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7 BRINCADEIRA NA ESCOLA: SOBRE ESPAÇOS E TEMPOS

7.3 Lá não tem recreação! A jornada escolar

Olhar a educação da infância em tempo integral a partir de uma concepção dos direitos da criança significa recusar um ofício de criança e de aluno de mero confinamento no espaço-tempo das instituições educativas (SARMENTO, 2015, p. 83).

A EC Aspalha – o locus da presente pesquisa – faz parte do Programa Novo Mais Educação – criado pela Portaria MEC n. 1.144, de 10 de outubro de 2016, e regido pela Resolução n. 17, de 22 de dezembro de 2017, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, na perspectiva educativa de escola integral, em parceria com a Escola Parque 210 Norte desde o ano de 2017 (DISTRITO

32 O termo “alfabetização” é conceituado por Soares (1999) como o domínio de uma tecnologia

FEDERAL, 2018). Assim, as crianças frequentam as duas instituições educacionais em turnos opostos.

As rotinas informadas pelas crianças e profissionais da escola supramencionada, nas oportunidades que tivemos de falar sobre o assunto, podem ser descritas e distribuídas da seguinte maneira: acordam entre 6h e 6h30min da manhã. Algumas tomam café em casa, outras não. Poucas residem próximo à escola, a maioria utiliza ônibus escolar, fica na parada acompanhada dos pais ou irmãos/ãs mais velhos/as e/ou vizinhos/as. O horário de permanência na EC Aspalha é das 8h às 13h. Nesse período, existem horários fixados para café da manhã, lanche e recreio (8h, 10h e 10h30, respectivamente).

Assim que termina o período de aula na EC Aspalha, as crianças adentram o ônibus escolar e seguem para a Escola Parque onde permanecem até as 18h. Nessa instituição, das 13h15min às 14h30min, é o período fixado para que ocorra a chegada das crianças, seguida de almoço, escovação dentária e descanso. Os horários de lanche e recreio ocorrem conjuntamente das 15h30min às 16h. Nesse local fazem duas aulas programadas com duração de uma hora e trinta minutos cada uma delas.

Ao longo da minha vivência e diálogos com profissionais na EC Aspalha, em diversas situações, a ida das crianças para a Escola Parque no contraturno escolar foi mencionada. Houve vezes que presenciei os profissionais conversando sobre as dificuldades enfrentadas na questão disciplinar, comentários dos professores relacionados às dificuldades das crianças em realizar atividades de casa, cansaço, diminuição no rendimento escolar, mas também ouvi elogios sobre a qualidade das refeições oferecidas e principalmente os benefícios relacionados à segurança das crianças ao estarem mais tempo no ambiente escolar sendo preservadas das violências e mazelas das ruas.

Com relação às crianças, ao longo do período em que convivi com elas, 13 delas, em algum momento da nossa convivência, abordaram a temática de sua ida para Escola Parque no contraturno escolar. O gráfico a seguir indica o interesse apontado por ela:

Gráfico 5 – Opinião das crianças sobre frequentar a Escola Parque no contraturno

Fonte: Elaboração própria.

As vozes dos sujeitos do estudo (crianças do 1° ano do turno matutino, que frequentam a Escola Parque no turno vespertino) que dizem não gostar de ir ou gostar parcialmente nos dão indícios de que a retração dos espaços-tempos do brincar, o cansaço e o longo período de afastamento de suas famílias e casa são elementos que interferem em sua satisfação de frequentar a Escola Parque no contraturno, em outras palavras, de estarem na escola em tempo integral.

Eu gosto mais ou menos. Lá na Escola Parque tem muita coisa, aí a gente cansa. Fico com sono, mas não pode dormir no ônibus, mas quando chega em casa o sono passa e demora a voltar (A).” “Mas não gosto de ir para lá de tarde, lá é chato. Antes eu pensava que ia ser só brincadeira lá, que eu ia de manhã e à tarde vinha pra cá. Aqui tem totó e lá não. Eu gosto de ir para casa a tarde. Eu vou para casa as vezes. Eu gosto de ir para casa. D. (DIÁRIO DE CAMPO, datas diversas de 2018).

Sobre as vozes das duas crianças que disseram gostar de estar na Escola Parque no contraturno, destacam como positivo a alimentação, a possibilidade de produção de desenhos, as oportunidades que professores lhes dão de brincar em momentos não permitidos. “Gosto da Escola Parque porque faço desenho e jogo biloca (D.)”. “Gosto de ir para EP a gente tem um tio que deixa a gente brincar na

Gosto de ir Não gosto de ir Gosto de ir mais ou menos 0 1 2 3 4 5 6 7

hora do descanso. O que gosto lá é de brincar, o lanche é bom e as aulas são legais.(El.)” (DIÁRIO DE CAMPO, datas diversas de 2018).

O espaço-tempo do brincar é um elemento comum nas falas das crianças. A compreensão mais ampliada de suas rotinas serviu de subsídio para entendimento de grande parte das queixas que apresentaram.

Entre percurso a pé, de ônibus e o tempo em que ficam nas duas escolas, as crianças dispendem de 11 a 13 horas por dia. Ao retornar da escola, a maioria relata que não tem tempo para brincar, pois precisa acordar cedo no outro dia. Sendo assim, atividades citadas por elas como divertidas; brincar com as crianças da vizinhança e irmãos, ver os conhecidos, andar de bicicleta, assistir a desenho na televisão, dentre outras, ficam para os fins de semana.

Gráfico 6 – Distribuição do horário das crianças

Fonte: Elaboração própria.

O gráfico 6 apresenta o tempo despendido pelas crianças durante o período de um dia (24 horas), nos principais círculos de convivência, tomando como referência os horários indicados pelas famílias de cinco crianças (Al., Ar., D., I. e M.E). A análise numérica aponta para hipótese de que 12 horas do dia dessas crianças (53%) são dispensadas à escola, da seguinte forma: 5 horas na Escola

Distribuição do horário diário das crianças - por referência

Tempo de deslocamento Tempo na Escola Classe Aspalha Tempo na Escola Parque

Classe Aspalha, 5 horas na Escola Parque e 2 horas de deslocamento. O tempo restante é dividido entre sono, 8 horas diárias (35% do dia) e 3 horas de tempo com a família (13% do dia). As famílias relataram que, durante o período em que estão com as crianças, realizam atividades de cuidado diário como alimentação e higiene, vez ou outra auxiliam em alguma tarefa escolar, conversam e, quando resta algum tempo, brincam ou leem histórias.

Durante a pesquisa, tive a oportunidade de conversar sobre o tempo de permanência das crianças na escola com oito famílias. Quando perguntada sobre os benefícios advindos da ampliação do tempo de permanência das crianças na escola, a maioria aponta que, como os pais precisavam trabalhar, o cuidado com as crianças era delegado a outros, ficando os pais mais tranquilos quando as crianças se encontravam na escola. Dessas oito famílias, apenas uma relatou que a criança estava se desenvolvendo melhor, e outra se opôs à ampliação do tempo. Uma das mães relatou que, embora estivesse de acordo, percebia que a criança chegava muito cansada em casa.

As atividades desenvolvidas na Escola Parque no contraturno escolar são voltadas para as áreas de conhecimento de Artes Cênicas e Visuais, Educação Física e Música. Embora o PPP da instituição esteja fundamentado no Currículo em Movimento, tendo a ludicidade como eixo integrador, especialmente nas atividades direcionadas às crianças do primeiro ciclo do Ensino Fundamental, existe um descompasso no que se refere ao brincar, visto que atividades denominadas de lúdicas são de prerrogativa dos/as professores/as, eles/as elaboram, planejam, identificam as regras, pensam na execução e nos objetivos a serem atingido a partir delas.

Em grande parte, as propostas didáticas que estão relacionadas ao lúdico tomam uma via oposta do brincar como atividade principal das crianças. Isso ocorre porque, diferentemente do denominado ensino por meio do lúdico proposto pelos professores, nas brincadeiras, as crianças assumem protagonismo. Elas acordam com seus pares desde a escolha até as regras da brincadeira, que podem ser mudadas ao longo do seu desenvolvimento, agregando novas simbologias e não estando presas à aprendizagem de conteúdos escolares, mas à aprendizagem de diversos códigos, visto que brincando, aprende-se, entre outras coisas, a brincar (VIGOTSKI, 2009).

“Lá na Escola Parque não brinco muito só estudo, vou para o recreio e depois acaba e não tem recreação. Só tem aula de Educação Física e demora eu ir embora para casa (Ar.).” (DIÁRIO DE CAMPO, 18/12/2018). A fala de Ar. expressa uma reivindicação relacionada à brincadeira, ao descanso e ao tempo de estar em casa. Ir para casa no período vespertino, para algumas das crianças do 1º ano, traz consigo oportunidades outras de brincar com seus/as irmãos/ãs, na rua com vizinhos/as e colegas, mas também propicia um momento de descanso e tempo de estar com a família. Sendo assim, para Ar. e outras crianças, era melhor ir para casa, mesmo porque a instituição não lhes propiciaria essa condição, ao mesmo tempo que age na retração dos seus espaços-tempos de brincadeira quando não oferece a recreação.

Ao discutir a ampliação da jornada escolar das crianças, Tonucci (2016), aponta para riscos que envolvem esse processo, dentre esses, a contração dos direitos infantis e a concepção reducionista da educação que desconsidera a aprendizagem sociocultural e a satisfação da criança.

[...] os meninos e meninas quase não saem de casa, passam a tarde em escolas de tempo integral, fazendo música, esporte, etc., e chegam em casa com as lições de casa que a escola passa todos os dias – incluindo fins de semana, feriados e férias. Isso é um abuso da escola, porque a Convenção dos Direitos das Crianças diz claramente que elas têm dois direitos, expressos no artigo 28 – o direito à educação formal; e no artigo 31 – direito ao descanso, ao tempo livre e ao livre brincar. (TONUCCI, 2016, s/n)

A crítica do autor ao processo educativo formal e institucional fundamenta-se na compreensão de que esse não considera as aprendizagens que as crianças já possuem e suas múltiplas linguagens. Sendo assim, de maneira oposta, embasa-se mais nas lacunas no que lhes falta. Tonucci (2016, s/n), assim como outros estudiosos da infância e do desenvolvimento infantil como Vigotiski (2010, 2009), Brougère (2000, 2015) e Winnicott (1975), considera a brincadeira como uma das experiências mais importantes de uma pessoa, visto que “ todo o cimento sobre o qual se constroem nossa formação e nossa cultura, foi adquirido nos primeiros anos de vida brincando”. É a partir dessa concepção que o autor coloca que “a escola deva ocupar a manhã e respeitar a tarde”, pois é a partir do brincar livre que as crianças “vivem experiências e emoções que amanhã poderão ser aportes à vida escolar.”

Como dito anteriormente, o estreitamento dos espaços-tempos de brincadeira no contexto escolar é enfrentado pelas crianças que, de diversas formas, constroem, em conjunto com seus pares, espaços-tempos outros. Contudo, o próprio enfrentamento também expõe as fragilidades das concepções educativas que regulamentam o sistema educacional como um todo, que privilegia o ensino formal voltado à aquisição de competências ligadas à produção escrita e cálculos, relegando a segundo plano aprendizagens ligadas às experiências socioculturais, à vida em sociedade e, por que não, às emoções.

Embora não seja o objeto deste estudo pensar as brincadeiras infantis como um direito das crianças, somam-se as complexas tensões que envolvem a vida contemporânea, dentre elas, tolhimento, restrição da mobilidade e espaço de experiências infantis com a negação do livre acesso à cidade. Isso é agravado pelo fato de as políticas públicas voltadas às crianças não traduzirem efetivamente a garantia de seus direitos, uma vez que se tornam instrumentos que validam as lógicas econômicas de produção no sentido a atribuir à escola a função de assegurar-lhes um espaço de segurança contra a violência urbana, ao mesmo tempo em que garante aos pais a tranquilidade de produzir, ou seja, trabalhar. Nessa lógica em que a produção da criança não tem importância, visto que não tem valor econômico, a função da escola tem caráter restritivo e não de educação no sentido amplo, qual seja, formação humana.