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A rede enquanto promessa: a teoria da ciberdemocracia de Pierre Lévy

CAPÍTULO 01 – DA REDE NA POLÍTICA À POLÍTICA NA REDE: CAMINHOS

1. Entre promessa e agouro: a estruturação dos primeiros debates sobre Internet e Política

1.1 A rede enquanto promessa: a teoria da ciberdemocracia de Pierre Lévy

Dos autores dessa primeira leva de trabalhos, certamente o filósofo francês Pierre Lévy é o mais influente e representativo. Ele é o fundador de um campo de estudos que tem por objeto principal a Cibercultura, conceito que ele formulou para se referir a uma forma de cultura característica do Ciberespaço – outro conceito proposto por ele. É importante notar que todo esse vocabulário criado por Pierre Lévy é extremamente difundido nos estudos sobre Internet como um todo, mesmo por aqueles que o criticam. Isso mostra a influência de suas ideias nesse campo. Para se ter uma noção do tamanho da difusão desses conceitos, o Grupo de Trabalho do Encontro Anual da ANPOCS que aborda a temática da Internet e Política intitula-se ainda hoje de Ciberpolítica, ciberativismo e cibercultura.

Para Lévy (1999: 19) e seus adeptos a Cibercultura é “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de atitudes, de modos de pensamento e de valores” que surgiram e se desenvolveram juntamente com, a partir e no Ciberespaço. Este último é caracterizado como “um espaço de comunicação navegável e transparente centrado nos fluxos de informação” que surge da interconexão mundial de computadores (LÉVY, 1996: 46-47). Em outras palavras, a World Wide Web.

Devido a sua estrutura reticular, na qual cada novo dispositivo que se conecta amplia a extensão da rede, Lévy defende que é impossível traçar as fronteiras do ciberespaço. Em suas palavras, este seria como um círculo “cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma”. Além disso, o conceito de Ciberespaço não designa apenas a infraestrutura física da comunicação digital, mas também “o universo oceânico de informações que ela abriga” bem como as pessoas que “navegam e alimentam esse universo” (LÉVY, 1999: 19).

O desenvolvimento da Cibercultura e do Ciberespaço é compreendido por Lévy como a fase mais recente da virtualização da cultura humana. Essa tese de Lévy (1996, 2010) sobre o virtual possui consequência filosóficas muito amplas – que não serão discutidas aqui em seus pormenores –, mas que, de modo geral, se refere a desterritorizalição das relações humanas, isto é, a superação dos constrangimentos impostos pelo tempo e pelo espaço. Nesse sentido, o autor compreende a Internet pressupondo seus potenciais de transformação social.

Também a partir desse pressuposto, o autor trata da relação política e Internet formulando sua ideia de Ciberdemocracia. Para ele a Internet é uma ferramenta passível de ser utilizada para amplificar e fortalecer a democracia a nível mundial e diminuir as desigualdades regionais. Em suma, uma ferramenta da emancipação da humanidade. Lévy (1999: 190) entende que o ciberespaço pode promover “maior participação da população nas decisões políticas”. As potencialidades do ciberespaço, para ele, podem “encorajar as dinâmicas de reconstituição do laço social, desburocratizar as administrações (...), experimentar novas práticas democráticas”, como a transparência e avaliação de políticas públicas por parte dos cidadãos.

O ciberespaço levaria, assim, a formação de uma “sociedade civil planetária que se exprime doravante num espaço público sem território”. Isso, na visão do autor, contribui para a formação de “uma ciberdemocracia planetária” que se realiza pelo “consumo consciente”, “investimento socialmente responsável” e “governação directa da economia pelos cidadãos” (LÉVY, 2003: 12). A ciberdemocracia que Lévy defende consiste, assim, em um aumento da participação popular na vida pública através da infraestrutura tecnológica do ciberespaço. Nesse sentido, ela é compreendida como uma solução para uma crise de representatividade que, conforme o autor e seus adeptos, passa as democracias contemporâneas.

Escrevendo no final da década de 1990 e início dos anos 2000, portanto no início do boom da Internet, Lévy é proponente de uma filosofia política de caráter normativo, como fica claro no prefácio de sua obra (LÉVY, 2003). O autor faz altas apostas sobre o que ele deseja e acredita que a Internet pode proporcionar. Os conceitos que o autor formula em seu livro sobre a Ciberdemocracia ilustram o espírito da sua abordagem focada nas “promessas” que ele enxergava no advento da Internet: comunidades inteligentes, governança eletrônica, mundialização da política, Estado transparente, etc.

Como agenda política essas ideias são, certamente, legítimas, mas podem ser arriscadas em um trabalho que se pretende sociológico. Por um lado, ele enxerga o surgimento de comunidades virtuais liberadas dos constrangimentos espaciais, o advento da Internet como um novo espaço de comunicação plural e relativamente mais livre – o que está correto. Por outro ele ignora fenômenos como o aumento da vigilância individual, as desigualdades no acesso à tecnologia, para citar alguns por exemplos.

Nesse sentido, é interessante notar uma das limitações da teoria de Lévy. Após tanto falar das potencialidades do Ciberespaço e da Cibercultura na transformação da sociedade, ele retira deles o papel de promotor dessas mudanças. O autor chega mesmo a afirmar que todas essas transformações não dependem exclusivamente do suporte tecnológico no qual se assenta

o ciberespaço, mas de “uma profunda reforma das mentalidades, dos modos de organização e dos hábitos políticos” (LÉVY, 1999: 190). Quanto a isso, poder-se-ia questionar qual o real papel do Ciberespaço na consolidação da Ciberdemocracia defendida por Lévy, uma vez que ela depende mais de uma mudança de atitude das pessoas do que do ciberespaço em si, esse mero suporte das ações emancipadoras desejada pelo filósofo.

Vê-se, assim, que a argumentação construída por Pierre Lévy incorre em uma circularidade ou tautologia. Em um primeiro momento o autor parece querer compreender o papel do Ciberespaço e da Cibercultura na transformação da sociedade. Em seguida, ela retira desses dois fatores o caráter explicativo da mudança (ou possibilidade de mudança, melhor dizendo) para afirmar que a consolidação da Ciberdemocracia depende menos do que ele chama de Ciberespaço (a Internet e sua cultura, para sermos mais diretos) do que de uma genérica mudança de hábitos e mentalidades das pessoas. É como se o fenômeno que precisa ser explicado fosse a própria explicação.

1.2 Internet, uma ameaça à democracia: as abordagens pessimistas de Bauman, Dean e