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4.3 ATRADUÇÃO DE PÉRICLES EUGÊNIO DA SILVA RAMOS

4.3.1 A Reconstrução dos Marcadores de Ironia

Em um fragmento do texto original, o enredo e as ironias situacionais possivelmente são os aspectos mais difíceis de serem recriados. Pois ainda que a tradução venha precedida de uma introdução que informe ao leitor dados importantes em relação ao autor e ao poema, a parte selecionada sempre será apenas um recorte do todo, de modo que o enredo fica reduzido a uma pequena amostra do poema. Para auxiliar a sanar tais dificuldades, as notas informativas, declarações do tradutor e contextualização são fundamentais. A tradução apresentada por Ramos deixa a desejar nesse sentido.

4.3.1.2 Forma X Conteúdo

Quanto aos aspectos formais, citamos anteriormente a declaração do tradutor, que busca uma alternativa para a diferença estrutural das línguas, diferenciadas tanto na estrutura geral das palavras como na métrica. Quanto à métrica, o tradutor é favorável ao uso de um metro mais livre e menos antiquado, que não “embolore” o autor.

É irônico como a declaração de Péricles e o resultado de sua tradução se contradizem. Apesar de buscar um metro mais adequado à recontextualização do poema para nossos dias, o tradutor reescreve o poema em um padrão de linguagem muito rebuscado, quase anacrônico para os leitores contemporâneos.

Desse modo, observamos que a tradução mantém o contraste entre forma e conteúdo, porém às avessas. Enquanto Byron choca o exigente público literário de sua época pela informalidade de vocabulário e temas expressos em um épico, Péricles busca uma forma menos canônica e acaba por contrapor a ela um vocabulário extremante formal.

4.3.1.3 Rimas Irreverentes

Ainda que o tradutor não pretenda seguir a métrica ou o ritmo do original, conforme explicitado anteriormente percebe-se sua tentativa de reconstruir uma estrutura semelhante à do original, estrutura caracterizada como importante recurso de ironia instrumental por meio de uma composição de igual número de versos e pares de rimas. O esquema métrico da tradução não tem um padrão de regularidade, e, na maioria das vezes, utiliza rimas pobres e baste óbvias: serafim/fim, cor/dispor, rebuscada/rematada, leão/salão.

Como exceção, Ramos recria uma combinação inusitada, bem ao estilo do original, na parelha final da estrofe 112, em que rima apareça e meça, bem ao estilo de Byron, que faz de suas parelhas finais um efeito surpreendente não só por suas combinações improváveis como também pelo arremate, geralmente satírico, que esses versos atribuem a cada estrofe. Percebemos aqui a reconstrução parcial da ironia instrumental contida nos versos originais.

4.3.1.4 O narrador Onisciente Intruso

No trecho em questão o narrador é o protagonista. Por se tratar de fragmento filosófico/reflexivo, ele assume a voz do poema e dirige-se ao leitor, às mulheres em geral ou ainda mais especificamente a Lady Daphne. Esta não aparece como personagem atuante da narrativa, e pode portanto ser compreendida como uma figura representativa de uma mulher qualquer, uma vez que o alvo é a plateia, ou seja, a sociedade burguesa a quem fala diretamente, evocando-a a refletir seus valores e atitudes diante da literatura e da vida.

A tradução recria esse discurso em termos, pois, devido à não contextualização, o efeito crítico e a interação com o leitor são bem menos percebidos, prejudicando desse modo a ironia situacional evidenciada no original. Apesar disso, a onisciência característica da habilidade do narrador conhecer a tudo e a todos os envolvidos, adivinhando-lhes as qualidades e os defeitos, foi reproduzida na tradução, que manteve os princípios dessa característica e pôde, desse modo, reconstruir parcialmente este marcador de ironia bem como a manifestação de ironia romântica.

4.3.1.5 A Estrutura Antitética

A relação de aparente oposição, característica da ironia, se manifesta pela inesperada mudança de tom em relação às mulheres da “socking society”, pois nas duas primeiras estrofes o narrador/poeta se dirige a elas em tom de crítica e questionamento quanto ao gosto literário, a seguir passa a lisonjeá-las, e acaba por cortejá-las na última parelha do trecho.

Essa dualidade foi mantida também na tradução, de modo que não se perde na tradução o reconhecimento dessa característica da ironia instrumental marcante na composição. Lexicalmente a oposição aparece na medida em que Byron, quando se refere às mulheres da “socking society” como “seraphic creatures” e admite não desgostar de “learned natures”, finaliza afirmando que havia conhecido uma mulher dessa escola e que ela era “The loveliest, chastest, best, but—quite a fool.”. Essa relação de antítese foi mantida na tradução, que reconstruiu a enumeração dos adjetivos inicialmente positivos até terminar com um bastante pejorativo “a mais amável, a mais casta, a melhor… mas, tola arrematada”.

4.3.1.6 Gradação

A enumeração de adjetivos com efeito de ênfase, muito presente na composição como um todo, é também observada nessa passagem, como demonstra a legenda. As sequências de advérbios/adjetivos destacadas mencionam respectivamente características atribuídas às damas a quem o trecho se refere; a primeira soa como um elogio sincero em que as qualidades lisonjeiam as damas (darkly, deeply e beautifuly). Assim também a tradução reproduz o efeito (escura, forte, belamente). A segunda sequência destacada, por sua vez, apresenta um desfecho

contraditório que a arremata numa oposição irônica e ferina como explicitado no item anterior.

4.3.1.7 A Ironia na Constituição das Personagens

O trecho em questão tem como personagens as mulheres da “coterie” ou “stocking society” a quem Byron critica pelas avaliações literárias, mas faz um galanteio no final. Essa representação é recomposta pela tradução, que reconstitui as mesmas personagens e também o sentido que é relativo a elas, de modo que o tradutor reconstitui a rede de significados e alusões referentes aos envolvidos nessa passagem. Também são mencionados os tradicionais escritores ingleses, cuja prática antiquada e mal-humorada é alvo de críticas indiretas de Byron, o qual que insinua que aqueles, tal como as mulheres da stocking society, tomam como passatempo e divertimento a crítica literária. Assim constatamos que a dualidade das dimensões instrumental e situacional da ironia de Byron foi recriada pela tradução aqui analisada.

4.3.1.8 Ramos e a Tradução das Digressões Irônicas

Esse é o aspecto que permeia todo o poema, e está também contido no trecho analisado, mas está, contudo, limitado, uma vez que as cinco estrofes em questão apresentam uma pequena porção do épico. O trecho insinua a atração do narrador/poeta pelas mulheres desse grupo, destacando algumas (“some of you”) como representantes da beleza e da castidade. A relação foi mantida também na tradução (“muitas de vós”). As digressões irônicas aparecem também na alusão que é feita ao gosto literário predominante e ao julgamento promovido pela stocking society e que define o sucesso ou fracasso dos escritores como em uma loteria. Essas referências são mantidas na tradução.

Também nessa passagem observamos uma alusão a Wordsworth e a sua poesia. Tratando-o por Wordy, Byron refere-se aos versos de seu desafeto pejorativamente, na passagem destacada: “Why then I 'll swear, as poet Wordy swore / (Because the world won't read him, always snarling),”. A tradução recria a alusão, que para o leitor atento e conhecedor do estilo e das desavenças dos dois, identifica prontamente a crítica: “Ou então jurarei, Wordy assim fez, o poeta, / (o mundo não vai vê-lo, está sempre a rosnir),”.

O fragmento analisado apresenta os reflexos autobiográficos de Byron na medida em que o poema questiona os padrões da crítica

literária inglesa, tal como seu autor o faz com frequência, direta ou indiretamente por meio das vozes em seus poemas. No caso em questão é o narrador/poeta quem manifesta as opiniões claramente relacionadas a Byron, opiniões que são reescritas na tradução.

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