• Nenhum resultado encontrado

REDESCOBRINDO AS CORES

No documento A JUSTIÇA E AS CORES (páginas 146-150)

1 ENFRENTANDO UM MODELO DEMOCRÁTICO ASSIMILADOR

1.7 REDESCOBRINDO AS CORES

De certo modo, a imagem do Brasil como um país incolor, ou melhor, como um país de cores fugidias ao ponto da irrelevância social, foi elaborada sob o ponto de vista de um grupo social predominantemente branco. Além disso, é preciso reconhecer que a miscigenação não é um fator que por si só impeça o surgimento de segmentações racistas na sociedade. No caso do Brasil, por exemplo, a miscigenação se deu não como um discurso para inclusão de todas as identidades raciais, mas como forma de incorporá-las e eliminá-las através da construção de uma meta-raça que absorvesse as demais, a partir de uma concepção que compreende a democracia como adesão à maioria.

O ponto de vista de negros e indígenas está quase sempre ausente da imagem de um Brasil sem racismos. Desta sorte, é compreensível que pessoas que passaram por experiências de discriminação racial tenham dificuldade em se reconhecer nessa imagem de país que lhes é mostrada. O debate acerca das ações afirmativas no ensino superior vem justamente ao encontro dessa reivindicação pela presença nos espaços de formação da opinião pública e nas esferas de decisão. É impossível ter uma idéia adequada de qualquer problema se não forem ouvidos os atingidos por esse problema. A resposta aos problemas de se saber se há racismo no Brasil e se o racismo existente justifica a implementação de políticas públicas para seu combate só pode ser obtida se todos os interessados participarem como sujeitos do debate.

Durante praticamente toda a história da República tomou-se a decisão de que o problema racial no Brasil não justificava políticas de promoção social ou educacional das minorias historicamente discriminadas. O não fazer também é uma decisão. E essa decisão foi mantida e sustentada por uma classe de dirigentes e por uma classe de

intelectuais com um tom de pele bem homogêneo e definido no espectro social brasileiro. Negros e indígenas estiveram ausentes nessas tomadas de decisão pelo simples fato que seu acesso aos espaços públicos de decisão lhes foram sempre restritos. As ações afirmativas têm por objetivo trazer aos espaços públicos representantes das minorias raciais que sempre estiveram ausentes. A universidade brasileira produziu e reproduziu a ideologia dominante de que não há raças e portanto não há racismo no Brasil. Mas os cientistas e juristas que emitiram essa opinião eram, em geral, pessoas que não conheciam a experiência de serem discriminados, isto é, eram brancos. O ponto de vista do negro e do índio esteve ausente da experiência acadêmica. Promover a inclusão de negros e indígenas na universidade não tem por objetivo a simples distribuição de recursos, nem a tentativa de reproduzir na sala de aula as médias estatísticas obtidas em sensos populacionais. O objetivo é implementar uma das condições de efetivação da democracia, qual seja, a participação do cidadão como sujeito de seu direito. O debate acadêmico, ao tratar negros e indígenas como objeto de pesquisas, mas sem permitir-lhes que participem da produção do conhecimento, acabam por tutelar as minorias como incapazes. A primeira condição para a democracia é que as partes envolvidas estejam presentes no debate político. Ao criar mecanismos para se incluírem nas universidades membros de minorias historicamente discriminadas, pretende-se que essas pessoas possam trazer ao espaço acadêmico suas próprias experiências de vida e opiniões relativas à discriminação e ao preconceito de cor, pois só assim a universidade pode ter alguma segurança de que não está tratando o outro como um objeto, nem está tutelando os interesses alheios.

As ações afirmativas podem representar a institucionalização de um processo de diálogo entre experiências diversas. O resultado desse procedimento pode levar à

confirmação da necessidade de políticas de inclusão, bem como pode chegar à conclusão de que políticas de cunho racial trazem mais problemas que solução. Porém, qualquer que seja a decisão a que poderemos chegar com relação ao problema racial, essa decisão não pode ser tomada sem considerar as perspectivas de todos os agentes envolvidos. Sob tal perspectiva, políticas públicas que incluam membros de minorias raciais em posições sociais estratégicas, e que lhes abram a possibilidade de estar presentes no cenário público como sujeitos ativos do debate, constituem um meio, uma condição de participação na luta contra diversos tipos de discriminação.

A inclusão étnica no ensino superior é interessante, pois não representa a ocupação de um espaço definitivo. O curso superior, sendo transitório, abre oportunidades de trânsito social para seus alunos, mas não representa um status social definitivo. Um diploma superior não é garantia de emprego, pois durante e depois da vida acadêmica se exige constante qualificação e atualização, nem muito menos de ascensão econômica. Por isso mesmo ele é menos susceptível ao risco de se transformar numa forma de caridade ou tutela, pois o estudante sabe que o curso é algo temporário. Embora, como já se afirmou, ter um curso superior não é garantia de nada, ele aparece como canal de participação, como possibilidade e oportunidade. Não é certo que aquele que cursa uma faculdade saberá bem usar desse canal de participação, porém, a democracia não é simples concessão de bens e serviços, mas justamente a institucionalização de mecanismos de acesso à participação, e, sob tal perspectiva, políticas públicas afirmativas implementadas no ensino superior podem justamente realizar essa que é uma dos principais condições da democracia.

Não se pode negar o importante papel da miscigenação para a construção de uma sociedade que, pelo menos, têm preconceito de ter preconceito. Contudo, é preciso

chamar a atenção que mesmo a mistura de raças pode agir como fator de absorção e assimilação de minorias ao invés de garantir o respeito ao direito à diferença. Para que a idéia de democracia racial possa continuar a ser defendida, os membros de qualquer minoria devem poder não só se identificar com aquilo que sentem ser, como também devem existir mecanismos que garantam que membros de minorias vítimas de discriminação tenham acesso a espaços de prestígio social e às esferas de formação da opinião pública e de decisões políticas, de modo que eles próprios possam reivindicar, em seu próprio nome, seus próprios direitos.

2

UM OUTRO EM MEU LUGAR: AS AÇÕES AFIRMATIVAS

No documento A JUSTIÇA E AS CORES (páginas 146-150)