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CAPITULO 3 A QUESTÃO AGRÁRIA EM MINAS

3.1 A CONJUNTURA MINEIRA

3.1.1 Reflexões acerca da lei de terras (lei 601 de 1850)

A lei Mineira, em vigor em 1957 (Lei 550, de 20 de dezembro de 1949), guardava as orientações da Lei 601 de 1850, o que motiva a fazer algumas reflexões sobre ela. A Lei 601 foi promulgada em 18 de setembro de 1850 e ficou conhecida como Lei de Terras; dispôs sobre terras devolutas do Império, as terras com título de sesmaria, ocupadas por títulos de posse (mansa e pacífica) e regulou a medição e demarcação de terras devolutas.

A promulgação desse código visava solucionar a questão confusa no ordenamento agrário herdado do período colonial. Porém, o texto trouxe um problema que dificultou sua execução da lei: ele não foi claro em definir o que era terra devoluta68. Para L. Silva (2008, p. 177 e 178), a origem da palavra devoluta era devolvida. Ela considera que os legisladores usaram o critério da produtividade (cultura efetiva) para definir as terras que retornariam ao patrimônio do Império, mas pecaram ao não deixar isso de forma clara e, com o tempo, a cultura efetiva foi abandonada e somente foi observado o título. Para Silva,

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O texto da lei 601, no artigo 3º, dizia que terras devolutas eram: §1º as que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal.

§2º as que não se acharem no domínio particular ou qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.

§3º as que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta lei.

§4º as que não se acharem ocupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei. (BRASIL. Lei nº 601, 1850).

Teria sido mais simples se tivesse feita mais claramente uma distinção entre as terras que estavam retornando ao patrimônio da nação, porque seus possuidores não haviam cumprido as condições originais ou respeitado os dispositivos da lei e as não ocupadas que poderiam ser descritas como vagas. (SILVA, L., 2008, p. 178).

Havia três artigos conflitantes na lei 601: o artigo 1º, o artigo 8º e o artigo 11. O primeiro trazia a proibição de outra forma de aquisição de terras que não a compra; o oitavo dizia que quem não realizasse a revalidação dos títulos cairia em comisso e perderia o direito dado por seu título, porém manteria a posse se tivessem cultura efetiva e quem não mantivesse cultura efetiva, as terras seriam consideradas devolutas (devolvidas), e o artigo 11 dizia que os posseiros eram obrigados a tirar título e quem não o fizesse não poderia hipotecar ou alienar, ou seja, não versava que perderiam as terras.

Na mesma linha de argumento, o jurista Paulo Garcia diz que a obrigatoriedade de “tirar os títulos” de fato não existia. “Tratava-se de uma faculdade reconhecida pelo posseiro, pois, caso esses títulos não fossem tirados, o posseiro não perderia o direito sobre os terrenos”. (GARCIA, 1958, p. 53).

L. Silva (2008, p. 178-179) observa, a partir das discussões do período, as controvérsias que esses artigos suscitaram: garantia-se a posse, mas não dava direito, o título era suficiente para a terra não ser considerada devoluta, mas quem não produzia não tinha direito a revalidação do título. Essa situação confusa levou a simplificar o entendimento do que seria terra devoluta em: “1) as que não estavam aplicadas a algum uso público nacional, estadual ou municipal; 2) as que não estavam no domínio particular, em virtude de título legítimo”.

Paulo Garcia69 (1958, p. 155-159) também observa que a questão conceitual de terras devolutas era complexa. Ele expõe o debate teórico que ocorreu no decorrer do século XIX e início do XX sobre a questão e conclui, embasado no debate, que as terras devolutas eram as que não se encontravam sob nenhuma forma de ocupação, ou seja, desocupadas, ermas e sem cultivo. Ele também diz que os estados não tinham autonomia para conceituar terras devolutas, devendo apenas legislar sobre o que lhe competia.

Denise Mattos Monteiro (2002, p. 55), no artigo “Política de terras no Brasil: elite agrária e reações à legislação fundiária na passagem do império para a república”, analisando o caso do Rio Grande do Norte, argumenta sobre a difícil definição do que seriam terras públicas e devolutas, o que facultou diversas interpretações, submetendo a identificação das

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Paulo Garcia foi Juiz de Direito em Minas Gerais e escreveu o livro Terras devolutas: defesa possessória, usucapião e Registro Torrens, que foi publicado em 1958.

terras devolutas à demarcação das terras particulares. Já Garcia (1958, p. 50-51), analisando o caso do Estado de Minas, diz que, embora a lei determinasse a obrigatoriedade de medir e demarcar as sesmarias e as posses, respeitava-se o direito de quem não o fizesse; como consequência os particulares não demarcaram as sesmarias e posses, como consequência a discriminação das terras públicas e devolutas, no Estado, não foi executada.

É elucidativa a análise de Lima (1935, p. 70) de que grandes somas foram gastas para tal fim, sem o trabalho, no entanto, ter sido realizado, havendo negligência no aparelhamento do serviço.

Para execução dos serviços de medição, identificação e discriminação das terras, cada Província deveria criar uma Repartição Geral de Terras. O artigo 21 da Lei 601 mencionava que seria criada essa repartição por regulamento próprio, o qual foi fixado pelo Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854. Este Decreto, em seu artigo 1º, criou a Repartição Geral de Terras, que seria composta de um Diretor Geral, Fiscal, Oficial Maior, Oficiais, Amanuenses70, Porteiro e Contínuo. O artigo 3º definiu as funções da Repartição de Terras e no artigo 6º determinava que as Províncias devessem ter uma Repartição Especial de Terras Públicas. O artigo 10 determinou a divisão das províncias em quantos distritos de terras fossem necessários. O artigo 11 definiu o quadro de funcionários dos distritos que seriam um Inspetor Geral ao qual seriam subordinados escreventes, desenhistas e agrimensores (BRASIL. Lei nº 601, 1850; BRASIL. Decreto nº 1318, 1854).

Observa-se que, segundo os autores L. Silva (2008), Lima (1935) e Garcia (1958), as medidas versadas na Lei 601 de 1850 não surtiram efeitos no sentido de medir e demarcar as terras devolutas, pois as sesmarias não foram revalidadas e as posses não foram legitimadas. Como já analisado por Monteiro (2002, p. 55), a identificação das terras devolutas ficou na dependência dos particulares revalidarem seus títulos e os posseiros tirarem títulos de suas posses. Isso não sendo feito, as terras devolutas não foram identificadas. O posseamento de terras devolutas persistiu até a proclamação da República. Ainda segundo a autora,

A resistência de sesmeiros e grandes posseiros às determinações da Lei de Terras de 1850 pode ser atribuída a pelo menos três ordens de fatores. Em primeiro lugar, à desconfiança de que essa legislação do Governo Central pudesse representar algum tipo de ameaça aos seus domínios há tanto estabelecidos; em segundo lugar, à certeza da impunidade no descumprimento da lei, uma vez que, no Rio Grande do Norte, a elite agrária e a elite política se confundiam; e, por último, à possibilidade permanente de invasão e incorporação de terras públicas aos patrimônios privados devido à sua não identificação. (MONTEIRO, 2002, p. 56).

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Amparando-se nas análises de Lima (1935, p. 51 e 59), que diz que a Lei de Terras manteve o pressuposto do costume da ocupação e produção, acredita-se que o costume de ocupação e produtividade como garantia de direitos foi importante para a não adesão ela. O pesquisador vai além dizendo que o legislador observou o costume mesmo sendo este contrário à lei, “julgando-os capazes de antiquar ou revogar”, tendo sido ela “uma ratificação formal do regime das posses”. É ainda Lima quem assinala que

O reconhecimento incondicional da propriedade do posseiro, sobre o terreno ocupado com cultura efetiva (art. 8), e a faculdade assegurada da legitimação das posses de extensão maior, – ‘adquiridas por occupação (sic) primária” – desde que preenchida, ou começada a preencher, a condição de cultura (art. 5), – essas duas medidas regularizam definitivamente, perante o direito escrito, já os verdadeiros direitos firmados pelo costume, já as simples pretensões, criadas pela tolerância, de um número considerável de agricultores e criadores, com posição designada nos quadros de nossa vida social e econômica. (LIMA, 1935, p. 59).

Garcia (1958, p. 51-52) diz que a discriminação das terras pela Lei 601 era puramente administrativa e as várias leis mineiras promulgadas sobre a matéria mantiveram a discriminação como ato administrativo. Lima (1931, p. 45 e 46) observa que, como ato administrativo, a concessão é “áto unilateral da administração, no qual concretamente se define e coletivamente se impõe uma situação jurídica de direito público”. Desse modo, o ato administrativo impõe-se como ato jurídico de coerção que obriga a respeitá-la. A transferência de domínio não é embasada no direito privado, mas no direito público. Para Lima,

Neste particular reside, aliás, a afinidade embora estritamente formal, que tantos notam entre a sentença judiciária e o áto (sic) administrativo: – os dois definem e impõem situações jurídicas concretas, e bem assim estabelecem para a autoridade, da qual emanam, – judiciária ou administrativa, – a obrigação de assegurá-las e mantê-las da forma por que foram definidas. (LIMA, 1931, p. 46).

Entre as formalidades estavam a contribuição de pecúlio definido na lei e a produtividade de pelo menos 1/5 da área. O ato administrativo pode ser nulo se investido de ilicitude. Para ser lícito, o ato administrativo precisa de “autoridade competente, vontade livre, objeto lícito e possível, motivo de interesse público e forma legal”. A competência é determinada pela lei “que fixa a extensão e lhe determina o exercício”. A vontade exige que se “aceite e assuma espontaneamente” uma obrigação71. Ao objeto “exige-se a seriedade essencial ao negócio jurídico”. No direito administrativo, caso que importa a esta pesquisa, pede-se que ele esteja em conformidade com o interesse geral (e não individual). O motivo

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Segundo Lima (1931 a 951), “afim de se impôr uma obrigação, contudo, faz-se mister ou que a lei assim estabeleça, ou que uma vontade capaz as aceite e assuma, espontaneamente”.

entra na mesma órbita do objeto lícito. Já a forma, legalmente estabelecida, é uma “garantia interna para a administração pública contra a negligência e o arbítrio de seus funcionários”. (LIMA, 1931, p. 45-52).

A nulidade reintegra a ordem jurídica que foi violada. O autor observa que na administração a nulidade ocorre quando há vício de competência e vício de vontade. Sobre a competência, ele diz que “a principal das causas de nulidade dos atos administrativos é o defeito de competencia (sic)”, que pode ser por falta de competência e/ou por abuso de competência. A falta de competência é caracterizada pela usurpação de atribuições do agente que o comete. Já o abuso de competência seria a concessão realizada sem verificação dos pressupostos da lei que amparam um ato, tais como: concessão sem observar a produtividade, sem o pagamento do pecúlio legal ou como pagamento em forma diversa da que versa a lei, etc. (LIMA, 1931, p. 57 a 61).

Quanto à vontade, pode-se dar por erro, dolo ou violência. Para Lima,

Erro pode haver na concessão de terra em que não se dê preferência aos respetivos posseiros, por ignorar-se-lhe (sic) a existência.

Dolo pode existir na alegação de qualidade falsa, a fim de propriciar-se uma concessão de terras.

Violência, finalmente, pode verificar-se, nessa hipótese, em qualquer das formas que lhe são peculiares. (LIMA, 1931, p. 61).

Em quaisquer dos casos, Lima (1931, p. 62) considera a nulidade insanável, sendo impossível ao legislativo solucionar a questão com lei retroativa.

Analisando a concessão de terras no Estado de Santa Catarina, excluindo as concessões em conformidade com a legislação, o autor classificou 9 tipos de irregularidades que apareciam frequentemente, o que ele caracterizou de vícios de competência, vícios de consentimento ou vontade (erro ou dolo) e de forma. Em todos os casos analisados, a administração, ou usurpou suas funções, ou consentiu que as irregularidades fossem manifestas pela vontade, ou por não observar a forma estabelecida pela lei. (LIMA, 1931, p. 75-90).

No caso de Minas Gerais, o jurista Paulo Garcia (1958, p. 165) observou que era no âmbito administrativo que as concessões eram realizadas, no qual os posseiros não tinham condição de manifestar seus direitos. Um dos motivos apresentados por ele é que

No âmbito meramente administrativo onde se operam as alienações, o posseiro não tem oportunidade de fazer valer seus direitos, já que, na maioria dos casos, não chega a ter noticia de que a terra por êle possuída, ocupada e cultivada, esteja sendo objeto de uma transação. Sómente depois de tudo sacramentado, depois que a venda

se efetivou, depois que o título foi expedido, é que êle vem a saber do sucedido. Quando o ‘comprador’ começa a lhe fazer ameaças e que o pobre posseiro fica cientificado de que aquêle pedaço de terra que êle desbravou, saneou e cultivou, foi vendido pelo Estado a uma pessoa que jamais alí pusera os pés. Mas, já aí, nada mais poderá fazer, no âmbito administrativo. (GARCIA, 1958, p. 165).

O autor diz ainda que, embora a lei obrigasse a fixação de editais, não era cumprida, pois nos fóruns onde atuou por anos nunca foram afixados quaisquer editais. Os posseiros, analfabetos em sua maioria, não tinham condições de tomar conhecimento deles pelas folhas de maior circulação, nem pelo fórum e cartórios. O ideal seria citar pessoalmente o posseiro. (GARCIA, 1958, p. 65-66).

O ato descrito por Garcia (1958), se lido com a análise de Lima (1931), pode ser caracterizado como vício de forma, pois esse critério não foi observado, conforme estabelecido pela lei de publicidade aos interessados.

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