• Nenhum resultado encontrado

Como se disse, a invisibilidade, não obstante vinculada com frequência às relações sociais, é um conceito que também pode ser analisado sob a ótica da esfera jurídica, sobretudo tendo em mira a dignidade humana.

Com efeito, a noção de dignidade é melhor compreendida partindo-se da teoria que a associa a três conteúdos ou elementos essenciais: valor intrínseco, autonomia da vontade e valor social ou comunitário da pessoa humana (BARROSO, 2014).

Sob a vertente do primeiro elemento da tríade, a dignidade consiste na “[...] qualidade inerente à essência do ser humano, no conjunto de sentimentos, ideais, valores, sendo parte indissociável da própria natureza do gênero humano, atributo que impede sua redução à categoria de animal ou coisa” (MERIGUETI, 2016b, p. 502).

Trata-se do valor intrínseco da dignidade, ligado à natureza do ser, ao que é comum e inerente a todos os seres humanos e está intimamente associado à noção do homem como um fim em si mesmo.

A autonomia da vontade, por sua vez, é ligada à capacidade de autodeterminação dos seres humanos na conformidade com as normas, isto é, no direito de cada um desenvolver livremente sua personalidade, levando a cabo valorações morais e escolhas existenciais sem imposições externas. Por trás dessa ideia está a de um ser moral consciente, dotado de vontade, livre e responsável (BARROSO, 2014). Indo além, a essência natural do ser humano, que corresponde ao aspecto da dignidade derivada de sua própria natureza humana, aliada à ideia de autonomia, é complementada ainda pela existência social (ALARCÓN, 2013).

Sob o ângulo deste terceiro elemento, a dignidade não tem seu componente central fincado na liberdade, mas sim, é ela que molda o conteúdo e o limite da liberdade, nas relações do indivíduo em relação ao grupo e vice-versa (BARROSO, 2014). Sendo assim, as relações intersubjetivas são também responsáveis pela formação valorativa da identidade dos sujeitos e do grau de adesão societário (ASSY, 2012). Nesta medida, este terceiro conteúdo da tríade da dignidade proposta por Luis Roberto Barroso (2014) é fundamental para o alcance da constatação a que se quer chegar, qual seja, de que o fenômeno social da invisibilidade também tem implicações na dignidade humana e, por consequência, no terreno jurídico.

Nesse sentido, no momento em que o solicitante de refúgio ou o refugiado se encontra em situação de rejeição e desprezo, acentuando-se, desse modo, sua vulnerabilidade, caracteriza-se uma redução de sua natureza e, em última análise, uma lesão à sua dignidade.

Nesse enredo, também são apropriadas as lições de Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 62), ao apresentar dignidade humana como

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Vê-se, então, que a noção de dignidade está ao mesmo tempo aliada à qualidade intrínseca da essência humana, à autonomia da vontade, fortalecida pelas relações sociais, como também a um conjunto de direitos e deveres de convivência coletiva. Por este motivo, Panea Márquez (apud ALARCÓN, 2013) ensina que reconhecer a dignidade do homem é reconhecer a existência de exigências que lhe são devidas, de direitos que lhe pertencem.

Aliás, mesmo para os autores que conferem à dignidade um aspecto moral (a exemplo do filósofo Immanuel Kant), é a própria condição humana que “[...] gera um dever de tratar o ser humano com consideração e, ao mesmo tempo, de reconhecer

que a condição de nenhum sujeito é intrinsecamente superior à de outro sujeito” (RIBEIRO NETO, 2013, p. 35).

Sendo assim, ainda que se considere que a dignidade tenha fundamento num dever moral, não se pode negar que se trata da fonte de onde todos os direitos fundamentais derivam, encontrando-se permeada de conteúdo jurídico-normativo nos dias atuais.79

Com efeito, a dimensão jurídica das relações interpessoais reside justamente na observância desse dever mútuo, recíproco, de agir em relação a outrem com o espírito de fraternidade a que faz menção a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo I, no mesmo enunciado em que declara que “[...] todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos [...]” (ONU, 1948).

Por sua vez, a Constituição Federal brasileira também desempenha papel fundamental nessa interação sociojurídica, não só ao alocar a dignidade humana em local de prestígio, apresentando-a como fundamento da República, mas também por conceber a solidariedade, a erradicação da marginalização e a redução das desigualdades sociais como objetivos, e a prevalência dos direitos humanos como princípio norteador das relações internacionais.

Uma vez realçada ao patamar de fundamento da República, a dignidade constitui parâmetro de interpretação, alteração e aplicação de todas as normas que compõem o ordenamento jurídico pátrio, bem como configura elemento norteador da atuação do Estado brasileiro frente à população (nacional ou não) em seu território.

É o entendimento traduzido com propriedade por Brunela Vincenzi:

O conceito jurídico de dignidade humana, por sua vez, é o pendor interpretativo de todo o arcabouço democrático dos direitos e garantias constitucionais internalizado pela ordem jurídica estatal. Assim, de conceito moral, passa a dignidade humana, no âmbito interno, a valer também como conceito jurídico, que há de ser efetivado pelo Poder Judiciário, em especial a partir de interpretação e aplicação diretiva dos Tribunais Constitucionais (VINCENZI, 2013, p. 75).

79

Importa destacar que a utilização da dignidade da pessoa humana como fundamento ou conceito jurídico não é unânime, eis que não se encontra nos textos constitucionais de forma universal, a exemplo da Carta dos Estados Unidos da América, conforme alerta Barroso (2014).

É digno de lástima perceber, portanto, que a invisibilidade social e as situações de humilhação, rejeição e desprezo dela decorrentes são fenômenos que acentuam a sensação de impotência para garantir os valores apresentados na Magna Carta, bem como torna distante o espírito de fraternidade buscado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Ainda nesse contexto, é importante considerar a invisibilidade como um fenômeno que acarreta uma privação de pertencimento ao corpo social e, em última análise, um impedimento de ação, o que está umbilicalmente ligado a questões como justiça social, acesso à justiça e a exercício de direitos.

Também sob essa ótica, portanto, a ocorrência dessa blindagem revela o conteúdo jurídico do fenômeno social identificado, demonstrando que tais aspectos, social e jurídico, estão entrelaçados.

Somando-se às considerações até então formuladas, é evidente que o impacto jurídico derivado da chegada de solicitantes de asilo ao território nacional vai muito além dos reflexos que as situações de humilhação e rejeição da comunidade acolhedora causam na dignidade humana.

Nesse embalo, cumpre chamar atenção, especificamente, para o aspecto normativo do campo jurídico, notadamente a respeito das queixas da doutrina acerca das dificuldades para a realização dos direitos dos refugiados no plano prático.