formada de 25 agricultores, que diariamente estudam sua realidade de colonos sem-terra, à luz da Bíblia. Depois comparam o texto bíblico com a política agrícola e econômica atual do governo. Posteriormente, esta reflexão é feita com todos os colonos do acampamento. Tudo isso é celebrado com uma simbologia religiosa muito rica. Foi assim que a cruz do acampamento de Ronda Alta se tornou símbolo dos sem terra. As celebrações são o ponto alto que mantém a unidade, a persistência e a resistênc ia. As celebrações

74

Os utopistas do século XIX mostravam-se bastante reservados para com o cristianismo. No entanto, essa circunstância se modificaria a partir de 1840-1848, com uma "espécie de osmose" que se produziu entre o fourierismo e o catolicismo na França. Nesse período, para muitos, o socialismo era apenas a colocação em prática de princípios evangélicos. PETITFILS, Jean-Christian. Op. Cit., 1977, pp. 119-120.

75

O padre Arnildo Fritzen, nesse período pertencia à diocese de Passo Fundo/RS e era tido como assessor religioso das famílias assentadas em Nova Ronda Alta/Ronda Alta (A desapropriação para o assentamento definitivo das famílias acampadas nessa área aconteceu em 1983) e dos acampados da Fazenda Annoni/Sarandi (As disputas de forças entre sem-terra e governo por esta fazenda de 9.500 hectares começou em 1980, mas só foi resolvido em 1992 por decisão judicial).

transformam as pessoas, as libertam dos vícios capitalistas. Desta forma, a luta pela terra é também a luta por um homem novo e uma sociedade nova.76

Numa simbiose singular, o "novo", parece estar no evangelho e o "Reino de Deus" no socialismo. A “transformação da sociedade” e a “construção de um homem novo” percebidas enquanto regularidades começaram a ser esboçadas a partir do século XVIII e, mais especialmente, no século XIX. O que, em parte, pode ser explicado pela abundante divulgação na Europa, no século XIX, dos programas socialistas utópicos. Contudo, duas coisas chamam à atenção: uma delas é a regularidade destes elementos, mesmo depois das desilusões e ceticismos sobre as utopias socialistas e comunistas, a outra é a repetição das mesmas em perfeita harmonia com o discurso religioso.

Esta perspectiva faz pensar nos lugares em que as utopias foram produzidas. Lugares desenraizantes e também enraizadores de sentidos. Nos projetos socialistas, por exemplo, a utopia se situa no futuro, mas um futuro historicamente determinado, tendo o capitalismo ou seu fim como ponto de referência. Segundo Mannheim, nenhum outro projeto de sociedade poderia se encaixar melhor, naquela que no seu entendimento seria a quarta forma de mentalidade utopista, do que o marxista. 77

Convém lembrar, aqui, da recusa de Marx e Engels, no "Manifesto Comunista" de 1848, aos projetos utópicos. Uma recusa fundamentada no fato de que, tais programas não contemplavam a necessidade de ação política e, de modo particular, da ação revolucionária. Para Marx e Engel, socialistas utópicos como: Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen, não distinguiam, para e na classe social - que deveria se beneficiar da utopia -, qualquer possibilidade de iniciativa histórica no sentido de criar condições para a sua

76

FRITZEN, Arnildo. Em entrevista à Revista Mundo Jovem. Porto Alegre, ano 24, n.º 183, julho de 1986, p.13.

emancipação.78 Entretanto, mesmo com esta recusa, Marx e Engels imprimiram no mesmo "Manifesto Comunista" vários pontos inspirados na obra de Charles Fourier.

No século XX, principalmente, os lugares e os usos das utopias obedecem a outras reconstruções. Dependendo do lugar e do uso, não há problema em juntar elementos marxistas ao lado, dentro/fora, de elementos religiosos nos discursos que desejam a construção do novo. A utopia é, no MST, o sonho onde se quer chegar, seu projeto de futuro: É aquilo que não aconteceu. Os cristãos chamam a sua utopia de “Reino de Deus”.

Os militantes de esquerda chamam ela de “Socialismo”. 79

Na fala citada acima, elementos se repetem no interior de um discurso político- religioso, ambos discursos doutrinários reconhecidos. Falando sobre a apropriação social do discurso, Foucault chama à atenção para o fato de que a doutrina pode ser pensada como a manifestação e o instrumento de uma pertença prévia, no caso de que se fala aqui, pode ser considerado um sentimento de pertença tanto ao grupo quanto a luta. A doutrina serve para ligar indivíduos entre si e diferenciá-los de todos os outros.80 O discurso político nesse caso é indissociável do religioso, pois ambos se utilizam de recursos que visam delimitar um espaço, um mesmo lugar. Reforçar fronteiras, impor limites acerca de idéias, certezas e sonhos.

Recursos que talvez tenham tornado possível que pensamentos tão diferentes quanto o de Rosseau e Fourier sigam sendo reconstituídos juntos as idéias de Marx, Mao Tsé- Tung, Guevara, e as junções com o Cristianismo e outras filosofias. Estratégias que indicam

77 MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Tradução de Sérgio Magalhães Santeiro. Rio de Janeiro: Editora

Guanabara, 4.º edição, 1986,p.263.

78

COELHO, Teixeira. O que é utopia? Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 4º edição, 1984, p.61.

79

MST. Método de trabalho popular. Caderno de Formação n.º 24.São Paulo: Direção Nacional, junho de 1997, p.19.

a infinita capacidade dos sujeitos em (re) produzir o desejo do novo, não importa o lugar. Para além das fronteiras utópicas, ou mesmo enclausuradas entre as mesmas, outras linguagens seguem produzindo utopias.

Ademar Bogo - nome que, ao lado de João Pedro Stédile destaca-se entre os demais articuladores do MST – coloca a necessidade das práticas do Movimento em alimentar a utopia, pois:

Por isso nos preparamos, cuidamos da saúde, buscamos conhecimentos, fazemos treinamentos, embelezamos as casas, escrevemos poesias, como se estivéssemos sempre nos preparando para um grande encontro. Este mistério de preparar-se e jamais encontrar-se com a totalidade do projeto é o que nos move e impulsiona para vivermos esta causa tão humana e repleta de realizações. Este prazer de saber, sentir e fazer é que chamamos de mística. É esta força que nos move em busca da construção interminável da utopia.81

Não é apenas a terra, assim como não são somente melhores condições econômicas e sociais, mas também uma sociedade ideal, pois o objetivo do MST é mudar o modelo de

sociedade.82 Mudar as relações não apenas no nível político e social, mas no campo das afetividades. As construções utópicas podem ser localizadas em diferentes lugares, mas têm sido na política, espaço onde outra vida é pensada a partir de um novo arranjo político da sociedade, que as utopias se fazem mais presentes. Neste campo sonha-se com praticamente tudo, do imaginado ao que ainda não se imaginou.

Procurando regularidades entre diferentes formas de socialismos utópicos, é importante pensar nas observações de Jean-Christian Petitfils, quando este fala que estas correntes de pensamento parecem sempre florescer em momentos de crise, como se as

agitações do momento incitassem os homens a buscar nos sonhos uma desforra da realidade. Contudo, é possível perceber também que as reconstituições utópicas de outros

81

BOGO, Ademar. In: MST. “Valores de uma prática militante”. Consulta Popular. 2000, p.71.

tempos, outros lugares, reencontram-se nas críticas já feitas sobre os pensamentos utópicos. Dentre estas críticas destacam-se aquelas em que os utopistas são acusados de terem uma concepção racionalista da verdade, que se deve impor a si mesma e triunfar sem problemas sobre o erro. Como se pudesse haver uma resposta única aos problemas que surgem a cada momento. Uma outra crítica recai sobre os olhares e entendimentos das concepções utópicas sobre as relações humanas. Daí a forte tendência das teorias, sob o pretexto de

criar um homem novo, pacífico, altruísta, econômico, trabalhador e dedicado à coletividade83, a desejarem, a quererem mesmo prender os indivíduos em limites rígidos e tratá-los como espécies de marionetes. Uma perda da noção da diversidade e multiplicidade de ser dos sujeitos.