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Recuperação da ternura: a busca do abraço e do cuidado na saúde comunitária.

Comunidades Vaporosas: comunalidade, sentimentos e redes solidárias.

4. Recuperação da ternura: a busca do abraço e do cuidado na saúde comunitária.

Toda a inquietação e a descoberta de novas abordagens e de novos olhares; as rupturas nas formas de conhecer, rupturas científicas e políticas; as aperturas emocionais, o reconhecimento da necessidade urgente de autotransformar-nos; todas estas movimentações subterrâneas confluem no objetivo de ampliar a sensibilidade dos nossos sentidos para “sentir conhecendo”, e “conhecer sentindo”. Afinal, o nosso interesse na mudança do olhar é nosso interesse na mudança da pessoa como um todo.

Trata-se – no fundo – de um processo análogo à denominada busca espiritual37 (spiritual quest) de todas as tradições espirituais, onde elementos

como experiência, vivência do mundo, crescimento espiritual (evolução), transformação e autotransformação, aprofundamento da sensibilidade – a capacidade de perceber, com a intuição – são colocados como tarefas primárias e urgentes daquele que “procura”. Pareceria um contra-senso, dizer algo assim no meio do fortalecimento atual da “medicina baseada em evidências” – ou, até, da medicina da família baseada em evidências – uma afirmação romântica e idealista, um passadismo. Na verdade, trata-se de uma operação de ruptura com a forma racionalista e esquemática que historicamente foi construída e repassada a nós ao longo de toda nossa formação profissional, e, depois, na prática cotidiana nas instituições de saúde. A ruptura quebra também com a lógica hegemônica, com o objetivismo, com a indiferença (distanciamento) em relação aos objetos, que passam agora a ser sujeitos – que afirmam vida, política, culturas, formas relevantes de conseguir saúde, questionando-nos, interpelando-nos, e

37 No oriente, a idéia de busca espiritual é a grande metáfora que acompanha os líderes

espirituais como Buda (os sete anos à procura da iluminação) ou Cristo (os quarenta dias no deserto). No ocidente, ela relembra as cruzadas, na idade média; a busca do Santo Gral, na lenda do Rei Artur; e nos séculos XVI I I e XI X, o culto dos românticos pelas viagens, pela experiência do mundo (o Sul, em geral), pela vida simples, a idealização do rural e do folk. Lembremos que a viagem de Darwin no Beagle, e a de Von Humbolt, foram também, viagens para “ganhar experiência de vida”. Na Alemanha em especial, os românticos produziram uma série de romances de Bildung, ou construção da pessoa, que contribuíram a difundir estas idéias. Na tradição poética americana, por exemplo, poetas como Whitman, escritores como Kerouac e Snyder, músicos como Bob Dylan e Arlo Guthrie, exemplificam bem esta metáfora de

demandando diálogos reais. Para isso, como afirma Boaventura de Sousa Santos, devemos construir um paradigma dialógico, que misture ética, cuidado e respeito, “gerando conhecimentos prudentes para vidas decentes” (Santos, B. 2000). Outras formas de olhar – epistemologias, teorias da realidade relacional do mundo, e métodos de experiência direta – têm se mostrado mais sensíveis e úteis para mudar o olhar mudando o observador, aprimorando o indivíduo que busca conhecer e atuar.

Para essa viagem de transformação levamos conosco nosso saber técnico, e nosso espírito curioso e crítico. Dois saberes necessários, porém não únicos nem superiores. Trata-se, também, de aprendizados da humildade; e do reconhecimento da nossa interconexão com os “objetos” de indagação ou de intervenção. Desta forma, ao atuar na saúde, nós também nos estudamos – e somos estudados, pelos nossos “objetos”. Os profissionais de saúde também somos a parte “intervida”.

A busca das correntes alternadas38 do conhecimento passa, intuímos, pelos caminhos do coração. Quer dizer, pela abordagem ativa e consciente da subjetividade; dos interiores, múltiplos e geológicos. Passa por movimentos de busca e de encontros. Por amores e sentires, pela dor que irmana, pela festa e os bem-vindos estados espirituosos que quebram formalidades e aproximam: um almoço, uns copos de cerveja, aquele aniversário, o convite para apadrinhar um bebê. Mas os caminhos do coração não são claros; neles exercem-se artes subterrâneas, para as quais a razão tem limites: a improvisação, a criação em movimento, a arte da vulnerabilidade (única forma de amar e ser amados), a aceitação da coexistência dinâmica dos opostos. O nosso coração vai ter que ser paciente – coisa quase impossível quando há sentimentos e emoções envolvidas. O nosso coração há de aprender a ser consciente e crítico – andar alerta percebendo maravilhas, sim, mas também armadilhas (externas e internas). Não é tarefa fácil se transformar, realizar a busca de vida para se converter em um criador da vida.

[cont...] busca.

38 Expressão cunhada por Octávio Paz para referir-se àquelas outras correntezas, fluxos

elétricos, rios de sabedorias que não aparecem, usualmente, nas agendas oficiais ou reconhecidas como “modos corretos” de saber e fazer.

Mesmo com estas dificuldades e estranhos requisitos, a preocupação por estes temas é crescente na nossa área, motivada talvez pela volta à cena pública brasileira da saúde das comunidades, com a criação e expansão do Programa de Saúde da Família, do Programa de Agentes Comunitários de Saúde, e de vários programas de Promoção da Saúde, sob diversas abordagens. Tomemos o exemplo da Educação Popular em Saúde, talvez a precursora e protagonista destas inquietações dentro do campo da saúde orientada ao trabalho comunitário.

Na sua Introdução ao recente livro da Rede de Educação Popular em Saúde, Vasconcelos (2001: 11-19) sugere-nos um campo de atuação e reflexão a ser configurado. Dizemos “sugere” porque, no breve texto ele não aborda em profundidade a questão, que mereceria não só uma pesquisa, mas um bom corpo de experiências e estudos, para servir como base do campo. A seguir, transcrevemos algumas das expressões usadas pelo autor: “[ busca] de alternativas de atuação”, “convivendo”, “interagindo”, “contato”, “reorientações práticas”, “valorização das trocas pessoais”, “contatos informais”, “participação em eventos sociais locais”, “diálogo”, “cultura de relação”, “superar o fosso cultural existente”, e “valorizar saberes e práticas da população”.

Nestas expressões figuram alguns dos espaços cognitivos e emocionais que temos querido mostrar até aqui: o interesse pelo Outro; o reconhecimento de que será somente estabelecendo relações profundas e legítimas com as comunidades que “tudo acontecerá” nos projetos e programas comunitários, a necessidade de mudarmos como profissionais e como pessoas, objetivando ser sujeitos mais perceptivos e intuitivos, criadores e artistas, com maior capacidade de sentir e refletir. Aqui concordamos tanto com Valla como com Vasconcelos quando sugerem que o fundamental na equação “profissionais/ população” é impulsionar processos de mudança de olhar, de transformação dos profissionais.

Nossas visões sobre comunidades são conseqüência, em boa parte, das nossas compreensões dos Outros. E estas compreensões influenciam a forma como nos relacionamos com pessoas e grupos “naturalmente” considerados ignorantes, carentes, desviados, passivos. A Educação Popular em Saúde, que muda os pontos de partida (ao ensinar, aprendo daquele que ensino), e promove processos dialógicos, participativos e críticos (porque

questiona a ordem e porque revela o que foi oculto), é um bom exemplo de mudança de olhar, e é um campo que bem poderia dialogar com visões mais ousadas.

Os caminhos do coração, insistimos, são difíceis. Se fossem fáceis de serem trilhados, muito já teria sido mudado. Entretanto, apesar das dificuldades e perigos, próprios de uma “aventura heróica” de busca espiritual, o surgimento e crescimento do interesse por “sair do próprio lugar”, dessa intuição “de que algo de muito valioso encontra-se lá”, seja em jovens profissionais ou em lideranças comunitárias, é sinal da importância destes caminhos.

A grande tribo multiforme vai caminhando, edificando espíritos críticos e amorosos, e começa a se reconhecer com outros caminhantes, tecendo redes, propiciando encontros, trocas, sorrisos e festas. Muitos amores e boas saudades.

* * *

A abordagem budista sobre comunidade, ambiente e ação social – a ser discutida no seguinte capítulo – poderia ser um grande reforço para fortalecer nossa intuição da interconexão fundamental entre os seres, e entre eles e o mundo e uma realidade relacional, mutável e dinâmica. Reconhecer- nos parte de “todos” amorosos, de totalidades de sabedoria, sem dúvida ajudaria às necessárias transformações de que precisamos para enxergar processos ainda invisíveis de procura e manutenção de estados saudáveis, reformulando, ao mesmo tempo, nossa idéia de saúde, de cura, de coletivo, de terapêutica, dos papeis sócias de cada ator do drama do qual fazemos parte.

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