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1. Uma nova fase do capitalismo: reestruturação produtiva e

1.1. A reestruturação produtiva

Com o objetivo de aumentar a produtividade do trabalho e do capital e aprofundar a lógica de produção de mais-valia na relação direta com o trabalho, a partir da década de 1970 uma profunda transformação nos modos de trabalhar e de produzir passou a ser impulsionada pelas empresas capitalistas em todo o mundo, em diferentes setores. O aproveitamento das oportunidades proporcionadas pelas tecnologias informacionais (robótica, microeletrônica, computação, telecomunicações e optoeletrônica) e pelas inovações organizacionais, orientadas pela busca de maior adaptabilidade e maior flexibilidade na organização do processo de trabalho e de produção, foram cruciais naquela transformação.

Ainda antes da década de 1970, novas tendências organizacionais impulsionavam significativas mudanças nos modos de trabalhar e de produzir. Uma das principais expressões daquelas novas tendências foi a experiência histórica da indústria automobilística japonesa, iniciada no final da década de 1940 e da qual resultou um “modelo japonês” de organização do processo de trabalho e de produção.86

86 Durante a década de 1960, num momento em que os principais países capitalistas do Ocidente enfrentavam uma crescente crise econômica, o “modelo japonês” de organização da produção e do trabalho garantia índices de produtividade do trabalho e do capital que permitiram que o Japão alcançasse “espetaculares performances no seu comércio exterior”, tornando-se, portanto, uma espécie de “farol para o mundo capitalista”. Guilherme G. de F. XAVIER SOBRINHO, Modelo japonês, p. 157.

Teoricamente, o modelo japonês se propôs a pensar pelo avesso87 o modelo fordista, ou seja, promover inovações organizacionais que objetivassem a racionalização do processo de produção e de trabalho não numa perspectiva de expansão da demanda, mas, ao contrário, num contexto em que a demanda, além de exigir diversificação na produção, era reduzida, não crescia ou crescia muito pouco (contexto histórico do Japão no período posterior à Segunda Guerra Mundial).88

Da experiência histórica da indústria japonesa resultou um conjunto de técnicas e métodos de organização do processo de trabalho e de produção que, em linhas gerais, pode ser assim sintetizado: a) a

produção é puxada pela demanda, ou seja, intenta-se romper com a

orientação fordista de produzir o máximo de produtos padronizados (e estocá-los a espera do mercado consumidor) e propõe-se uma produção de muitos modelos (cada um em quantidades adequadas), mais atenta à diversidade e às “exigências” da demanda; b) racionalização do

processo produtivo, com uma busca constante de eliminação de tudo

que possa representar desperdício;89 c) a busca de maior flexibilidade do aparato produtivo e sua melhor adaptação às flutuações do mercado acarretam a flexibilização da organização do trabalho: o trabalho tende a ser organizado em equipes e o trabalhador precisa ser “polivalente”, realiza mais do que uma atividade (aumento da unidade de trabalho), podendo agregar atividades de produção, de manutenção, de supervisão e de controle de qualidade; d) para organizar e permitir um maior controle sobre o processo produtivo instala-se o kanban, um sistema de comunicação que facilita uma maior integração entre as diferentes fases da produção e um maior controle sobre todo o processo produtivo; e) as

máquinas e ferramentas são facilmente adaptáveis: como o objetivo é

produzir pequenas quantidades de uma variedade grande de produtos, é preciso que as máquinas e as ferramentas sejam flexíveis e adaptáveis às mudanças na produção com o menor tempo possível; f) focalização: visando racionalizar a produção, o modelo japonês propõe o rompimento com a “integração vertical” fordista e o estabelecimento de relações de subcontratação com os fornecedores (no caso da indústria automobilística, isso resulta numa estrutura produtiva na qual as grandes empresas nucleiam um conjunto de pequenas empresas fornecedoras e

87 Benjamin CORIAT, Pensar pelo avesso: trabalho e organização na empresa japonesa. 88 Thomas GOUNET, Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel.

89 Gounet refere-se ao modelo Toyota como um sistema de organização do trabalho e da produção que pode ser sintetizado em “cinco zeros”: zero atrasos, zero estoques, zero defeitos, zero panes e zero papéis. IDEM, Ibid., p. 29.

subordinadas a elas).90

Há de se considerar, ainda, que o modelo japonês implica um “regime fabril calcado na cooperação entre capital, gerências e empregados”, através de relações mais individualizadas (ao nível da empresa, tanto na definição de condições de trabalho e salariais quanto na organização sindical – o “sindicato-empresa”), com o qual se busca a cooptação dos trabalhadores (um trabalhador “subjetivamente engajado à empresa, com um sentimento de identificação, compromisso e pertencimento a ela”) em troca da concessão, pela empresa, de benefícios materiais e/ou simbólicos.91

De igual importância, as inovações tecnológicas implementadas pelas empresas capitalistas facilitaram enormemente a busca por maior flexibilidade na produção, superando a rigidez das máquinas automáticas vinculadas à produção em massa do modelo fordista, cujo “aparato gigantesco, custoso e rígido” mostrou-se ineficaz num contexto de intensificação da competição econômica, “onde a maleabilidade do aparelho produtivo para acompanhar mais rapidamente as exigências do mercado emergia como um dos principais requisitos”.92 A adoção de equipamentos microeletrônicos flexíveis, com possibilidade de adaptação às exigências de modificação do produto, utilizáveis tanto para a produção de pequenas quantidades quanto para grandes séries, capazes de reduzir o tempo de produção (elevação dos ritmos de trabalho e maior integração do conjunto do processo produtivo), atendeu não apenas as exigências de maior flexibilidade na produção, mas, também, aumentou crescentemente a produtividade do trabalho.93

Máquinas mais flexíveis e adaptáveis às exigências do mercado seriam, no entanto, apenas a ponta do Iceberg no curso das transformações nos modos de trabalhar e de produzir decorrentes das transformações tecnológicas.

Durante as décadas de 1980 e 1990, a continuidade da revolução das tecnologias da informação aumentou significativamente as possibilidades de transformação do processo produtivo e de trabalho: diferentes fases do processo de trabalho, tanto de execução quanto de concepção, puderam ser pré-codificadas e programadas para que máquinas as executassem; diferentes tecnologias de informação

90 IDEM, Ibid., p. 28.

91 Guilherme G. de F. XAVIER SOBRINHO, Modelo japonês, p. 157.

92 Márcia de Paula LEITE, O futuro do trabalho: novas tecnologias e subjetividade operária, p. 84.

tornaram-se “ingredientes decisivos do processo de trabalho”, determinando “uma enorme capacidade de inovação”, permitindo reduções significativas nos tempos necessários para a realização das atividades, possibilitando “a correção de erros e a geração de efeitos de

feedback durante a execução”, fornecendo “a infra-estrutura para

flexibilidade e adaptabilidade ao longo do gerenciamento do processo produtivo”;94 o processo de trabalho incorporou cada vez mais conhecimento, exigindo uma redefinição permanente na qualificação dos trabalhadores; o valor agregado passou a ser gerado principalmente pela inovação, “tanto de processo quanto de produto”, desafiando as empresas a investirem mais em pesquisa, desenvolvimento, especificação (capacidade de desenvolver novos conhecimentos e aplicá-los em objetivos específicos) e em dar respostas a alterações macroeconômicas;95 a teleinformática permitiu que as grandes empresas deslocassem, sem perda de controle sobre o processo produtivo, seus investimentos em escala internacional, reforçando suas operações em âmbito mundial;96 muitas atividades, antes realizadas por trabalhadores assalariados, foram transferidas para os próprios consumidores (serviços bancários, compras pela internet etc.).

Vinculado aos novos modelos de organização do trabalho e da produção, e enormemente facilitado pelas inovações tecnológicas, emergiu um novo padrão de organização empresarial, comprometido com diferentes formas de “flexibilidade organizacional”. Manuel Castells sintetiza e ilustra esse novo padrão organizacional através de seis tendências principais de “evolução organizacional”.

A primeira delas aponta para uma “transição da produção em massa para a produção flexível”. Ou seja, a substituição de um padrão organizacional centrado na “grande empresa estruturada nos princípios de integração vertical e na divisão social e técnica institucionalizada de trabalho” por “sistemas flexíveis de produção em grande volume, geralmente ligados a uma situação de demanda crescente de determinado produto”, que coordenam “grande volume de produção, permitindo economias de escala e sistemas de produção personalizada reprogramável, captando economias de escopo”.97

94 Manuel CASTELLS, A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura, p. 265.

95 IDEM, Ibid., p. 264.

96 François CHESNAIS, A mundialização do capital, p. 28.

97 Manuel CASTELLS, A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura, p. 175.

A segunda tendência se expressa no “declínio da grande empresa verticalmente integrada como um modelo organizacional” e a “flexibilidade das pequenas e médias empresas como agentes de inovação e fontes de criação de empregos”. Essa tendência não testemunha o fim das poderosas empresas de grande porte, mas, “a crise do modelo corporativo tradicional baseado na integração vertical e no gerenciamento funcional hierárquico”, pois, se é verdadeiro que “as empresas de pequeno e médio porte parecem ser formas de organização bem-adaptadas ao sistema produtivo flexível”, é também verdade que o “renovado dinamismo” dessas empresas “surge sob o controle das grandes empresas”.98

A terceira tendência vincula-se diretamente aos novos métodos de organização do processo de trabalho e da produção, em especial aqueles que decorrem do “modelo japonês”, e caracteriza-se pela adoção (ou adaptação) dos métodos de gerenciamento das empresas japonesas (just- in-time, kanban, controle de qualidade total, envolvimento dos trabalhadores no processo produtivo, focalização, redução dos estoques e dos desperdícios, flexibilidade na produção, no trabalho, na organização, nas máquinas).99

A quarta tendência é identificada no “modelo de redes multidirecionais posto em prática por empresas de pequeno e médio porte”, ou seja, redes de empresas formadas através de relações entre pequenas e médias empresas com grandes empresas ou somente entre pequenas e médias empresas com o objetivo de encontrar nichos de mercado ou realizar empreendimentos cooperativos.100

A quinta tendência se expressa através do “modelo de licenciamento e subcontratação de produção sob o controle de uma grande empresa”, do qual o chamado “Modelo Benetton” é exemplar.101

Por fim, a sexta tendência é identificada na “interligação de empresas de grande porte que passou a ser conhecido como alianças estratégicas”, em especial nos setores de alta tecnologia e em acordos visando partilhar o acesso a informações privilegiadas, desenvolver conjuntamente novos produtos, aperfeiçoar novas tecnologias.102

O que decorre dessas tendências organizacionais é que, na nova

98 Manuel CASTELLS, A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura, p. 176.

99 IDEM, Ibid., p. 177. 100 IDEM, Ibid., p. 179. 101 IDEM, Ibid., p. 182. 102 IDEM, Ibid., p. 184.

fase de desenvolvimento do modo de produção capitalista, como resultado da reestruturação produtiva, observou-se uma tendência de ruptura com “um modelo organizacional de burocracias racionais e verticais, típicas da grande empresa sob as condições de produção padronizada em massa”103 e de afirmação de um novo padrão organizacional, cuja principal característica é a formação de diferentes tipos de redes de empresas, que se utilizam das ferramentas tecnológicas disponibilizadas pela permanente revolução técnico-científica para estabelecerem uma intensa conexão (entre trabalhadores e gerência, entre diferentes gerências, entre empresas, etc.), on-line, em qualquer espaço e a qualquer hora. No contexto dessas novas tendências organizacionais, principalmente as grandes redes de empresas adotaram uma conduta global, impondo, em diferentes lugares que atuam, mudanças nos produtos, nos processos, nos mercados, na estruturação do mercado de trabalho, sempre contando “com diferentes níveis de apoio estatal”.104

Vinculados aos novos padrões organizacionais, e igualmente expressivos das profundas transformações que ocorreram nos modos de produzir e de trabalhar, novos padrões de produção, de consumo e de utilização do trabalho se desenvolveram.

Como afirma Mészáros, no modo de produção capitalista observa-se uma lógica de produção que determina um curso que vai da “maximização da ‘vida útil das mercadorias’” ao “triunfo da produção generalizada do desperdício”.105 Assim, a intensificação da competição, a necessidade de explorar novos nichos de mercado, a aceleração do ritmo de inovação dos produtos possibilitada pelas novas tecnologias e pelas novas lógicas organizacionais, colocaram no “museu da história” os tempos médios dos produtos fordistas: o norte passou a ser produzir o descartável, o substituível em curtíssimo prazo. A intensificação da taxa

de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias tornou-se

fundamental para o processo de valorização do capital e o “aprimoramento do supérfluo, uma vez que os produtos devem durar pouco e ter uma reposição ágil no mercado”, tornou-se uma tendência geral.106

103 Manuel CASTELLS, A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura, p. 187.

104 IDEM, Ibid., p. 214.

105 István MÉSZÁROS, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição, p. 634.

106 Ricardo ANTUNES, Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho, p. 50.

Evidentemente, não seria possível levar adiante essa lógica produtiva que ressalta o “triunfo da produção generalizada do desperdício” se não fosse aprofundada uma lógica do também consumo

do desperdício. Nessa direção, como afirma Harvey, “a acumulação

flexível foi acompanhada na ponta do consumo (...) por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica”, e uma nova estética (a “estética pós-moderna”), que “celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais”, tornou-se hegemônica na definição dos padrões de consumo.107

Essa orientação econômica e cultural, que celebra o supérfluo, o descartável, o efêmero, se fez presente, também, no novo padrão de

utilização da força de trabalho. No contexto da reestruturação

promovida pelo capital a partir das últimas décadas do século XX, qualquer compromisso mais estável com os trabalhadores, regulado social e politicamente, capaz de ser estendido a um coletivo disposto numa determinada região, numa subnação, numa nação, passou a ser considerado “na contramão da história”.

Nas novas tendências organizacionais, onde a flexibilidade (na produção, no trabalho, no mercado) foi tornada sagrada, o capital passou a utilizar-se da força-de-trabalho com o pressuposto do desengajamento, do enfraquecimento dos compromissos em relação às regulamentações sociais e políticas, da individualização das relações, da unilateralidade na definição das mudanças. Como afirma Bauman, na fase mais recente de desenvolvimento do modo de produção capitalista, “a reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de qualquer comprometimento local com o trabalho”.108

No que diz respeito à organização do processo do trabalho, as novas tendências organizacionais não necessariamente romperam com os princípios básicos do fordismo: “o monopólio gerencial em termos do controle do processo de programação da tecnologia computadorizada, da esfera da pesquisa e desenvolvimento e do processo de informação e difusão”109 continuou inalterado; o trabalho de execução permaneceu na esfera da operação, da manutenção das máquinas, sem intervenção ao

107 David HARVEY, A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, p. 148.

108 Zygmunt BAUMAN, A modernidade líquida, p. 171. 109 Sonia LARANJEIRA, Fordismo e pós-fordismo, p. 92.

nível da programação; as transformações tecnológicas e organizacionais continuaram sendo meios para se poupar mão-de-obra e aumentar a produtividade do trabalho; o controle fabril continuou e foi aperfeiçoado (formas de autocontrole subjetivo decorrentes de uma cultura do engajamento, do compromisso com a organização etc.).

O novo, nesse sentido, se colocou no desemprego estrutural (resultado direto das novas formas de organização do processo de trabalho e da produção, das inovações tecnológicas, da flexibilização de legislações trabalhistas, de processos de “estabilização” econômica), na criação de novas modalidades de emprego (meio-expediente, temporários, subcontratados), nas formas contratuais e condições salariais mais flexíveis e individualizadas, nos movimentos de fuga de legislações sociais e trabalhistas, nas ofensivas contra as formas de organização dos trabalhadores, nas estratégias de fragmentação e de dispersão da classe-que-vive-do-trabalho.110

Transformando os modos de trabalhar e de produzir, criando novos padrões de produção/consumo e de utilização da força-de- trabalho, o capital promoveu profunda reestruturação no modo de produção capitalista, sempre perseguindo novas e mais favoráveis condições para a sua valorização. Nesse movimento, diversificou suas formas de valorização, investindo em diferentes setores (o crescimento dos serviços), e impulsionou, também, uma das características essenciais daquele processo de reestruturação: a financeirização da economia.

Originalmente, a tendência de valorização do capital na esfera financeira esteve relacionada à necessidade do capital encontrar um meio de investimento que compensasse à crescente dificuldade de valorização na esfera produtiva (crise de superprodução). Sua expansão e a importância que assumiu na economia capitalista internacional, no entanto, foi possível graças à derrubada do sistema monetário internacional que havia sido estabelecido a partir da Segunda Guerra Mundial.111 O Sistema de Bretton Woods, que definiu o sistema monetário internacional a partir da Segunda Guerra Mundial, foi criado com a convicção de que era necessário estabelecer “uma moeda internacional com todos os seus atributos” e, nesse sentido, conferiu ao dólar “um papel central” (ao lado do ouro). A partir de então, o dólar, ainda que “atrelado ao ouro por uma taxa de conversão fixa, negociada internacionalmente”, passou a ser a referência para a definição das taxas

110 Ricardo ANTUNES, Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 111 François CHESNAIS, A mundialização do capital, p. 248.

de câmbio de todas as outras moedas, que poderiam ser alteradas somente em função de desvalorizações ou valorizações definidas pelos Estados.112 Além disso, o Sistema de Bretton Woods atendeu à necessidade de financiamento da acumulação e permitiu que se alicerçasse um sistema financeiro e monetário internacional “que comportava a existência de autoridades estatais, dotadas de instrumentos que lhes possibilitavam controlar a criação de crédito e assegurar a relativa subordinação das instituições financeiras e do capital de empréstimo às necessidades do investimento industrial”.113

A quebra do Sistema de Bretton Woods foi uma ação dos governos dos países capitalistas centrais, iniciando pelos Estados Unidos. Visando financiar o duplo déficit do orçamento e dos pagamentos externos, os governos daquele país, a partir da segunda metade da década de 1960, passaram a emitir dólares sem a conversão em ouro na paridade (ou próxima dela) definida pelo Sistema de Bretton

Woods. Assim, “sem freios”, os instrumentos de liquidez criados pelo

governo norte-americano para financiar sua dívida pública “deram início à economia do endividamento” que, desde a década de 1970, passou a ser uma das características estruturais da economia capitalista no mundo.114

Um passo adiante na quebra do Sistema de Bretton Woods foi dado com o florescimento dos euromercados que, ao

internacionalizarem a economia de endividamento norte-americana, definiram a primeira etapa do processo de subordinação da economia capitalista mundial ao capital rentista.115

Os euromercados resultaram de um processo de enfraquecimento da intervenção dos bancos centrais dos principais países europeus, o que permitiu o estabelecimento (e o crescimento) de um mercado privado interbancário que escapava às regras e medidas estatais de controle e enquadramento para a criação de créditos. Através desse mercado, alimentado pelos capitais industriais que, ainda no final da década de 1960, saíram em busca de formas de valorização puramente financeiras e, na década de 1970, pelos petrodólares,116 os bancos internacionais

112 IDEM, Ibid., p. 249. 113 IDEM, Ibid., p. 249-50. 114 IDEM, Ibid., p. 250-51.

115 François CHESNAIS, A mundialização do capital, p. 251.

116 Designação utilizada para as divisas (geralmente em dólar) resultantes das exportações de petróleo. Em 1973, quando os países membros da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) decidiram aumentar de três para doze dólares o preço do barril de óleo cru, houve

deram forma a uma política de empréstimos aos “países em desenvolvimento” que, a partir da década de 1980, colocariam esses países em crescente estado de subordinação ao sistema financeiro internacional.117

O processo de subordinação da economia capitalista mundial ao capital rentista ganhou impulso ainda maior através das políticas de liberalização e de desregulamentação do sistema de finanças implementadas, primeiramente, pelos governos norte-americano (Ronald Reagan) e britânico (Margaret Thatcher).

As medidas decididas, conjuntamente, pelos governos americano e britânico deram à luz o sistema contemporâneo de finanças, liberalizadas e mundializadas. Neste sistema, as instituições dominantes não são mais os bancos, e sim os mercados financeiros e as organizações financeiras que nelas atuam. Pelo contrário, os bancos passaram a sofrer, na esfera financeira, a concorrência dessas formas recentes de centralização e concentração capitalistas – os fundos de pensão e os fundos mútuos (...). As medidas tomadas a partir de 1979 acabaram com o controle dos movimentos de capitais em relação ao exterior (entradas e saídas), ou seja, liberalizaram, melhor dizendo, escancararam os sistemas financeiros nacionais. Essas medidas também abrangeram as primeiras fases de um vasto movimento (...) de desregulamentação monetária e financeira, cuja primeira conseqüência foi acarretar, desde o começo da

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