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Reflexividade social, sociedade de risco, consumo e alimentação

2 O MARCO TEÓRICO DA PESQUISA

2.1 Reflexividade social, sociedade de risco, consumo e alimentação

Beck (2012) considera que a modernização reflexiva deve ser entendida como a “possibilidade de uma (auto) destruição criativa para toda uma era: aquela da sociedade industrial. O “sujeito” dessa destruição criativa não é a revolução, não é a crise, mas a vitória da modernização ocidental”(BECK, 2012, p. 12; destaques do original).Ainda segundo Beck, se a modernização simples significa primeiro a desincorporação e depois a reincorporação das formas tradicionais pelas formas sociais industriais, a modernização reflexiva significa primeiro a desincorporação e depois a reincorporação das formas sociais industriais por outra modernidade (BECK, 2012). Com esta afirmação o autor quer salientar que a sociedade moderna, devido ao seu alto dinamismo, está acabando com ideais de formações de classe, camadas sociais, ocupação, família nuclear, papeis dos sexos, agricultura, e as formas continuas de progresso técnico econômico até então característicos da sociedade industrial ou da modernização simples.

Fatores como a maior participação das mulheres no mercado de trabalho, flexibilização temporal e contratual do trabalho assalariado, são exemplos de pequenas medidas com grandes efeitos cumulativos que, silenciosamente, através do tempo, contribuem para mudanças de uma sociedade em mutação. Para Beck (2012, p. 17), o conceito de sociedade de risco “designa uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial”.

Podem-se distinguir duas fases até a sociedade de risco, aqui designada. Na primeira fase, os efeitos e ameaças produzidos pela sociedade industrial não se tornam questões públicas nem caem na arena de conflitos políticos sendo assumidos e legitimados como riscos residuais. Porém, em uma segunda fase, quando os riscos e os perigos da sociedade industrial invadem a esfera pública, passando a dominar os debates e conflitos políticos ou privados, a sociedade

industrial se torna social e politicamente problemática. Esta segunda fase caracteriza o dinamismo da sociedade de risco. De acordo com Beck (2012, p. 18), “a transição do período industrial para o período de risco da modernidade ocorre de forma indesejada, despercebida e compulsiva no despertar do dinamismo autônomo da modernização, seguindo o padrão dos efeitos colaterais latentes”.

A modernização reflexiva é uma autoconfrontação com os efeitos desta sociedade de risco que não podem mais serem absorvidos pela sociedade industrial. A sociedade reflexiva traz à discussão as distribuições dos malefícios e da distribuição de responsabilidades na produção de bens.

Como malefícios e efeitos nocivos da produção de bens e que entram agora em pauta estão a pesquisa genética, as ameaças ao ambiente, a supermilitarização, novas e avançadas tecnologias nucleares e químicas, bem como a miséria crescente fora da sociedade industrial ocidental.

Neste contexto, devemos também considerar a essência da “crise ecológica” atual. A metamorfose dos efeitos colaterais despercebidos da produção industrial na perspectiva das crises ecológicas globais não parece mais um problema do mundo que nos cerca – um chamado “problema ambiental” – mas sim uma crise institucional profunda da própria sociedade industrial. (BECK, 2012, p. 22; destaques no original)

Desta forma, Beck (2012) afirma que a crise institucional ocasionada pelo reconhecimento da imprevisibilidade dos riscos e ameaças provocadas pelo desenvolvimento técnico industrial leva à autorreflexão das bases de coesão social e ao exame das convenções e fundamentos predominantes da racionalidade e é, desta forma, que a sociedade se torna reflexiva. Para este autor, a sociedade de risco é também uma sociedade “autocrítica” onde todos os segmentos da sociedade atuam e interagem entre si.

Com isso, Beck (2012) mostra como uma das características desta sociedade reflexiva e da globalização é a individualização. Segundo suas próprias palavras, a “individualização e a globalização são, na verdade, dois lados do mesmo processo de modernização reflexiva” (BECK, 2012, p. 31). Mas esta individualização não é baseada em livre escolha dos indivíduos e sim uma consequência dos modelos sociais transformados onde a responsabilidade e a escolha são postas sobre o indivíduo. Segundo Beck (BECK, 2012, p. 32; destaques no original) “por isso, ‘individualização’ significa que a biografia padronizada torna-se uma biografia

escolhida, uma biografia do tipo ‘faça-você-mesmo’ (Ronald Hitzler), ou como diz Giddens, uma ‘biografia reflexiva’”.

Esta individualização não permanece no sentido privado, mas converte-se em político já que, para o autor, as instituições tornam-se irreais em seus programas e fundações transformando-se assim em dependentes dos indivíduos. Nesta ambiguidade de arenas e interesses pertencentes a sociedades diferentes que ainda convivem juntas, mas em conflito, observa-se, por um lado, o vazio político das instituições e, por outro, o renascimento não institucional do político.

Giddens (2012) considera que a nível global a modernidade tornou-se experimental, onde, queiramos ou não, estamos todos presos a uma grande experiência que está ocorrendo no mesmo momento da nossa ação. Como uma das consequências deste processo tem-se a natureza, que se moldou conforme uma imagem humana e esse fato resulta em incertezas muito grandes sobre os impactos resultantes destas transformações.

O autor citado ressalta que uma maneira de ler a história humana desde a época da ascensão da agricultura, passando pelas grandes civilizações até o período moderno pode ser entendida como uma destruição progressiva do ambiente físico. A natureza foi completamente transfigurada pela intervenção humana e começamos a falar de meio ambiente justamente quando ela, e as tradições foram sendo dissolvidas. A ecologia ambiental surgiu como uma resposta a percepção da destrutividade humana.

Neste sentido para Beck (2012, p. 50) “a natureza torna-se um projeto social, uma utopia que deve ser reconstruída, ajustada e transformada”. A natureza transforma-se em política. E isto quer dizer que sociedade e natureza se fundem em uma natureza social.

A questão e o movimento ecológicos, que parecem estar fazendo um apelo para a salvação da natureza, aceleram e aperfeiçoam este processo de consumação. Não é sem ônus que a palavra “ecologia” é de tal forma ambivalente que tudo, desde os sentimentos de volta à terra natal até o hipertecnologismo, pode encontrar nela um lugar e um espaço. (BECK, 1995, p. 51; destaques no original)

Para Beck (2012), a questão ecológica faz com que uma cultura pós moderna cansada, saturada e sem significado, tome para si a tarefa hercúlea que age como estímulo em toda a parte transformando o mundo dos negócios em “gângsteres da

destruição” e Heróis. Junto a esta percepção de ameaça surge o interesse legítimo de prevenir a ameaça e preservar o meio ambiente. As ameaças ecológicas criam um importante horizonte semântico de impedimento, prevenção e ajuda, onde as coisas cotidianas e triviais podem transformar-se em testes de coragem.

Estas contextualizações sobre as grandes transformações e a crescente preocupação dos indivíduos na vida cotidiana, se posicionando em relação a questões como meio ambiente, ecologia, impacto ambiental, saúde, comparecem como o palco que ambientaliza os espaços das feiras ecológicas e as relações que ali se apresentam entre produtor e consumidor e suas motivações para pertencer a esse universo. Estas escolhas estão muito além da simples operação de compra e venda de alimentos, transformando-se em estilos de vida que se fortalecem e se consolidam de uma forma bastante dinâmica.

Giddens (2002) ressalta estes aspectos com bastante propriedade, especialmente a questão do estilo de vida. No seu entendimento:

Na vida social moderna, a noção de estilo de vida assume um significado particular. Quanto mais a tradição perde seu domínio, e quanto mais a vida diária é reconstruída em termos de jogo dialético entre o local e o global, tanto mais os indivíduos são forçados a escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade de opções [...]. A modernidade, não se deve esquecer, produz diferença, exclusão e marginalização. Afastando a possibilidade de emancipação, as instituições modernas ao mesmo tempo criam mecanismos de supressão, e não de realização do eu [...]. “Estilo de vida” se refere também a decisões tomadas e cursos de ação seguidos em condições de severa limitação material; tais padrões de estilo de vida também podem algumas vezes envolver a rejeição mais ou menos deliberada das formas mais amplamente difundidas de comportamento do consumidor. (GIDDENS, 2002, p. 13; destaques no original).

No ambiente das feiras o processo de escolhas e a questão dos estilos de vida cobram importância de diversas maneiras. É preciso dizer que as feiras ecológicas de Porto Alegre devem ser vistas como um espaço que se propõe a ultrapassar o âmbito estrito das operações de compra e venda de produtos de primeira necessidade (frutas, verduras, legumes, mel, doces em compota, condimentos, objetos de artesanato, etc.). Em verdade, realizam em seu interior a divulgação, a veiculação de informações e a troca de conhecimentos sobre ecologia, sustentabilidade, saúde e produção agroecológica. Esta proposta converte-se num compromisso cívico que se exprime não só na fala dos atores envolvidos (produtores e consumidores), mas também no regimento interno das feiras, nas

resoluções e regulamentações do estado através da Secretária Municipal da Produção, indústria e Comércio (SMIC), conforme veremos posteriormente.

No dia a dia da feira tanto os consumidores tecem considerações e refletem sobre suas escolhas e suas preocupações com o meio ambiente, sustentabilidade e ecologia, quanto os produtores que veiculam informações aos presentes e participam de atividades de divulgação, a exemplo de palestras e depoimentos nos espaços em que circulam. O discurso da sustentabilidade se impõe de forma direta e difusa através de suas práticas. Ao comentar sobre a importância da contribuição dos dois eminentes sociólogos, citados anteriormente, Scott ponderou:

Vários autores, tais como Ulrich Beck e Anthony Giddens, argumentam que os processos de mudança econômica e social, notadamente as tendências de maior mobilidade social e geográfica, assim como de individualização e globalização, enfraquecem as solidariedades tradicionais de classe e comunidade. Sua análise sugere que estão ocorrendo importantes mudanças nas percepções das pessoas e dos riscos a que são expostas e que, em resultado disso, novas formas de solidariedade estão emergindo – por exemplo, a solidariedade entre os membros dos novos movimentos sociais. Essa mudança de percepção tem sido estimulada, em parte, pelo fracasso dos Estados de bem-estar social em fornecer o nível de segurança social e econômica prometido aos seus cidadãos (SCOTT, 2006, p. 203).

Os inúmeros escândalos agroalimentares da atualidade, resultantes de falsificações e adulterações recorrentes, só fazem reforçar a percepção dos riscos a que todos estamos sujeitos, sobretudo devido à inoperância do Estado, mesmo no caso dos países desenvolvidos. As feiras ecológicas de Porto Alegre, como a seguir veremos, podem ser vistas como um movimento social mais amplo, que conta com a emergência destas novas formas de solidariedade entre os indivíduos, hoje, mas também com as gerações futuras, quando se trata de proteger o ambiente natural e buscar saídas a uma crise que atinge toda a civilização atual. Vejamos agora outros elementos que são cruciais para conformar o marco teórico dessa pesquisa.