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O presente capítulo se divide em duas partes: a primeira consiste na definição dos campos de sentido afetivo emocional, ou inconscientes relativos, produzidos interpretativamente; a segunda apresenta reflexões que eles suscitam, bem como um diálogo com interlocutores teóricos.

Parece-nos oportuno lembrar que o modelo de pesquisa adotado, vale dizer, a pesquisa empírica qualitativa com método psicanalítico, faz uso da psicanálise exclusivamente como método. Serviu-nos, aqui, para estudar os efeitos que um fenômeno social gera sobre a subjetividade daqueles que o padecem. Nada tem a ver, portanto, com outros trabalhos psicanalíticos, realizados como pesquisa universitária, na qual se parte e se chega ao nosso autor preferido, de Freud a Lacan, passando por Bion, Winnicott e tantos outros. Diferentemente, podemos afirmar que nossa démarche consiste em usar o método rigorosamente, sem saber de antemão com quais autores iremos dialogar. Como se verá, surpreendemo-nos, mas assumimos o fato de que Fanon (1952; 1961), que recém descobrimos e a cuja leitura nos dedicamos com afinco, revelou-se nosso interlocutor privilegiado. Assim, nossas reflexões se farão à luz de colocações fundamentais que ele soube bem articular sobre racismo e sofrimento.

A primeira parte do capítulo, que se concentra na definição dos campos de sentido afetivo-emocional, ou inconscientes relativos, é necessariamente concisa, na mediada em que busca apresentar e caracterizar as regras lógico-emocionais a partir das quais se organizam. Lembramos que se produziu a partir das sucessivas exposições ao áudio das entrevistas, do trabalho de transcrição e de elaboração dos Relatos de Entrevista e dos Textos de Impressões Contratransferenciais, permitindo que pudéssemos criar/encontrar interpretativamente os campos de sentido que subjazem como substratos da experiência emocional. Essas interpretações resultam de um procedimento que

pode ser descrito, num linguajar que se inspira no pensamento winnicottiano, como "criação/encontro" de sentidos, expressão que indica uma visão segundo a qual todo ato interpretativo tem caráter paradoxal, uma vez que simultaneamente ultrapassa e se mantém fiel ao material estudado.

Neste momento de nossa análise, colocamos as teorias sobre racismo entre parênteses, em suspensão fenomenologicamente inspirada, de modo coerente com a exigência, imposta pelo método psicanalítico, de desapego a doutrinas pré-estabelecidas. Procuramos assim evitar a aplicação de ideias, categorias ou conceitos já predefinidos ao material empírico. Fomos guiados, no entanto, por nosso interesse de pesquisa na elaboração de nossas interpretações. Retomamos aqui, para facilitar a compreensão deste capítulo, a informação, anteriormente apresentada, de que utilizamos o que tem sido designado como estratégia encoberta (Proshanky,1967; Aiello-Vaisberg,1995) para a investigação sobre os efeitos do racismo. Lembramos que, ao utilizarmos estratégias de encobrimento, bastante produtivas quando pesquisamos questões de natureza delicada e polêmica como o racismo ou outras formas de discriminação e exclusão social, acabamos por favorecer o afloramento de muitos outros aspectos da experiência emocional dos participantes.

Se nosso objetivo fosse o conhecimento e benefício imediato de pessoalidades individuais, como o fazemos na psicoterapia psicanalítica, certamente criaríamos/encontraríamos muitos outros campos, diversos daqueles que aqui selecionamos. Ou seja, produzimos interpretativamente tais campos porque estamos interessados na abordagem de uma pessoalidade coletiva, no caso, negros brasileiros que conseguiram superar dificuldades inerentes ao nascimento em famílias pobres e alcançar realizações profissionais que permitiram ascensão social.

Cabe aqui enunciar, clara e concisamente, duas percepções importantes que a presente pesquisa proporciona:

1) O racismo apareceu espontaneamente nas duas entrevistas aqui apresentadas, a partir dos próprios participantes, como questão

relevante, que gera efeitos na experiência emocional e vida de ambos.

2) O racismo apontado pelos participantes é experimentado emocionalmente segundo estilos individuais e singulares de lidar emocionalmente com a questão.

As reflexões e interlocuções que apresentaremos a seguir, a partir da definição dos campos de sentido afetivo-emocional produzidos, concentrar-se-ão na primeira dessas percepções, uma vez que abordamos os participantes como integrantes de uma pessoalidade coletiva e não em um contexto psicoterapêutico que privilegiaria exatamente o estilo pessoal de ser impactado e de responder mais ou menos integradamente, do ponto de vista emocional, à discriminação que vivenciam.

6.1. DEFINIÇÃO DOS CAMPOS DE SENTIDO AFETIVO-EMOCIONAL

Parece-nos importante lembrar que, diante do rico material constituído pelos Relatos de Entrevistas e pelos Textos de Impressões Contratransferenciais, cabem sempre múltiplas interpretações, por meio das quais poderiam ser gerados muitos campos de sentido afetivo-emocional. Contudo, dentre os possíveis campos, o pesquisador ou clínico que faz uso do método psicanalítico deve sempre operar seleções a partir de algum critério. Como sabemos, na clínica o critério é o do benefício, o mais direto e imediato possível, do paciente, levando em conta sua possibilidade de fazer uso construtivo, vale dizer, menos defendido e menos dissociado daquilo que lhe é comunicado. No caso da pesquisa, o critério de seleção dos campos de sentido afetivo-emocional se configura a partir do tema investigado. Deste modo, vimos que os participantes se colocaram em relação a inúmeras questões de sua experiência emocional e história de vida, mas vamos deixá-las como uma espécie de fundo, a partir do qual as comunicações relativas ao racismo se colocarão como figura, para focalizar as experiências emocionais frente a manifestações de racismo.

Produzimos interpretativamente dois campos de sentido afetivo-emocional, ou inconscientes relativos, que denominaremos respectivamente

“aprisionado  pela  aparência”  e  “com  talento,  esforço  e  competência”.  

Designamos, sob a denominação "aprisionado pela aparência", um campo de sentido afetivo-emocional que se organiza a partir da percepção de que características físicas, notadamente a cor da pele, causam impacto instantâneo nas pessoas, gerando reações imediatas de julgamento e avaliação que apreendem, classificam, discriminam, inferiorizam e humilham.

Designamos, sob a denominação "com talento, esforço e competência", um campo de sentido afetivo-emocional que se organiza a partir da crença de que o desenvolvimento de aptidões pessoais seria um caminho pelo qual o negro poderia obter reconhecimento e respeito.

6.2. Interlocuções

O quadro geral indica que o racismo é uma realidade presente na experiência emocional da pessoalidade coletiva estudada, gerando impactos importantes em sua subjetividade e modo de ser. Concorda, portanto, com aqueles que reconhecem que a sociedade brasileira não está livre do racismo. Mostra também que a ascensão social não implica no fim da discriminação, pois a pessoalidade coletiva considerada não é prioritariamente atingida por sua condição social de pobreza, de classe ou precariedade econômica, mas por seus traços e aparência física.

Aprisionado