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Optamos por reconstruir os relatos de Josimar, Antônio, Francisco e Raimundo, pois ilustram as histórias de muitos outros, como veremos a seguir. São histórias marcadas pela violência e uma constante busca por um lugar no mundo. Seus relatos refletem uma multiplicidade de vínculos e trajetórias, normalmente confusas, entremeadas de episódios violentos, que aparecem numa sucessão de perdas e conquistas.

Josimar, Antônio, Francisco e Raimundo vivem como quaisquer outros trabalhadores rurais – a vontade de viverem tranquilos nas roças, em suas terras de trabalho. Fazem parte do grande contingente de trabalhadores camponeses que vivem na pobreza no Brasil. De acordo com o caderno de Conflitos (2015) da CPT, quando observamos a dinâmica agrária da sociedade brasileira nos últimos 16 anos (2000 a 2015), podemos verificar o seu caráter altamente contraditório materializado no elevado e crescente número de localidades em conflito por terra, de ocorrências de conflitos e de famílias envolvidas. E, sublinhemos, esses números são superiores a todos os períodos desde que a CPT passou a registrar a violência no campo em 1985. Entre 2000 e 2015 foram registradas 5.782 localidades em conflito envolvendo em média 97.399 famílias ao ano. No mesmo período, 38.280 famílias foram expulsas, 295.935 sofreram tentativas de expulsão, 248.353 foram despejadas, 25.746 foram ameaçadas de despejo, 45.946 tiveram suas casas destruídas, 40.078 suas roças destruídas, além de 595 (encontramos 602 vítimas no período 2000-2015) pessoas assassinadas. Das situações

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de conflitos em que foram registradas as categorias sociais envolvidas entre 2000 e 2015, as populações tradicionais representam 46% das localidades, enquanto os sem- terra e os assentados 48%, somados. No subperíodo 2000-2007, os sem-terra e os assentados predominavam, somando 64% das localidades registradas em conflito enquanto as populações tradicionais aparecem em 31%. Já no período subsequente de 2008 a 2015, essas proporções são invertidas, com o registro de 33% das localidades em conflito envolvendo sem-terra e assentados, e as populações tradicionais, em 59% das localidades.

O mesmo pode ser verificado com relação ao número de famílias: as famílias das populações tradicionais contribuíam com 28% do total entre 2000 e 2007 e com 56% no período seguinte 2008-2015. Mais da metade das localidades envolvidas em conflitos estavam na Amazônia (51%) e as demais distribuídas em 26% na região Centro-Sul e 23% no Nordeste. É de salientar o aumento da participação da Amazônia no total de localidades em conflito entre os dois períodos considerados, de 44% para 57%, enquanto a região Nordeste via sua proporção no total do país cair ligeiramente de 25% para 22%, e a região Centro-Sul com uma queda mais acentuada, de 31% para 21%.

Para a CPT (2016) a dinâmica histórica e geográfica demonstrada por esses dados indica a necessidade de repensar o significado da questão (da reforma) agrária no Brasil primeiro pelo aumento do número de conflitos, segundo pela distribuição geográfica dos conflitos, onde a Amazônia ganha destaque, e terceiro pela importância que as populações tradicionais/camponesas vêm assumindo entre os diferentes grupos sociais em situação de subalternização, opressão e exploração.

Esses dados (fatos) reafirmam a continuidade histórica da violência que vêm caracterizando a dinâmica agrária brasileira e colocam em xeque o êxito de um padrão de acumulação incessante de capital, que tem como eixo mais dinâmico o latifúndio monocultor voltado para exportação, que apesar de seus recordes de produção de grãos, de madeira e de carne se faz com base na injustiça e violência.

Entretanto, a luta em defesa do direito à terra, ao longo dos últimos anos, promoveu um entendimento da conjuntura socioeconômica de caráter excludente. Hoje já é possível reconhecer que essas lideranças ameaçadas estão nessa situação em decorrência de uma estrutura marcada pela iniquidade.

As lutas dos posseiros e sem-terra conformaram, ainda, um novo grupo social – o assentado - que também traz as marcas do Estado na sua constituição. Afinal, o

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assentamento é uma unidade territorial do Estado que faz a Relação de Beneficiários – RBs – e considera cada família assentada como cliente da reforma agrária. Os termos “beneficiários” e “clientes” indicam que os assentados são uma categoria social subordinada pelo Estado e, assim, não se constituem como categoria política propriamente dita, como os sem-terra se constituíram, por exemplo. O assentamento continua sendo lugar de conflitos intensos, que abriga dentro de si uma tensão entre terra e território, em sua grande maioria, é um somatório de propriedades privadas e não um território controlado pelos assentados. E não estamos nos referindo a um fenômeno marginal haja vista quesão mais de um milhão de famílias assentadas, no Brasil, ocupando uma área de cerca de 85 milhões de hectares de terra, aproximadamente 10% de todo o território nacional (Caderno de Conflitos, 2015).

As lideranças ameaçadas de morte são escolhidas e marcadas para morrer sistematicamente. Durante as entrevistas, eles relatam os muitos casos de assassinatos dos companheiros de luta, porque eles sabem que os pistoleiros não brincam em serviço e que precisam estar sempre pensando em estratégias de sobrevivência.

Segundo Moreira et al. (2008) para os ameaçados a morte parece estar sempre à espreita na frente de sua casa, no caminho para o trabalho e em vários lugares “penso na possibilidade de uma cilada” (depoimento de Josimar). Como a morte é um fato real, alguns ameaçados revelam “penso na minha família e na possibilidade de meus filhos ficarem órfão” (Depoimento do Sr. Raimundo) ou ainda “tenho medo de morrer e deixar os filhos. Eles dizem para eu ter cuidado. A possibilidade de pensar na própria morte faz vir à tona sentimentos depressivos que se manifestam, às vezes, como uma resposta positiva do ameaçado “A Dorothy morreu aos 71 anos de idade e a gente não pensava que fosse acontecer isso. Eu não vou recuar. Quando o padre Jósimo foi morto, eu deixei muita coisa. Para mim tanto faz anoitecer e não amanhecer” (depoimento de Sr. Antônio).

A irmã religiosa Dorothy Stang simbolicamente deixou vários filhos órfãos, os quais podemos constatar durante as entrevistas. Um desses filhos é o sr. Antônio que afirma que nunca pensou na possibilidade de sua morte, entretanto que nunca pensou que Dorothy, por ser mulher, idosa, religiosa e de grande notoriedade pudesse ser assassinada.

Todos os entrevistados demonstraram ter esperança na busca de realização de um sonho em ter um lugar que os acolha, alcançado através das lutas e conquistas da

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reforma agrária. Para Moreira et al. (2008), cujo sangue derramado sobre a terra é semente que faz brotar novas perspectivas, novos sonhos, novas ideias. De fato, as experiências das lideranças ameaçadas são escritas com sangue e em cada capitulo é escrito uma das muitas histórias que corresponde a um ameaçado que derrama seu sangue, suor e lágrima por uma justa causa.